Xeque-mate contra a esquerda mexicana
Desde 1938, a indústria petrolífera mexicana constituía um símbolo nacional, que a tempestade neoliberal não conseguiu derrubar. Isso terminou: enquanto o país “celebra” os vinte anos do NAFTA, o presidente Enrique Peña Nieto decidiu pela privatizaçãoJean François Boyer
A grande imprensa está de pé. Do Figaro ao Wall Street Journal, passando pelo New York Times, o novo presidente mexicano é ovacionado. Enrique Peña Nieto, “jovem”, “sedutor”, “moderno”, concluiu 2013 em apoteose: no fim de dezembro, adotou uma reforma constitucional que libera os setores de energia (eletricidade, petróleo e produtos derivados) para o investimento privado nacional e estrangeiro. E melhor: conseguiu dividir a esquerda.
Pequena retrospectiva. Nos dias que se seguiram à eleição de julho de 2012, com a derrota de Andrés Manuel López Obrador, candidato de uma enorme coalizão progressista, o Partido da Revolução Democrática (PRD) – principal partido da esquerda – e seus aliados manifestaram sua cólera. Eclodiram acusações de fraude e compra de votos. O presidente do PRD, Jesús Zambrano, exigiu a anulação das eleições. Parecia que a guerra entre o novo presidente e seus adversários políticos tinha sido declarada.
Cinco meses depois, uma surpresa. No dia seguinte à posse de Peña Nieto, o mesmo Zambrano apareceu ao lado do presidente, dos dirigentes do partido no poder (o Partido Revolucionário Institucional – PRI) e de representantes do Partido Ação Nacional (PAN, direita católica) para anunciar a assinatura do Pacto pelo México, espécie de acordo de coabitação que permitiria a adoção consensual de “reformas estruturais” necessárias para o país.
A decisão de assinar o pacto não foi consenso no conjunto do PRD, e sim uma iniciativa pessoal do presidente do partido e da tendência social-democrata que ele controla. López Obrador, dirigente de um movimento popular antiliberal e nacionalista batizado de Morena (Movimento de Regeneração Nacional), opôs-se, assim como as outras tendências minoritárias do PRD. Prevendo a “traição”, saiu do PRD logo depois da eleição presidencial e anunciou sua intenção de transformar seu movimento em partido político.
Preocupado em não afastar o eleitorado de esquerda, Zambrano reiterou que o pacto não prevê reforma constitucional no âmbito energético, nem a privatização da Pemex – a empresa que explora petróleo e derivados desde a nacionalização dessa substância em 1938 –, nem a instauração de um imposto sobre o consumo de medicamentos e alimentos, medida fiscal muito impopular. Efetivamente, o texto não diz nada preciso sobre esses temas. Mas ninguém tem dúvidas de que sejam objetivos prioritários para o novo presidente e a direita.
E todos entendem que o PRD renunciou ao combate frente a frente com o governo. Seu apoio facilitou a adoção rápida das primeiras reformas – algumas criticadas pela esquerda radical – e permitiu ao presidente manter a promessa feita durante a campanha aos investidores privados: adotar uma reforma energética antes do fim de 2013. Martí Batres, presidente executivo do Morena, resume a manobra: “Se Peña Nieto tivesse tomado a decisão de adotar suas primeiras reformas com o apoio apenas da direita, teria, indiretamente, reforçado a esquerda, que se aproveitaria do descontentamento popular para mobilizar protestos nas ruas. Era preciso, assim, cooptar uma parte da esquerda com o objetivo de dividi-la e fazer os eleitores da esquerda acreditar que as ações do governo estavam indo em boa direção”.
Habilidade tática
A presença de Zambrano e seus amigos na direção do PRD revelou a habilidade de tática de Peña Nieto. Ao longo de 2013, o presidente negociou com eles projetos de lei e reformas contra os quais a esquerda moderada não reagiria e que não satisfazem totalmente nem a direita nem a esquerda radical. Foram adotadas – com o apoio dos deputados e senadores fiéis a Zambrano e de um número flutuante de parlamentares do PAN – uma reforma do sistema educacional, uma lei antimonopólio e uma reforma fiscal. Com isso, o presidente pôde se apresentar como o campeão da unidade nacional, desferindo golpes tanto na direita como na esquerda quando o interesse do país está em jogo.
A reforma da educação provocou a cólera de numerosos docentes, atualmente submetidos a um sistema de avaliação que pune os professores dos estados menos desenvolvidos do país.1 A lei antimonopólio, que promove a concorrência em setores-chave, fez franzir a testa de Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, que reina soberano sobre as telecomunicações mexicanas.2 Também preocupa a Televisa e a Televisión Azteca (inimigos mortais da esquerda), que há vinte anos compartilham o mercado das mídias eletrônicas. A reforma fiscal aprova o imposto sobre alimentos e medicamentos e reduz os “nichos” que permitem às grandes empresas escapar do imposto. Zambrano exulta: “O projeto de reforma fiscal retoma as ideias da esquerda, essencialmente as do PRD. São propostas que introduzimos no Pacto pelo México”,3 lançou ele em outubro de 2013. A três meses da adoção da reforma energética, essa lua-de-mel entre um partido da esquerda parlamentar e o poder derrotou os eleitores, que perderam suas referências.
Em novembro de 2013, mais uma peripécia. O PRD, que logo após uma assembleia extraordinária reafirmou sua vontade em manter-se no pacto, anunciou, uma semana depois – poucos dias depois do debate sobre a reforma energética –, que estava se retirando do pacto. O partido confessou que a privatização da exploração de hidrocarbonetos já estava em curso, sem a menor concessão do governo, e que seria adotada como uma medida provisória. Manter-se no pacto sob essas condições seria suicídio político. Zambrano finalmente chamou o povo às ruas. O Morena também.
Tarde demais: a rua respondeu timidamente. A explicação para a apatia? A crise causada pelo desaquecimento da economia norte-americana e a inflação crescente tornaram sedutora a promessa de garantir, por meio da privatização, preços melhores para combustíveis, gás e eletricidade. Martelada pelas mensagens individualistas e consumistas das televisões nacionais e dos canais a cabo norte-americanos, grande parte da população se tornou sensível ao argumento. O governo entendeu o momento e lançou na grande imprensa uma grande campanha publicitária a favor dessas medidas.
Mas é mais grave ainda, explica Sergio Aguayo, professor da universidade Colegio de México: “À diferença do PT [brasileiro], instituição sólida e unida que soube tirar proveito dos resultados na gestão das cidades em que estava no poder, os partidos de esquerda mexicanos, desunidos, burocráticos, clientelistas e em geral corruptos, não souberam conquistar legitimidade. Tampouco souberam explorar o carisma de dirigentes, como López Obrador e Cuauhtémoc Cárdenas”.
O futuro parece sombrio para a esquerda. Se não conseguir, por uma tentativa imediata de unidade, dinamitar essa reforma por meio de um referendo popular ou de um recurso via Corte Suprema – perspectivas pouco prováveis –, o México nunca mais será o mesmo.
De qualquer forma, não haveria união nessa batalha. Desde janeiro de 2014, o divórcio está consumado entre o Morena e os setores “colaboracionistas” que dominam o PRD. López Obrador martela que seus dirigentes foram corrompidos pelo poder e se recusa a unir-se a eles por causas comuns, como essas batalhas legais incertas.
Tudo indica que o Morena mergulhará sozinho nessa empreitada. Apresentou aos juízes, no dia 5 de fevereiro, uma acusação penal contra Peña Nieto por “traição da pátria”. Uma equipe jurídica especializada estudará outras iniciativas suscetíveis de enfraquecer o governo: destituição do presidente do Congresso e multiplicação de ações judiciais para impedir a aprovação de novas medidas.
Mas, para além dessa guerrilha legal, o movimento elaborou uma estratégia de longo prazo. Um membro de seu secretariado, que prefere manter o anonimato, afirma: “Para anular as reformas, há apenas uma solução: a tomada do poder do Parlamento e do governo. É claro, para nós”. A ferramenta dessa conquista hipotética será um novo partido apoiado por um grande movimento social e pela rua – se o poder não recorrer a uma nova fraude, como em 2006.
Durante todo o ano de 2013, o Morena lutou para obter seu estatuto de partido político. Não sem ônus. As condições impostas pelo Instituto Eleitoral Federal foram severas e acabaram atendidas somente no fim de janeiro de 2014, com uma margem maior do que a esperada. Mas seus responsáveis confessam que precisaram convocar diversas vezes algumas assembleias constituintes para reunir o quórum exigido pela lei.
A curto prazo, a reconquista parece improvável. Nas eleições legislativas de 2015, o Morena não poderá apresentar candidatos comuns com o PRD: a lei exclui essa possibilidade para os novos partidos que concorrem a eleições pela primeira vez. A esquerda dividida poderia perder algumas oportunidades. E o PRD, seu estatuto de primeira força parlamentar de oposição, porque muitos de seus quadros e eleitores parecem dispostos a unir-se a López Obrador.
A derrota teria o mérito, pelo menos, de esclarecer a situação e recompor a confusa e pouco coerente paisagem política mexicana. A divisão da esquerda, anunciada há tempos, seria necessária para que uma verdadeira força alternativa, um polo de resistência, pudesse emergir no país latino-americano que mais sofreu com o neoliberalismo.
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VIRANDO A PÁGINA DA REVOLUÇÃO
A reforma energética do presidente Enrique Peña Nieto realiza o sonho de seu predecessor, Carlos Salinas,1 presidente tecnocrata formado em Harvard que privatizou, entre 1989 e 1994, setores inteiros da economia e assinou com os Estados Unidos e o Canadá o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta). O tratado abriu esses países aos produtos, serviços e investimentos de seus vizinhos, resultando em um golpe severo ao setor agrícola e à indústria nacional, com exceção da terceirização e da produção descentralizada das multinacionais estrangeiras. Restava “liberar” o setor de energia. Quando as leis da reforma energética de 2013 forem regulamentadas, será fato consumado.
Perderam-se na memória as conquistas da Revolução Mexicana, a nacionalização dos hidrocarbonetos em 1938 e da eletricidade em 1960, as políticas de subsídio a combustíveis, gás e eletricidade, e os grandes trabalhos de infraestrutura impulsionados pelo Estado.
Em teoria, o petróleo e o gás permanecerão “propriedade da nação”, e a Pemex – a estatal dos hidrocarbonetos – e a Comissão Federal de Eletricidade (CFE) ainda serão empresas nacionais. Mas uma parte importante do lucro do petróleo, do gás e da eletricidade escapará ao Estado.
Para explorar novas reservas de petróleo e gás de xisto, a Pemex – encarregada, sob a coordenação de um organismo governamental, de definir a estratégia de desenvolvimento do setor – poderá se associar a empresas privadas nacionais ou a multinacionais estrangeiras. Essa colaboração acontecerá em duas modalidades: nos contratos de risco compartilhados com o setor privado (o investimento privado sendo remunerado, em caso de sucesso, por uma porcentagem do valor de mercado do produto) ou nas licenças de exploração concedidas às empresas (as quais destinarão uma porcentagem contratual ao Estado, mas permanecerão proprietárias dos hidrocarbonetos). A nação mexicana perderá, assim, uma parte de suas riquezas. No caso da petroquímica, do transporte de fluidos e da produção de eletricidade, novas empresas privadas participarão de concorrências diretas com empresas nacionais e embolsarão a totalidade do lucro dos produtos sem qualquer benefício ao Estado.
O Wall Street Journal alegrou-se: “Apesar de a necessidade de abrir os recursos energéticos do México a empresas privadas estar evidente há anos, aos olhos dos dirigentes políticos ela parecia impossível. As exigências da economia – e o desejo de que as novas possibilidades ganhem espaço – finalmente triunfaram sobre a história e sobre os interesses adquiridos”.2
A adoção dessas reformas é uma vitória para o México, afirma Peña Nieto, porque poderão aquecer o fraco crescimento do país (ao redor de 1% em 2013, contra 2,3% do Brasil); criar novos empregos na produção de eletricidade, na exploração do petróleo em águas profundas, no gás e nas minas; abaixar o preço da energia para o consumidor e reduzir a pobreza, que toca 45% da população.
A imprensa norte-americana vê uma vitória dos Estados Unidos. O Los Angeles Times afirma sem filtros: “O impacto [dessas reformas] poderia ser significativo se ampliar o boom da produção de gás de xisto para os Estados Unidos e o Canadá e redesenhar os esquemas de produção e consumo que definem as realidades geopolíticas”. No mesmo artigo, Dallas Parker, sócio de um escritório jurídico texano que trabalha para grandes petroleiras, reforça seus argumentos: “A Rússia e o Oriente Médio acompanham de perto a situação. O controle absoluto do mercado do petróleo e do gás está seriamente ameaçado”.3 (J.-F.B.)
Jean François Boyer é diretor de Le Monde Diplomatique no México, América Central e Estados Unidos.