A ADPF 635 e a separação entre os Poderes, que não pode se converter em salvo-conduto
A intolerância aos debates, com claro abuso de direito de liberdade de expressão, e uma aparente jogada às favas do diálogo, têm sido constantes
Os desacordos razoáveis fazem parte do conceito mais visceral de democracia e são as forças motrizes da mesma. Sempre que se faz necessário, é acionado um condão de restauração aos princípios da administração pública, que no Brasil, seguem sendo atropelados de forma sistemática.
No mais novo episódio desta máxima, não tão novo assim, o STF, depois de mais de 5 anos, no dia 3 de abril, decidiu conjuntamente sobre a ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas. O pedido foi julgado parcialmente procedente. Na petição inicial, o Estado do Rio de Janeiro deveria elaborar um plano visando à redução da letalidade policial, em face das graves lesões a preceitos fundamentais constitucionais. A Corte não manteve o entendimento inicial de estado de coisas inconstitucional, com a mudança do voto revisto pelo ministro relator Edson Fachin, ao que parece, frente à clara pressão do governador do Rio que vinha fazendo críticas à ADPF. A mudança de posição do STF em relação ao seu voto original sinaliza que temos que dar um basta na letalidade policial; respeitando sempre os direitos humanos fundamentais.
Esta disputa escancarou mais uma vez a polarização, retirou até dos diálogos institucionais a falta de prática quotidiana da razoabilidade e a proporcionalidade. A falta de diálogo institucional e as supostas invasões de competências parecem ter feito com que o sistema de freios e contrapesos petrificados na Constituição Federal ficassem claramente afetados.

Algumas determinações do STF ao Estado do Rio de Janeiro promoveram a instauração de inquérito policial pela Polícia Federal, para apuração de indícios concretos de crimes com repercussão interestadual e internacional, e que exigem repressão uniforme. Outras, apontavam graves violações de direitos humanos, propunham a reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas, e determinaram também que o Estado do Rio de Janeiro elaborasse um plano de reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas, observando os princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do Poder Público de forma permanente, por meio da instalação de equipamentos públicos, políticas voltadas à juventude e a qualificação de serviços básicos.
O desafio do Estado do Rio de Janeiro, portanto, é grande. Contudo, não é exclusivo do Rio, mas de todos os órgãos de segurança pública do país, uma vez que os mesmos problemas parecem ter alcançado os polos centrais dos poderes estaduais, municipais e federais. A intolerância aos debates, acompanhada de claro abuso do direito à liberdade de expressão e de um aparente desprezo pelo diálogo, tem sido constante.
O debate, parece não ser apenas sobre as questões dos direitos humanos, vaidade de polícias, ou invasões de competências, temáticas que inclusive têm sua absoluta razão de ser e devem ser discutidas em doses equilibradas, contudo, sem qualquer viés político-partidário, ainda que isso também faça parte do jogo democrático.
Fica clara a necessidade emergencial de resgatar a ideia de redemocratização idealizada pela Constituição Federal de 1988, sob o risco iminente de naufragarem as instituições e os objetivos mais caros à nação enquanto país. Os riscos se tornam evidentes caso não se resgatem os ideários constitucionais de equilíbrio e união entre os poderes nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal), de promoção e fiscalização do diálogo institucional, bem como o constante lembrete, às instituições e aos líderes, de que a Democracia deve ser preservada. Superar esses riscos é um projeto coletivo.
Citando, como petrificado por Aristóteles: “in medio stat virtus” (a virtude está no meio).
Mariana Cotta é jornalista e advogada, pós-graduada em Penal e Processo penal pela Escola Paulista de Direito. Membro da comissão de Segurança Pública e assuntos penitenciários da OAB/ DF.