A aliança fascista-liberal tupiniquim
É preciso que os brasileiros entendam quem ganha com toda esta experiência distópica. Em uma ponta, vence o fisiologismo político, encarnado na figura do “Centrão”, que cobra caro para manter uma aberração como Bolsonaro no poder
O sociólogo e economista húngaro Karl Polanyi (1886-1964) chamou de “duplo movimento” a relação que enxergava entre a difusão, a partir do século 19, do liberalismo econômico, com seu ideal de mercado autorregulável, e a intensificação da corrida imperialista entre as potências nacionais da Europa, berço do sistema capitalista[1].
Ao deixarem o destino da terra, do trabalho e das pessoas por conta do mercado, sob a égide do então padrão-ouro, os europeus precisaram, em um contramovimento, recorrer ao intervencionismo no exterior, a fim de compensar o enfraquecimento de mecanismos básicos de proteção social internos, como direito à moradia e à renda.
Não é um acaso que, em diferentes momentos da história, tenham-se firmadas alianças fascistas-liberais a fim de conter os ânimos da população diante dos assaltos do “moinho satânico” – expressão usada por Polanyi para se referir aos efeitos perniciosos da economia controlada pelo mercado sobre a substância humana e social.
Isso aconteceu, por exemplo, entre 1922-24 na Itália, com Mussolini, e em 1933, na Alemanha, com Hitler, conforme apontado pelo professor do Instituto de Economia da UFRJ, Carlos Eduardo Martins:
O fascismo-liberal não pretende estabelecer um Estado totalitário, mas um fascismo cirúrgico que produza o grau suficiente de heteronomia para manter a competição política sob controle e impor uma ditadura civil do grande capital[2].
Nessa mesma linha, a investida neoliberal no Brasil acentuada no governo de Michel Temer acabou encontrando na figura extremista de Jair Bolsonaro um meio eficaz para se aprofundar no país.
Enquanto distrai a população com bizarrices como “guerra ao comunismo”, “mamadeiras com formato de pênis” e “ditadura gayzista”, a gestão do atual presidente vai carcomendo as instituições democráticas e dando continuidade às políticas de austeridade e ao consequente desmonte do Estado brasileiro.
Flexibilizam-se direitos trabalhistas sob o argumento de que haverá mais contratações, porém o desemprego não para de crescer desde a reforma de 2017 – bem antes, portanto, do início da pandemia.
Diante da forte escalada inflacionária, grande parte do país é novamente jogada na fome e na miséria. E, como reflexo de um escandaloso teto de gastos projetado a partir de um ano com pífio crescimento do PIB, sucateiam-se ainda mais a saúde e o ensino públicos. Sem contar que centenas de milhares de brasileiros já foram a óbito graças à gestão federal da pandemia de Covid-19.
Apesar do quadro assustador e dos rompantes autoritários de Jair Bolsonaro, parte do mercado e representantes de outros poderes da República seguem apoiando e buscando diálogos conciliadores com um presidente que já cometeu a mais variada gama de crimes.
É preciso, afinal, que os brasileiros entendam quem ganha com toda esta experiência distópica.
Em uma ponta, vence o fisiologismo político, encarnado na figura do “Centrão”, que cobra caro para manter uma aberração como Bolsonaro no poder.
Em outra, especuladores e empresários que enriquecem com a liberalização de setores estratégicos como os de petróleo, gás e energia elétrica. Entre eles estão grandes bancos, fundos de investimentos e rentistas que lucram com fusões e aquisições e uma atuação pró-mercado de empresas estatais, enquanto brasileiros sofrem com a alta dos preços de energia elétrica, da gasolina e do gás de cozinha.
Há ainda o agronegócio, que fatura com exportações em meio à alta do dólar, ao passo que se formam filas para comprar osso de boi nos mesmos estados que produzem a carne que alimenta cidadãos de outros países.
Completando o pentágono fascista-liberal tupiniquim estão, de um lado, as forças armadas, que ocupam mais de 6 mil cargos no governo, e, do outro, os exploradores da fé alheia – ambos ampliando seus vencimentos/ dízimos e ganhando protagonismo na condução do país. E, sob as sombras dessa base, em uma relação de retroalimentação, estão, no campo, os grileiros e os extrativistas, e, nas cidades, as milícias.
Todos compondo uma fórmula que atende, além de seus objetivos particulares, a interesses externos, ao manter o país em condição de economia agroexportadora e sem perspectiva de desenvolvimento tecnológico e industrial, incapaz de se inserir de forma autônoma no sistema internacional. Ou seja, menos um concorrente em potencial.
Partindo da concepção braudeliana[3] de que o capitalismo é fruto de uma relação simbiótica entre o poder e o dinheiro, José Luís Fiori afirma que “as políticas liberais e livre-cambistas foram sempre a proposta e a linguagem do poder imperial vencedor em cada momento da história”[4].
Para isso, como se viu, contam com a atuação de grupos locais que orbitam a máquina pública sob o véu charlatão do proselitismo neopentecostal, nacionalista e liberal.
João Montenegro, jornalista e mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ.
[1] Cf.: POLANYI, K. A grande transformação: as origens de nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
[2] MARTINS, C. E. Escalada fascista no Brasil: as tarefas do campo popular e democrático. Blog da Boitempo, São Paulo, 9 out. 2018. Disponível em:<https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/09/a-escalada-fascista-no-brasil-as-tarefas-do-campo-popular-e-democratico/>. Acesso em: 13 dez. 2019.
[3] Para o historiador francês Fernand Braudel, o capitalismo é o “antimercado”, uma zona do alto lucro, marcada pela trapaça e corrupção, onde o objetivo final é a eliminação da concorrência. Nada mais distante, portanto, do que prega a ortodoxia liberal. (Cf.: BRAUDEL, F. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987)
[4] FIORI, J. L. Sistema mundial: império e pauperização para retomar o pensamento crítico latino-americano. In: FIORI, J. L. e MEDEIROS, C. A. (Org.). Polarização mundial e crescimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 26.