Apresentamos abaixo fragmentos inéditos escritos pelo anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). A compilação foi denominada “Jornal do Segundo Império”, uma referência ao período em que Luís Bonaparte (Napoleão III) governou a França, e será lançada na França em 2009.
4 de dezembro de 1851:
“Levanto-me às 5h30. Tive um sono febril, inflamatório, com intoleráveis pulsações das artérias. A crise é horrível. Um infame aventureiro, eleito por efeito de uma ilusão popular para exercer sua influência sobre o destino da República, está tirando proveito das nossas divergências civis para rasgar a Constituição, suspender as leis, perseguir, encarcerar os representantes e assassinar, por intermédio dos seus simpatizantes, aqueles que ao resistirem cumprem o mais sagrado dos deveres. Ele se atreve, apontando o punhal para a nossa garganta, a nos pedir para restaurar a tirania. Neste momento, Paris mais se parece com uma mulher amarrada e amordaçada, sendo violentada por um bandido. Se eu estivesse livre, me deixaria enterrar sob os escombros da República junto com os cidadãos que a ela se mantêm fiéis, ou ainda, eu iria viver longe de uma pátria que está se mostrando indigna da liberdade.”
9 de dezembro de 1851:
“Eu tive uma péssima noite. O desgosto me persegue. Estou sendo assediado por temores de toda natureza: o progresso das ciências e da filosofia desenvolveu em um nível extraordinário a elite das mentes na Europa. As massas, por sua vez, estão pouco diferentes do que eram na Idade Média. Nós chegamos a acreditar que, lançando mão da razão, poderíamos convencê-las da importância dos interesses da nação, da dignidade nacional, do amor pela liberdade. De nada adiantou. Os dois terços dos camponeses acreditam mais no padre da sua paróquia do que no seu advogado. A fascinação pelo imperador Napoleão segue mantendo a mesma intensidade, de tal forma que nenhuma ponderação é capaz de dissipá-la. O povo é um monstro que devora todos os seus benfeitores e libertadores. Ao contrário do que acreditávamos, não existe nenhum povo revolucionário. O que nós temos é apenas uma elite de homens que acreditaram ser possível, seduzindo o povo, impor suas ideias de bem público e fazer com que elas fossem aplicadas. Tudo comprova que daqui para frente, incentivar o povo a ter o arbítrio do seu próprio destino equivale a agir, a um só tempo, como otário e charlatão.”
11 de janeiro de 1852:
“Vale reconhecer que nós tentamos um grande feito quando convocamos 10 milhões de cidadãos para participar da ‘coisa pública’, uma grande iniciação que deveria pôr fim aos escândalos de todos os antigos poderes. As massas vilipendiaram seus iniciadores: o proletariado votou contra aqueles que lhe ofereciam esta extensão da liberdade. O proletariado é a ralé dos seres vivos entre os que apresentam uma figura humana. Eles são dóceis quando alvos de golpes, esquecem os benefícios que receberam e vivem pleiteando o direito de falar em vez de falarem: não são homens.”
1º de março de 1852:
“Foi o sufrágio universal e direto que matou a República. Foi a multidão que, após ter abandonado e traído seus representantes, elegeu para si um mestre. Se as experiências de 1799 e de 1804 não foram o suficiente, quem sou eu para fazer com que a de 1852 o seja? Foi comprovado que o povo é, por inclinação, favorável ao despotismo, hostil à liberdade. E também que todas as tiranias se comportam da mesma forma e seguem uma única política: a de destruir as classes médias, também chamadas de burguesas, sem nada deixar no seu lugar senão uma classe ignorante, lazarenta, com uma aristocracia de batina e outra de espada, além de um clero para servir como contrapeso. Este é o complô do qual Luís Bonaparte é o executor.”
15 de maio de 1853:
“A obra do século XIX será maior que a de 1789, sob todos os aspectos. Maior por causa de toda a diferença que pode existir entre a negação e a afirmação, entre a destruição e a edificação. Apressem-se, portanto, burgueses, a concluir sua obra industrial, antes que a mente humana, que de maneira alguma foi dominada toda ela por suas máquinas e seu comércio, recupere seus direitos! Ou vocês acham que poderão viver por muito tempo dos seus ágios, dos seus prêmios, dos seus descontos, das suas hipotecas? Vocês acham mesmo que o pensamento do homem possa se contentar com todo esse maquinismo, apesar das muitas maravilhas que ele produz? Vocês acham mesmo que não estaremos satisfeitos enquanto não tivermos um punhado de companhias de mineração, canais, ferrovias, bancos de crédito, de depósitos, de poupança, de seguros, de circulação, de descontos, de compensação; e o trabalho garantido, e o custo de vida barato? Tudo isso é matéria, diz respeito ao corpo social: a alma não se encontra nisso. E é de alma que nós estamos precisando. Pois então! Vejam bem que alma vocês estão desenvolvendo para si mesmos!”
22 de junho de 1853:
“Em 1789, a França obteve um ano de liberdade e recaiu, em seguida, na servidão. E enquanto ela amaldiçoava sua liberdade, adorando sua servidão, a revolução se propagava por toda a Europa. Foi quando outros povos receberam esta santa palavra que nós percebemos que a revolução havia sido benéfica. A França deu à luz ao socialismo de Saint-Simon e Fourier e ao comunismo de A. Comte, Cabet, P. Leroux, L. Blanc e a mim mesmo. Mas a França, supostamente revolucionária, rechaça o socialismo. E o socialismo lá se vai para o exterior. O socialismo penetra então a Itália, a Alemanha, os eslavos. É estudado até mesmo na Hungria, nas bordas do Danúbio, em Moscou, em volta do mar Negro! Só mesmo na França é que o rechaçam, da mesma forma que, entre 1799 e 1830, rechaçaram a revolução! E, ainda assim, o socialismo reina na França, por efeito da escola de Saint-Simon. E nós nem sequer temos consciência disso. Seremos socialistas daqui a 30 anos! Sempre com um tempo de atraso em relação a nós mesmos, um período equivalente ao de duas ou três gerações!”
2 de abril de 1854:
“O golpe de Estado de 2 de dezembro abriu definitivamente uma nova era para a França. Após 1814, a nação percebeu que se tornara indiferente em matéria de religião. E foi em vão que a Restauração, assim como hoje o Império, tentou galvanizar o cadáver do Cristianismo. Agora, depois de uma série de experimentos – foram 14 mudanças de governo em 65 anos –, ela alcançou a indiferença política, ou dinástica, tal como havia alcançado a indiferença religiosa. Disso, pode-se deduzir que na França nós compreendemos que a forma do governo não é nada, que é uma questão secundária; que o governo é algo subalterno; que o ponto capital não é a ordem dentro do Estado, mas sim a ordem entre os interesses. A lei é ateia e anárquica: tal é a verdadeira França desde 1852.”
9 de julho de 1858:
“A França encurralada. Isso está acontecendo de todas as maneiras. Em relação ao exterior: o isolamento vai se reconstruindo. A Inglaterra, a Áustria, a Prússia, a Alemanha, a Bélgica, a Suíça e o Piemonte, e até mesmo o papa, todos nos são hostis! Só nos resta a aliança suspeita e muito perigosa com a Rússia. No interior: seja nas finanças, no comércio, na indústria, na agricultura, nós não estamos conseguindo dar nem sequer um passo à frente. A popularidade está esgotada; a burguesia desconsiderada; a plebe odiada e desprezada; os partidos desgastados. Nós estamos sendo levados num turbilhão. Estão falando numa restauração de feitura orleanista. De tal forma que, desde 1789, nós teremos conhecido quatro dinastias, contando a República como uma delas, sucessivamente instaladas, derrubadas, e restauradas: no total, terão sido oito! Quem produziu isso? As corrupções da França burguesa; a excitação excessiva dos apetites; o erro dos governos, os quais enfatizaram ora a força ou o maquiavelismo, ora as paixões e os interesses, mas nunca o direito. Pobre burguesia! Ao obedecer apenas a cupidez ela cavou seu túmulo. Ela perdeu sua honra e dinheiro. Contudo, a sua missão era bonita e até mesmo lucrativa. Esta consistia em servir como monitor da plebe. Orientar a educação do operário e do lavrador; iniciá-los à ciência, à vida política e social; escolher em suas fileiras maridos e esposas para serem os seus herdeiros e rejuvenescerem o sangue da sua prole; pôr um fim à antiga barbárie, remover essa ferrugem que é a nossa desonra. Mas não: esses devoradores sempre exigem mais exploração, e, portanto, mais servos. A burguesia merece ser castigada, despojada. Em 1852, todos aplaudiam esse governo incomparável que criava como por encanto os tesouros, erguia uma ponte de ouro para os burgueses, garantia ganhos a todos aqueles que se dispunham a especular, duplicava os capitais etc. Agora os boçais estão arrependidos. Eles se insurgem contra o imperador, que nada fez senão atender às suas exigências com um zelo que foi muito além do que eles mesmos poderiam esperar.”
Pierre-Joseph Proudhon foi um dos mais importantes anarquistas da França. Viveu entre 1809 e 1865 e é autor de obras como A propriedade é um roubo (L&PM editores).