A batalha do voto
As disputas eleitorais em curso não podem ser vistas isoladamente. Não se trata da escolha formal deste ou daquele candidato. Mas do confronto entre diferentes projetos de sociedade – confronto que expressa as tensões e conflitos presentes no continente.
Por algum motivo que precisa ser mais bem investigado, e que escapa à compreensão de muitos, o voto parece ter se transformado em uma arma das maiorias despossuídas da América Latina. Aquele voto comprado com promessas enganadoras ou mesmo com dinheiro vivo, aquele voto que garantiu desde sempre o governo das elites, voltou-se em vários países contra esses mesmos grupos dominantes e afastou-os do poder. E isso ocorreu dentro das regras do jogo do modelo democrático vigente, em eleições e plebiscitos que não puderam ser de forma alguma contestados.
A questão é extremamente atual. Pois, agora, se anuncia uma terceira onda eleitoral contestadora. Nela se apresentam candidatos amplamente conhecidos, mas sem tradição de participação em partidos políticos. É o caso de Rigoberta Menchú, líder indígena, Prêmio Nobel da Paz, que neste mês de setembro participa das eleições na Guatemala, em uma estratégia menos voltada à vitória nas urnas do que à construção de espaço político. É o caso do ex-bispo Fernando Lugo, que surge como candidato favorito nas eleições de abril de 2008 no Paraguai.
Na primeira onda, foram as eleições no Brasil, na Venezuela, no Uruguai, na Argentina. A segunda onda envolveu a Bolívia, o Equador, a Nicarágua e o Chile. No Brasil e na Venezuela, os governos se reelegeram. Na Argentina, as mesmas forças políticas tentam agora a reeleição na pessoa da senadora Cristina Fernández de Kirchner.
Não há dúvida de que tais governos guardam grandes diferenças entre si e que vários deles acumulam atualmente duras críticas, por terem frustrado amplas bases sociais que alimentavam expectativas de mudanças. Alguns desses governos buscam, na verdade, uma conciliação de interesses impossível de ser alcançada, terminando por favorecer os tradicionais detentores do poder. Mas não é esse o foco de nossa análise. O que importa enfatizar aqui é o simples fato de esses governos terem chegado a se constituir por meio do voto. Trata-se de problematizar velhas fórmulas de interpretação sociológica, que atribuem ao clientelismo, ao populismo, ao controle da mídia a continuidade das elites latino-americanas no poder. Se assim fosse, como interpretar as eleições dos últimos cinco anos? Esses mecanismos de controle deixaram de ser efetivos?
Vendo-se sem poder para enfrentar o voto popular, os setores conservadores da Venezuela tentaram o golpe em 2003, com o apoio dos Estados Unidos. E foram rechaçados pela mobilização de centenas de milhares de pessoas, que saíram às ruas para defender o presidente eleito, a nova Constituição e as regras democráticas. A mesma manipulação golpista aconteceu, desta vez com sucesso, nas últimas eleições realizadas no México, em agosto de 2006. Fraudado pelos setores conservadores, também com o apoio dos Estados Unidos, o resultado nominal das urnas provocou inúmeras manifestações de protesto, entre elas, a do presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso, que declarou a vitória de Lopez Obrador, o candidato das oposições.
As conseqüências geopolíticas dessa vitória seriam, de fato, tão profundas no novo cenário latino-americano que não restou outra alternativa aos grupos de interesse no poder senão violar mais uma vez seu próprio modelo de democracia. Resultado disso, o México é hoje um país fraturado, dividido ao meio, onde grandes mudanças aguardam sua hora e sua vez. Tudo indica que o movimento zapatista em Chiapas e, agora, as mobilizações em Oaxaca apenas prenunciam os novos tempos.
Depois de cerca de 20 anos de ditaduras, as democracias que se implantaram no continente frustraram enormemente as expectativas das grandes maiorias. Na era neoliberal dos anos 1990, elas não foram capazes de operar nem uma distribuição mais eqüitativa da renda e das riquezas, nem a melhoria da qualidade de vida das populações.
Em decorrência disso, vários analistas políticos apontaram a possibilidade de que a decepção com os resultados esperados fragilizasse ainda mais os fundamentos democráticos de nossa cultura política.
Houve mesmo interpretações equivocadas de pesquisas recentes. Elas indicaram acertadamente a insatisfação popular com as democracias vigentes, mas interpretaram esse dado como uma insatisfação com a democracia em si, enquanto forma de governo, ensejando especulações de que as maiorias poderiam optar por governos autoritários, desde que estes resolvessem seus problemas.
Abordagens como essas não conseguem explicar os recentes fenômenos eleitorais, nos quais o voto, instrumento por excelência do modelo liberal de democracia, se transforma em ferramenta de mudanças.
Neste novo cenário, o voto, vale dizer, a expressão da consciência individual, da atuação cidadã, passa a ser o centro de importantes disputas. Defender as regras do jogo, a democracia em sua forma atual, e eleições limpas, ainda que pareça expressar uma postura conservadora, passa a ser uma bandeira de luta dos movimentos sociais. É de se perguntar se já houve um momento em que a democracia tenha sido tão valorizada em nosso continente.
A crítica social ao modelo político liberal, no qual a participação cidadã se dá, apenas periodicamente, pela eleição de representantes, continua atualíssima. A justa insatisfação que tal modelo provoca faz com que os partidos políticos tradicionais, seus parlamentares e mesmo os Congressos sejam as instituições de menor credibilidade junto às maiorias. E suscita aspirações por reformas políticas e novas Constituições.
Temas com os quais temos convivido nos últimos anos, como a transparência dos atos de governo, os orçamentos participativos, os plebiscitos e referendos revogatórios, o controle social e até mesmo a participação direta da cidadania na formulação e gestão das políticas públicas são propostas que podem conter, na sua positividade, novas regras para o aprofundamento e a radicalização da democracia.
Os plebiscitos são também expressões deste fenômeno. Nos anos recentes, realizaram-se na América Latina plebiscitos sobre temas cruciais para o futuro de nossos povos. O que eles representaram em sua dimensão cívica e de cultura política?
No Brasil, o Plebiscito da Dívida Externa, realizado no ano de 2000, uma iniciativa da sociedade civil à qual o governo se opôs, mobilizou em sua preparação 100 mil voluntários e contou com 6 milhões de votos. Demandou uma auditoria da dívida externa e a recusa de se firmar um acordo com o FMI – decisões democráticas que o governo brasileiro ignorou.
O plebiscito de outubro de 2004, no Uruguai, assegurou, com mais de 60% dos votos, que a água seja considerada um bem público, gerido pelo Estado. Foi uma vitória da cidadania contra a onda de privatizações, que trouxe, por toda parte, uma ainda maior precarização das condições de vida.
Outro plebiscito, que deverá ocorrer no próximo dia 7 de outubro na Costa Rica, incidirá sobre o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos. A possibilidade de realizá-lo foi conquistada pelas maiores mobilizações populares a que aquele país já assistiu, congregando, em sua principal manifestação, ocorrida em fevereiro deste ano, mais de 100 mil pessoas – número extremamente expressivo para uma nação tão pequena. A partir da pressão cidadã, o Governo Arias viu-se obrigado a convocar o plebiscito.
E o movimento pelo “Não ao TLC” organizou nada menos do que cem comitês cívicos para um trabalho de porta em porta junto à população. Para que o resultado do plebiscito tenha poder vinculante, será necessário o comparecimento de um milhão de pessoas. O movimento social pretende garantir tal participação.
A disputa – mediante o voto – pelo estabelecimento das novas regras da democracia está presente, neste momento, também na elaboração das Constituições da Bolívia e do Equador, gerando tensões e impasses. No caso da Bolívia, passado um ano da criação do Congresso Constituinte, nada foi aprovado.
E os 277 representantes eleitos tiveram que prorrogar o prazo de seus trabalhos até dezembro próximo, para tentar um acordo, uma vez que a polarização social se acentua e nenhuma das forças isoladamente tem condições de fazer prevalecer suas propostas. O mesmo se dá no Equador, onde o presidente eleito, Rafael Correa, que não apresentou candidatos pelo seu partido, luta hoje para conquistar a maioria das cadeiras do Congresso Constituinte, criado por força de amplas mobilizações sociais.
Essas disputas só são compreensíveis se reconhecermos a presença em cena de novos atores sociais e políticos.
A batalha do voto não pode ser vista isoladamente. Não se trata do exercício formal de um mecanismo de escolha de candidatos. Trata-se, isto sim, de uma disputa entre projetos de sociedade, que expressa as tensões e conflitos presentes no continente latino-americano. Um desses projetos propõe a continuidade da agenda neoliberal e reafirma os privilégios das elites. O outro, ou os outros, talvez ainda não tenham claro o que querem, mas olham preocupados para o futuro, sabendo que a história não acabou e que é sua tarefa garantir condições dignas de vida para esta e as próximas gerações.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.