“A bela aventura de um jornal de jornalistas”
Produzir um jornal independente das pressões políticas e financeiras: essa perspectiva que animou tantas batalhas intelectuais e jornalísticas permanece atual. O testemunho do ex-diretor do Le Monde sobre o incessante beliscar da autonomia editorial indica a aspereza da luta a ser travadaSerge Halimi
Não é comum que o ex-diretor de um dos jornais mais importantes do país tenha sido, ao mesmo tempo, jornalista econômico e romancista de sucesso, além de grande repórter sobre a África e administrador de um jornal envolvido no turbilhão de uma equação financeira insolúvel.
Essa mesma equação o levaria a ser demitido pelos novos acionistas do grupo de imprensa sem que a redação do jornal pudesse ou quisesse se opor: ao contrário, ela teve de aprovar sua própria perda de controle sobre uma empresa que comandava desde o Libération. Eric Fottorino concluiu seu relato com pluma elegíaca: “Entrava na casa com o coração leve, tão obstinado, quase correndo, apressado para fazer as apurações jornalísticas, quando colocaram um fim a essa utopia de 65 anos, a esse sonho de jornalismo autogestionário, à bela aventura de um jornal de jornalistas. […] Eu ficaria marcado como o diretor que vendeu o Le Monde”.1
Por cerca de dez anos, o Le Mondeparecia prosperar sob a direção de um trio insólito, mas solidário: Jean-Marie Colombani (“JMC”), eleito diretor em 1994; Edwy Plenel, redator-chefe e depois chefe de redação; e Alain Minc, presidente do Conselho Fiscal. O jornal foi progressivamente tomado por uma “loucura de grandeza que levava JMC a dizer que um grupo de comunicação seria intocável se pesasse ‘1 bilhão de euros’”. Enquanto o jornal se endividava, buscava destruir quem não pertencia ao pequeno círculo dos escolhidos, que compreendia Édouard Balladur e Bernard-Henri Lévy (BHL). Fottorino confessa: “Nunca foi fácil justificar à redação que, por pedidos apressados de Plenel, apoiados por Colombani, eu tinha de publicar várias pesquisas de BHL na Argélia, no Kosovo ou sobre o teatro dos conflitos esquecidos na África e na Ásia”.
Imagem belicosa
O entusiasmo do Le Mondepor BHL e o comportamento conivente ou vingativo do Monde des Livresaté a partida do trio contribuíram para que o jornal adquirisse “uma imagem belicosa e desagradável, inclusive caluniosa. O jornal se lançou na caça ao homem, distribuindo os pontos positivos e negativos, dando uma estocada ou demonstrando uma impressionante indulgência”. Nesse registro de “indulgências”, o autor relata um almoço mais que amistoso ao qual Colombani o levou em 2006 no Ministério do Interior, então ocupado por Nicolas Sarkozy. Os dois jornalistas se encontraram aí com Minc, que, aparentemente bem instalado, relia as provas de um livro do futuro presidente da República.
Em 2003, a obra de Pierre Péan e Philippe Cohen, La face cachée du “Monde”[A face oculta do Le Monde], deu um golpe no prestígio do “jornal de referência”. Fottorino admite: “Apesar de seus incríveis defeitos, o livro havia impactado justo os fiéis ao jornal, que estavam cada vez mais descontentes com sua arrogância, sua inclinação política às ideias de Édouard Balladur e suas agressões características, das quais o caso Baudis é o pior exemplo e também o mais nocivo”.
Ao longo das páginas, alguns perfis foram construídos de forma ácida. Colombani, por exemplo, é descrito como aquele que, em 2007, fez campanha para Sarkozy, mas pedia votos a Ségolène Royal. A Plenel se atribui uma “arrogância em acreditar que ele era um mito vivo do jornalismo. […] Excluir era sua forma de dirigir, e a humilhação coletiva, sua técnica detestável”. Minc, por sua vez, “sabia de tudo sempre quando alguém lhe dizia algo e não havia nada em que ele já não houvesse pensado. Ele sabia tudo. […] Ninguém se torna amigo de Alain Minc, se torna seu marionete”.
Apesar de o autor contar de maneira cativante sua experiência de jornalista que conheceu a belle époquedo diário francês – a época da influência, das pesquisas de longa duração, dos confrades cultos e capazes de se informar por outros meios que não o Google –, o que chama a atenção são os relatos de comandos redacionais e depois industriais de um jornal endividado. E que não raro cativam.
Cerco financeiro
Dois episódios são elucidativos. Em maio de 2009, em um editorial, o diretor do Le Mondecondenou o desvario e a soberba de Sarkozy. Sucessivamente, Vincent Bolloré, amigo do chefe de Estado, anunciou que pararia de imprimir seu jornal gratuito Direct Matin nas rotativas do Le Monde; o Journal du Dimanche, que pertencia a Arnaud Lagardère, outro amigo de Sarkozy, avisou que mudaria de gráfica; finalmente, Les Échos, de propriedade de Bernard Arnault, também amigo do presidente, denunciou o superfaturamento do contrato que tinha com a gráfica do Le Monde. “O poder tentava asfixiar-nos pela via industrial”, resume Fottorino.
Os banqueiros também se mostraram tão vingativos quanto os presidentes. Quando, já enforcado, o Le Mondebuscou o apoio de seus acionistas, o BNP Paribas, patrocinador histórico do jornal, não atendeu aos pedidos. Uma ligação telefônica revelou a notícia a Fottorino, ocasião em que ele conversou por uma hora com Michel Pébereau, proprietário do banco. Pébereau, apesar de ter tomado pessoalmente a decisão – funesta para seu interlocutor –, preferiu conversar sobre outras coisas. Mais adiante, explicaria os motivos de sua recusa: não havia gostado de uma reportagem do Le Mondeque sublinhava o papel central do BNP Paribas no “capitalismo de compadres à francesa”. Pébereau, membro de vários conselhos de administração de empresas do CAC 40 [grupo das empresas francesas de melhor desempenho financeiro], era citado na matéria. Após esse golpe, Fottorino meditou sobre o risco ao qual havia submetido a redação: “Sem dúvida, no momento em que discutíamos nosso futuro, não era oportuno irritar justamente aquele que tinha parte da solução nas mãos. […] Incomodar nos condenava à miséria? De qualquer forma, era tarde para voltar atrás”.
Demasiado tarde. Sem novos mecenas, o Le Mondefoi vendido.2 E, pouco depois, Fottorino foi demitido pelos acionistas que ele mesmo havia introduzido. Pouco eloquente sobre esse último episódio, pelo menos tirou dele uma lição: “O Le Mondejuntou-se ao grupo desses meios de comunicação renomados cuja sorte está, hoje, ligada ao capital e à boa vontade dos capitães da indústria ou das finanças”. Se antes o Le Mondeera advogado da “globalização feliz”, agora é sua presa.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).