A burocracia, coitada, é mesmo a última a saber?
Como a disputa pela Procuradoria-Geral da República ilustra o desmonte de um processo de fortalecimento institucional do Brasil
“O Direito constitucional passa, o direito administrativo permanece”. A frase de Otto Mayer, escrita em 1924, é retomada por Gilberto Bercovici ao analisar a persistência da estrutura administrativa de 1967 após a ditadura militar. A reflexão, que poderia parecer datada, renova-se atualíssima. No Brasil do bolsonarismo, em que o Judiciário se imbricou em um projeto de poder cujos efeitos colocaram Supremo Tribunal Federal e Lava Jato em uma armadilha mútua, a advertência de Mayer pode ser lida como uma ironia profética.
A Vaza Jato tem levantado questões sobre a imparcialidade do juiz, a agenda do Sistema de Justiça e uma série de pontos sobre o funcionamento da própria Justiça – temas por si muito “perigosos” para um Judiciário que há pouco mais de uma década era um ilustre desconhecido. Contudo, ainda que a visibilidade alcançada tenha um efeito devastador a médio e longo prazo, ela representa apenas um aspecto da questão. Por baixo do que é visível, há uma fratura institucional que se acentua e tende a retroceder cerca de duas décadas nas políticas estatais, sobretudo no que diz respeito à autonomia das carreiras judiciais.
Esse é o argumento que nos leva de volta a Otto Mayer. Estamos olhando o Supremo, sua disputa pública com os lavajatistas e mesmo seu processo decisório emparedado entre uma linha acessória ao Executivo em determinadas pautas, a rejeição de outras (sobretudo nas relativas a moral e costumes) e a própria sobrevivência. São questões importantes, mas há uma mudança institucional que se opera por baixo dessa camada que merece toda a atenção.
Dia 9 de agosto a Vaza Jato completou exatos 2 meses. O retrato de agora mostra um Deltan Dallagnol desgastado, uma voz sozinha no deserto a reclamar dos métodos dos vazamentos e outras estratégias que a própria Lava Jato utilizou. Moro segue na mesma toada, capturado e devedor do bolsonarismo que lhe apoia. Eis a parte do debate político que todos acompanhamos como uma trama de novela, daquelas escritas por Gilberto Braga que paravam o país nos anos 1980. Esse é o terreno dos personagens, da narrativa e do jogo político. A novidade é ver Judiciário e Ministério Público protagonizando esse enredo.

Sob a superfície, uma estrutura institucional se dissolve. Estamos às vésperas da escolha do novo procurador-geral da República (que representa apenas o Ministério Público União, o Ministério Público Estadual está fora). Na lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) figuram três nomes, obedecendo a ordem de votação: o subprocurador Mário Bonsaglia, a subprocuradora Luiza Frischeisen e o procurador regional Blal Dalloul. Correm por fora alguns nomes como o da procuradora-geral Raquel Dodge que, mesmo sem constar na lista, pleiteia publicamente uma recondução. O atual subprocurador-geral, Augusto Aras, é outro que faz questão de deixar sua candidatura inequivocamente exposta. Bem cotado, Aras já se reuniu diversas com o presidente. Assim, forma-se a rede de apostas e, sem previsão legal para sua existência, o Ministério Público vê sua estimada lista, cuja referência passou a ser obedecida desde de 2003, durante o primeiro governo do PT, virar um indicador esmaecido da vontade da categoria.
O sonho dos tuiuiús
A discussão sobre a existência da lista gera debates diversos, inclusive acadêmicos, que vão desde o caráter endógeno da escolha até os que alegam como essa definição por parte da categoria garante independência junto ao Executivo. Fato é que desde 2003 até a escolha de Dodge, em 2017, por Michel Temer, o Ministério Público ganhou uma autonomia ímpar na definição de quem chefiaria a instituição. Mesmo sendo a primeira mulher à frente da PGR, Dodge ficou em segundo lugar na tríade da ANPR, que havia sido encabeçada por Nicolao Dino – naquele momento rompia-se uma tradição.
Há uma história singela, quase uma fábula, que ilustra bem o momento de mudança: conhecidos como “tuiuiús”, aves migratórias do Pantanal, o grupo que esteve na cúpula da PGR entre 2003 a 2015 ganhou esse apelido nos anos 1990 por conta do seu desejo de levantar voo. Ao chegarem ao poder, de muitas formas eles foram vítimas do próprio protagonismo político que exerceram. O reflexo acontece para fora, na relação com a sociedade, Executivo e Legislativo, mas também para dentro. Há grandes chances de que a expectativa de voar volte ao plano da quimera.
A institucionalidade perdida
É preciso insistir no ponto de que essa não é uma mera questão de mudança “ideológica” de governo. Desde a eleição de Fernando Collor (1990-1992), ainda que com variações a depender de cada governo, o Brasil avançou na criação de um aparato institucional em uma resposta a um ideário de “modernidade”. Os exemplos são diversos expedientes, desde novas leis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, até o fomento de políticas públicas como Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em 1996.
As décadas de 1990, 2000 e 2010, com matizes diversas, criaram um aparato institucional que hoje vai se desmontando. Continuamos defronte à analogia de Mayer. Nossos olhares miram ávidos para o Supremo e as disputas na cúpula. As decisões sobre a constitucionalidade desta ou daquela lei geram debates acalorados. Enquanto isso, sorrateiramente, uma estrutura e mesmo um entendimento sobre a burocracia fina do 2o escalão para baixo sinaliza uma mudança que não parece restrita a este ou aquele modo de governar.
O problema é amplo, mas a disputa no Ministério Público, em pauta nos últimos dias, é um ótimo gancho para ilustrar a questão. O mais irônico nesse quadro geral é perceber como o Sistema de Justiça abandona conquistas que lhe custaram tão caro. Às vésperas da eleição para a PGR, Augusto Aras deu uma longa entrevista para a Folha de S.Paulo sinalizando seu nome como uma opção conservadora para o governo Bolsonaro. Antecipa quem nomearia para a equipe, deixa claro sua convergência às pautas do presidente e chega a defender o excludente de ilicitude para casos de morte provenientes da “legitima defesa da propriedade”. Se escolhido, Aras será o primeiro procurador geral fora da lista em 16 anos. A mudança de conteúdo está atrelada a uma mudança institucional. Ainda que excluíssemos qualquer interesse social da análise (vale lembrar que o Ministério Público pós Constituição de 1988 era conhecido como o “guardião da cidadania”) e entendendo o caráter político de algumas das instituições, convém perguntar num mero jogo retórico: a burocracia, coitada, é mesmo a última a saber?
Grazielle Albuquerque é jornalista, doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo. Seu trabalho se volta para a atuação do Sistema de Justiça, em especial para sua interface com a mídia.