A “cidade olímpica” e sua [in]sustentabilidade
Não podemos compreender aspectos cruciais da gestão das metrópoles sem levar em consideração a importância dos megaeventos, pela ampla coalizão de atores e pelo formidável volume de recursos que são capazes de acionar, bem como por seus efeitos de ruptura nas diversas dimensões do espaço socialFernanda Sánchez
As políticas urbanas neoliberais, que conhecemos no Brasil há cerca de duas décadas, vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia simbólica que afirma visões de mundo, noções e imagens, as quais acompanham as ações de reestruturação urbana. Operações para reconversão de territórios e megaequipamentos culturais ou esportivos são acionados para soldar as forças sociais das cidades e trazidos pela mão de coalizões de promotores urbanos que apresentam projetos ditos consensuais e competitivos.
Perante as realidades da fragmentação, tais operações urbanas procuram integrar simbolicamente a cidade e envolvê-la em uma política-espetáculo. O êxito do governo brasileiro e, em especial, do Executivo municipal da cidade do Rio de Janeiro em conquistar a condição de país-sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos Rio-2016 pode ser tomado como exemplo da produção dessa política-espetáculo.
Trazemos algumas notas acerca do Projeto Olímpico e das escolhas éticas, políticas e espaciais que o definem e que buscam sustentar a insustentável cidade que configuram. Não podemos compreender aspectos cruciais da gestão das metrópoles sem levar em consideração a importância dos megaeventos, pela ampla coalizão de atores e pelo formidável volume de recursos que são capazes de acionar, bem como por seus efeitos de ruptura nas diversas dimensões do espaço social.
Entre suas justificações, o chamado “legado”: projetos ambientais, equipamentos e instalações esportivas, transportes, inclusão social. A revisitação de outras cidades-sede permite observar que em Montreal, Atlanta, Atenas, Pequim ou Cidade do Cabo os benefícios sociais do urbanismo olímpico são frustrantes. A retórica dos efeitos positivos não se sustenta, como mostraram diversos autores na 1ª Conferência Internacional Megaeventos e Cidades, em 2010.1
Tal avaliação procede também para o caso dos Jogos Pan-Americanos Rio-2007. Em sua dimensão urbanística, as intervenções realizadas mostraram-se pontuais, sem relação consistente com a cidade. Estava presente a lógica elitista da cidade, manifesta na estratégia de concentrar o evento em áreas nobres, visando, ao mesmo tempo, à segurança e ao conforto dos participantes e, sobretudo, oferecer ao mundo uma imagem urbana supostamente “civilizada” e “moderna”. Longe, portanto, de qualquer preocupação em utilizar o evento para redistribuir, no espaço da cidade, as benfeitorias.
A Barra da Tijuca e seu entorno foram eleitos para centralizar as intervenções. Mediante uma ideia amesquinhada de cidade, foi mostrado como sinal de êxito o sucesso imobiliário do empreendimento da Vila Pan-Americana. Ressaltamos, contudo, que ela teve como principal efeito urbano alimentar o processo especulativo de valorização das terras.
Em outra área do Rio de Janeiro se encontra a maior instalação esportiva edificada para aquele evento: o Estádio Olímpico conhecido como “Engenhão”, na zona norte. Não guarda nenhuma relação com o bairro onde está instalado, enquanto equipamento propulsor de desenvolvimento urbano, como foi então justificado. Esse monumental equipamento obedece a uma lógica relacionada com outra escala: a da cidade olímpica.
Ainda que a celebração de tal evento, em 2007, nos permita hoje observar seus escassos efeitos urbanos positivos, reconhecemos que o trabalho político-simbólico em torno de sua realização permitiu à coalizão dominante construir a ideia de sucesso a respeito desse que foi considerado o primeiro megaevento carioca do século XXI. A partir de então, o consenso vem sendo administrado mediante a venda de uma mercadoria difusa, mas poderosa: a ilusão do renascimento urbano por meio dos Jogos.
Apesar da pressão resultante desse expressivo investimento simbólico em busca de consenso, conflitos foram explicitados, assim como algumas conquistas. Entre elas, destacamos a permanência do bairro popular Vila Autódromo diante das sucessivas ameaças de remoção. Também de grande relevância política, urbanística, ambiental e social foi a defesa do Parque do Flamengo como patrimônio público, então ameaçado por empreendimento privado para a Marina da Glória.
O projeto para os Jogos de 2016 e a chamada “conquista” do Rio de Janeiro para sediar a Olimpíada foram o desenlace de um longo processo no qual vem se afirmando uma concepção de cidade e, portanto, de políticas urbanas profundamente influenciada pelo pensamento neoliberal.
As formas pelas quais se impõe esse projeto indicam ainda uma nova articulação entre poder político e econômico local com empresas e instituições extralocais. Com efeito, o planejamento urbano voltado aos megaeventos reúne um conjunto de processos que constrói uma “cidade da exceção”, conforme Carlos Vainer. Acrescente midiatização dos megaeventos passa a controlar diversos aspectos da imagem urbana, com impactos nas liberdades civis e no direito à cidade.
Para esse evento, segue a tônica geral que enaltece a modernidade espetacular da Barra da Tijuca. Mesmo com a inclusão da Zona Portuária no projeto, como novo símbolo-vitrine da ideia de cidade, tal orientação permanece. A reedição carioca do modelo waterfront praticado em diversas cidades do mundo combina, em sua agenda, equipamentos culturais, âncoras dos processos de renovação, torres de escritórios e moradias de alto padrão.
As obras foram concedidas integralmente a um consórcio de grandes empresas privadas. A operação, que mobilizou fundos públicos do FGTS, assenta-se em área com cerca de 75% de terrenos de propriedade pública. Essa notável situação fundiária do Porto, não fosse a orientação pró-mercado do projeto, permitiria ao poder público desenvolver programas de interesse social, como equipamentos metropolitanos, habitação inclusiva e lazer. Entretanto, não constam no projeto instrumentos claros de captura pública de mais-valias para esses fins. A privatização do planejamento, a execução das obras e a gestão da área por quinze anos efetivam a transferência de bairros inteiros para o controle privado. Esse quadro expressa a desigual distribuição de riscos e benefícios entre o setor público e o privado, naquela que constitui a maior PPP (parceria público-privada) do país, com a privatização dos ganhos e a socialização das perdas.
Os promotores dos megaeventos, em nome da “inserção competitiva” da cidade, convocam os cidadãos a um engajamento irrestrito.Nesse contexto, a cidade-mercadoria vem se atualizando, demandando novos esforços de reflexão. Ao estimular a reinvenção da cidade e sua nova inscrição mundial pela via dos megaeventos e dos grandes projetos urbanos, esse modelo de cidade e seu urbanismo de resultados têm contribuído para potencializar a desigualdade: ao mesmo tempo que são renovados os espaços em ritmo intenso e a prazo fixo, ficam diretamente comprometidas as receitas públicas e as políticas sociais, favorecendo a multiplicação de conflitos.
*Fernanda Sánchez é Professora do Departamento de Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do CNPq, do GPDU-PPGAU-UFF e do laboratório Ettern- Ippur- UFRJ.