A CLT na linguagem e a cultura infantil
As crianças que rejeitam o emprego formal frequentemente vêm de famílias de classe média ou alta, para quem a precarização do trabalho aparece inicialmente como liberdade e não como necessidade. Para filhos de trabalhadores precários, a carteira assinada ainda representa uma aspiração de segurança raramente alcançada
Em um fenômeno social revelador das transformações culturais no Brasil contemporâneo, crianças e adolescentes passaram a utilizar a sigla “CLT” (Consolidação das Leis do Trabalho) como insulto entre seus pares. Conforme reportagem recente, jovens expressam aversão ao trabalho formal, associando-o a fracasso, pobreza e limitação, em contraste com o empreendedorismo idealizado como caminho para a riqueza e liberdade. Esta manifestação cultural, aparentemente espontânea, revela processos históricos mais amplos de reconstrução dos valores relacionados ao trabalho e à posição social do trabalhador brasileiro.
A formação desta nova percepção não ocorre no vácuo, mas reflete transformações profundas nas relações materiais de produção e nos discursos dominantes sobre sucesso e fracasso. Como observa Ricardo Antunes, “as metamorfoses do mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo produzem não apenas novas modalidades de trabalho precário, mas também novos valores e ideologias que naturalizam e glorificam a instabilidade laboral como liberdade e autonomia.”[1] Esta reconfiguração ideológica penetra no imaginário infantil e juvenil através de múltiplos canais, especialmente as redes sociais.
O que surpreende nesta rejeição juvenil à legislação trabalhista é o apagamento histórico das lutas sociais que resultaram nas proteções legais hoje existentes. A CLT, promulgada em 1943 e ampliada pela Constituição de 1988, representa conquistas coletivas obtidas através de décadas de mobilização e resistência dos trabalhadores. Antes dela, o cenário laboral brasileiro caracterizava-se pela informalidade generalizada, jornadas exaustivas e completa ausência de proteções básicas, com trabalhadores vulneráveis a condições insalubres e demissões arbitrárias.
A pesquisadora Graça Druck analisa que “o processo de precarização do trabalho intensificado nas últimas décadas vem acompanhado por uma ressignificação discursiva que transforma insegurança em liberdade, instabilidade em oportunidade, submetendo subjetividades a uma nova racionalidade neoliberal.”[2] Este fenômeno se traduz na emergência de figuras como os “coaches mirins” que desdenham da educação formal e apresentam o trabalho regulamentado como caminho para a mediocridade, enquanto promovem supostos atalhos para enriquecimento rápido.
A transformação cultural que faz com que as crianças vejam na proteção trabalhista um símbolo de fracasso, revela um processo de reconfiguração da consciência social. Tal mudança não surge espontaneamente, mas é produzida através da experiência cotidiana em um ambiente saturado por narrativas que glorificam o empreendedorismo individual e desvalorizam formas coletivas de organização e proteção social. As falas infantis que associam trabalho formal a “andar de ônibus todo dia” e “pessoas mandando” refletem a internalização desses novos valores.

A análise histórica deste fenômeno exige compreender as condições materiais que possibilitam esta transformação de valores. A expansão do capitalismo digital e das plataformas, com suas promessas de autonomia e flexibilidade, cria as bases objetivas para a desvalorização do emprego tradicional. Ao mesmo tempo, o crescimento da desigualdade e a estagnação salarial tornam o trabalho formal uma promessa cada vez menos atrativa de mobilidade social, permitindo que narrativas de “sucesso independente” ganhem força, mesmo que baseadas em exceções ou ilusões.
As crianças que transformam “CLT” em xingamento participam, ainda que inconscientemente, de um processo histórico de reconfiguração das relações de trabalho. Suas expressões culturais não são triviais, mas manifestações de como as transformações estruturais do capitalismo contemporâneo são vivenciadas e internalizadas por diferentes grupos sociais, incluindo os mais jovens. A cultura infantil torna-se, assim, um espaço de disputa ideológica sobre os valores associados ao trabalho e ao sucesso.
Silvia Federici argumenta que “o capitalismo contemporâneo opera não apenas pela exploração direta do trabalho, mas pela colonização do imaginário, produzindo sujeitos que internalizam suas lógicas e valores como naturais e inevitáveis.”[3] O caso dos jovens brasileiros que rejeitam o trabalho formal exemplifica este processo de colonização ideológica, em que valores mercantis de competição e individualismo infiltram-se nas subjetividades infantis.
A desvalorização da CLT entre os jovens também reflete o enfraquecimento das instituições coletivas que historicamente serviram como espaços de formação de identidades de classe alternativas. Sindicatos, associações comunitárias e movimentos sociais, que tradicionalmente ofereciam narrativas contrastantes sobre dignidade e direitos trabalhistas, perderam centralidade na socialização das novas gerações. Em seu lugar, influenciadores digitais e a cultura empreendedora oferecem novos modelos de identificação baseados na promessa de sucesso individual.
A digitalização da economia e o surgimento de plataformas de trabalho têm transformado profundamente as relações laborais contemporâneas. Este novo modelo econômico não altera apenas as formas de contratação e remuneração, mas produz também um novo tipo de subjetividade entre os trabalhadores. Emerge assim um sujeito que se percebe como “empreendedor de si mesmo”, mesmo quando submetido a formas intensificadas de controle, vigilância e exploração. A ilusão de autonomia mascara as relações de subordinação cada vez mais sofisticadas, onde o trabalhador assume todos os riscos sem garantias correspondentes. As crianças que temem “ser CLT” estão internalizando esta nova subjetividade antes mesmo de entrarem no mercado de trabalho, absorvendo e reproduzindo valores que naturalizam a precarização como forma desejável de inserção econômica.
O fenômeno observado nas escolas brasileiras possui dimensões de classe frequentemente invisibilizadas. As crianças que rejeitam o emprego formal frequentemente vêm de famílias de classe média ou alta, para quem a precarização do trabalho aparece inicialmente como liberdade e não como necessidade. Para filhos de trabalhadores precários, a carteira assinada ainda representa uma aspiração de segurança raramente alcançada. A rejeição à CLT revela, assim, uma experiência de classe específica que universaliza perspectivas privilegiadas.
Ruy Braga afirma que “a precarização do trabalho no século XXI se distingue de momentos anteriores por sua capacidade de apresentar-se como escolha e liberdade, mobilizando o desejo e a subjetividade dos trabalhadores em favor de sua própria exploração.”[4] Este paradoxo se manifesta claramente quando crianças passam a menosprezar as proteções laborais duramente conquistadas por gerações anteriores, vendo nelas não uma garantia, mas um obstáculo à realização pessoal.
Para Bruno Minoru Okajima, especialista em direito do trabalho, “a CLT não impede o crescimento profissional, mas assegura direitos básicos e evita a precarização das relações de trabalho.”[5] A rejeição juvenil à legislação trabalhista representa, portanto, um triunfo ideológico de perspectivas que naturalizam a precarização e invisibilizam as proteções históricas necessárias ao equilíbrio das relações laborais estruturalmente desiguais.
As expressões culturais das crianças que usam “CLT” como xingamento constituem um campo de observação privilegiado para entender como transformações econômicas amplas são processadas culturalmente. Esses comportamentos infantis não são meros reflexos passivos de mudanças estruturais, mas participam ativamente da construção de novos valores e percepções sobre trabalho e sucesso. O pátio da escola transforma-se, assim, em microcosmo dos conflitos valorativos da sociedade mais ampla. Quando uma criança insulta outra chamando-a de “CLT”, está reproduzindo, mas também reinterpretando ativamente, discursos que circulam nos ambientes familiares, midiáticos e digitais que frequenta. Esta capacidade infantil de absorver, transformar e disseminar valores demonstra como a formação cultural é um processo dialético em que mesmo os sujeitos aparentemente mais vulneráveis exercem formas significativas de agência social, ainda que nos limites de condições que não escolheram.
A formação das subjetividades infantis no contexto atual ocorre em meio a um ambiente saturado por valores mercantis e empresariais. As crianças são expostas constantemente a conteúdos que glorificam o empreendedorismo individual desde seus primeiros anos, seja em programas educacionais que simulam atividades empresariais, em jogos digitais baseados em acumulação e competição, ou em narrativas midiáticas que apresentam o “sucesso financeiro” como única forma legítima de realização pessoal. Este ecossistema comunicacional trabalha sistematicamente para normalizar a ideia de que relações sociais são naturalmente competitivas e que proteções coletivas representam obstáculos à liberdade individual. A transformação da CLT em objeto de escárnio infantil evidencia o resultado deste processo cultural amplo, onde mesmo em espaços de socialização como o recreio escolar se tornam terrenos onde novas concepções sobre trabalho, sucesso e fracasso são testadas, reproduzidas e difundidas pelas próprias crianças, convertendo-as em agentes ativos de valores alinhados às necessidades do capitalismo contemporâneo.
A escola tradicional, com seus muros e disciplinas, encontra-se em tensão com as novas formas de sociabilidade e aprendizagem que se desenvolvem nas redes digitais, onde crianças e jovens consomem e produzem narrativas sobre o mundo, incluindo representações sobre o trabalho e o sucesso. Neste contexto, os espaços educativos formais perdem sua centralidade na formação subjetiva, enquanto influenciadores digitais e conteúdos voltados ao empreendedorismo se tornam referências fundamentais para os jovens. A transformação da CLT em objeto de escárnio infantil revela como os valores propagados nestas redes, que frequentemente exaltam o empreendedorismo individual e menosprezam proteções coletivas, penetram profundamente nas subjetividades em formação, transformando até mesmo o recreio escolar em espaço onde novas concepções sobre trabalho, sucesso e fracasso são reproduzidas e difundidas pelas próprias crianças.[6]
A perspectiva histórica revela que as atitudes atuais das crianças brasileiras em relação ao trabalho formal são sintomas de um processo mais amplo de reconfiguração das relações entre capital e trabalho. O fenômeno transcende o comportamento individual para revelar transformações estruturais profundas na organização econômica e nos valores culturais dominantes. A flexibilização das relações laborais nas últimas décadas, apresentada como modernização necessária, vem acompanhada por uma transformação ideológica que ressignifica precariedade como liberdade, instabilidade como oportunidade e desproteção como autonomia. Este processo não se impõe apenas pela força econômica, mas conquista hegemonia cultural ao penetrar nas práticas cotidianas e nos sonhos de futuro até mesmo de crianças que ainda estão longe de entrar no mercado de trabalho. Quando jovens temem “ser CLT”, expressam inconscientemente o êxito de um projeto histórico que naturalizou a precarização como única realidade possível.
O que poderia ser interpretado como um mero comportamento infantil constitui, na verdade, um campo de batalha cultural onde se confrontam diferentes visões de sociedade, trabalho e dignidade humana. Em uma ponta deste conflito, encontra-se a tradição histórica de lutas coletivas por direitos trabalhistas, que enxerga no trabalho uma atividade que deve ser realizada em condições dignas e com proteções contra a exploração excessiva. Na outra, estabelece-se uma concepção que valoriza o sucesso financeiro individual como única métrica válida de valor pessoal, desprezando a ideia de direitos coletivos como entraves ao mérito individual. O playground escolar, onde crianças usam “CLT” como insulto, torna-se assim arena onde estas concepções conflitantes disputam o futuro. Não se trata apenas de vocabulário infantil, mas da socialização precoce de valores que determinarão como a próxima geração entenderá suas relações laborais e responsabilidades sociais. Este processo sinaliza uma transformação cultural profunda, onde os valores de solidariedade e proteção coletiva que fundamentaram a legislação trabalhista perdem terreno para um individualismo competitivo que normaliza a precariedade laboral como estado natural e desejável das relações de produção.
Erik Chiconelli Gomes é pós-Doutor – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais (USP), Direito (USP) e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
Referências
Antunes, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. São Paulo: Boitempo, 2022.
Braga, Ruy. A Política do Precariado: Do Populismo à Hegemonia Lulista. São Paulo: Boitempo, 2022.
Corsini, Camila. “Crianças demonizam CLT: carteira assinada vira ofensa entre os jovens.” UOL Economia, 13 de março de 2025. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/03/13/era-sonho-virou-ofensa-por-que-os-jovens-tem-medo-de-ser-clt.htm.
Druck, Graça. “A Precarização Social do Trabalho no Brasil: Alguns Indicadores.” In Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil II, organizado por Ricardo Antunes, 55-73. São Paulo: Boitempo, 2023.
Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2022.
Sibilia, Paula. “A escola no mundo hiperconectado: Redes em vez de muros?” Matrizes, v. 5, n. 2 (2012): 195-211. https://www.redalyc.org/pdf/1430/143023787010.pdf
[1] Antunes, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. São Paulo: Boitempo, 2022.
[2] Druck, Graça. “A Precarização Social do Trabalho no Brasil: Alguns Indicadores.” In Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil II, organizado por Ricardo Antunes, 55-73. São Paulo: Boitempo, 2023.
[3] Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2022.
[4] Braga, Ruy. A Política do Precariado: Do Populismo à Hegemonia Lulista. São Paulo: Boitempo, 2022.
[5] Corsini, Camila. “Crianças demonizam CLT: carteira assinada vira ofensa entre os jovens.” UOL Economia, 13 de março de 2025. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/03/13/era-sonho-virou-ofensa-por-que-os-jovens-tem-medo-de-ser-clt.htm.
[6] Sibilia, Paula. “A escola no mundo hiperconectado: Redes em vez de muros?” Matrizes, v. 5, n. 2 (2012): 195-211. https://www.redalyc.org/pdf/1430/143023787010.pdf