A construção histórica dos direitos trabalhistas e seus desafios contemporâneos
Os direitos trabalhistas, longe de representarem meras concessões do Estado ou do patronato, emergem como conquistas históricas derivadas da luta e da organização coletiva da classe trabalhadora. Esta perspectiva de protagonismo dos sujeitos históricos nos convida a compreender a legislação trabalhista não como benesse, mas como resultado de processos complexos de embates, resistências e articulações políticas que se desenvolveram ao longo dos séculos XIX e XX.
A formação da classe trabalhadora, enquanto fenômeno histórico, constitui um processo ativo que se desenvolve a partir da experiência compartilhada. Esta concepção nos permite compreender os direitos sociais e trabalhistas como produtos de uma história viva, construída a partir das vivências cotidianas de homens e mulheres em condições objetivas de exploração. O reconhecimento desta agência histórica é fundamental para superar visões reducionistas que apresentam os trabalhadores como meros objetos da exploração capitalista ou beneficiários passivos de políticas estatais.
No Brasil, esse processo apresenta particularidades decorrentes de nossa formação social e econômica. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre foi marcada por continuidades e rupturas que influenciaram profundamente a constituição do mercado de trabalho nacional. Esta complexidade se manifesta nas relações de trabalho contemporâneas, nas quais persistem elementos de precariedade e subordinação extrema.
A incorporação tardia dos trabalhadores à cidadania plena no Brasil reflete as contradições de um processo de modernização conservadora, no qual elites agrárias e industriais buscaram controlar os ritmos e limites das transformações sociais. O legado escravista perpetuou-se em práticas e mentalidades que naturalizam a exploração intensiva da força de trabalho e a desvalorização dos direitos sociais. Este contexto histórico específico ajuda a compreender tanto as dificuldades enfrentadas pelos movimentos trabalhistas brasileiros quanto suas estratégias particulares de resistência e organização.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída em 1943, representa um marco fundamental na história dos direitos trabalhistas brasileiros. Contudo, sua implementação não pode ser compreendida como simples outorga estatal, mas como resposta às pressões dos movimentos operários que se intensificaram nas primeiras décadas do século XX. Esta perspectiva é corroborada por Veiga (2024), que destaca como os aspectos históricos e sociais do surgimento da Justiça Trabalhista estão intimamente ligados às mobilizações operárias do início do século.
A historiografia do trabalho busca superar interpretações estruturalistas que relegam aos trabalhadores papel meramente passivo nos processos históricos. Este enfoque nas práticas concretas e experiências cotidianas permite recuperar as múltiplas formas de resistência desenvolvidas pelos trabalhadores em diferentes contextos, evidenciando sua capacidade de agência mesmo em condições extremamente adversas.
A evolução do direito trabalhista não pode ser compreendida como um processo linear de expansão progressiva de direitos, mas como um campo de disputas permanentes, marcado por avanços e retrocessos conforme a correlação de forças entre capital e trabalho. As interpretações teleológicas, que apresentam a legislação social como resultado inevitável do desenvolvimento econômico ou da modernização institucional, obscurecem o caráter conflitivo e contingente das relações de trabalho, ignorando o papel central dos movimentos sociais na conquista e preservação de direitos.
A experiência histórica demonstra que a efetivação dos direitos trabalhistas depende fundamentalmente da capacidade de organização e pressão da classe trabalhadora. Este padrão se reproduz no caso brasileiro, onde períodos de maior democracia e liberdade sindical correspondem a avanços na legislação protetiva. Andrade (2009) reforça esta compreensão ao analisar os movimentos sindicais e corporativos como atores fundamentais da democracia brasileira, demonstrando como a organização coletiva foi essencial para a consolidação de direitos.
O acesso efetivo à justiça constitui dimensão fundamental para a materialização dos direitos trabalhistas. Conforme apontam Dias, Santos e Santos (2023), o papel da Defensoria Pública no sistema trabalhista brasileiro tem sido essencial para garantir que trabalhadores em situação de vulnerabilidade possam reivindicar seus direitos. A judicialização das relações de trabalho, embora importante como mecanismo de efetivação de direitos, não substitui a organização coletiva e a mobilização política como instrumentos de transformação estrutural das condições laborais.
O diálogo entre a história social do trabalho e a história econômica revela a estreita relação entre os ciclos econômicos e as transformações nas relações laborais. As políticas de austeridade implementadas em momentos de recessão costumam concentrar seus efeitos nos segmentos mais vulneráveis da classe trabalhadora, aprofundando desigualdades estruturais e comprometendo conquistas sociais historicamente estabelecidas.

A dinâmica do capitalismo contemporâneo impõe novos desafios à organização dos trabalhadores e à manutenção de direitos historicamente conquistados. Como aponta Jorge Luiz Souto Maior (2020), “os direitos trabalhistas impõem limites ao poder econômico, para proporcionar melhorias nas condições de vida e de trabalho de trabalhadoras e trabalhadores.” Neste sentido, a desregulamentação das relações de trabalho representa não apenas um retrocesso jurídico, mas um reequilíbrio de forças favorável ao capital. Amorim e Vargas (2024) analisam criticamente este processo, destacando a vulnerabilidade oriunda da prevalência do negociado sobre o legislado após a reforma trabalhista de 2017.
As transformações tecnológicas e organizacionais das últimas décadas reconfiguraram profundamente o mundo do trabalho, introduzindo novas formas de controle e exploração. O capitalismo de plataforma e a chamada “economia do bico” representam desafios significativos para os marcos regulatórios tradicionais do direito laboral, desestabilizando categorias como subordinação, pessoalidade e não-eventualidade. A fragmentação dos processos produtivos, facilitada pelas tecnologias digitais, dificulta a identificação dos reais empregadores e fragiliza os mecanismos de proteção social historicamente estabelecidos.
A interseccionalidade entre classe, raça e gênero emerge como dimensão fundamental para compreender as desigualdades no mundo do trabalho. Esta perspectiva encontra eco nas reflexões de Souto Maior (2020), quando afirma que “as formas precárias de contratação […] atingem mais diretamente pessoas negras, especialmente mulheres negras.” A incorporação da análise interseccional permite identificar como diferentes sistemas de opressão se articulam na produção e reprodução das desigualdades sociais, complexificando as estratégias de resistência e organização.
Os estudos historiográficos sobre o mundo do trabalho têm incorporado progressivamente perspectivas mais diversas, reconhecendo a heterogeneidade da classe trabalhadora e as especificidades das experiências de mulheres, pessoas negras, imigrantes e outros grupos historicamente marginalizados. Esta ampliação do campo de análise permite compreender as múltiplas formas de trabalho e resistência que se desenvolvem para além dos espaços formais de produção e das organizações sindicais tradicionais, incluindo o trabalho doméstico, as economias populares e as formas comunitárias de solidariedade.
A terceirização, consolidada como estratégia empresarial e legitimada juridicamente nas últimas décadas, representa um dos principais mecanismos de precarização das relações laborais no Brasil contemporâneo. Esta fragmentação se expressa na multiplicação de distintos regimes contratuais dentro de um mesmo ambiente de trabalho, criando divisões artificiais entre trabalhadores que realizam funções similares e comprometendo a solidariedade de classe necessária à mobilização coletiva.
A reforma trabalhista implementada em 2017 (Lei 13.467) representou um marco na ofensiva contra os direitos laborais no Brasil. Esta avaliação é corroborada por Silva (2022), que analisa como as publicações do Tribunal Superior do Trabalho durante o processo constituinte já indicavam tensões acerca do modelo regulatório a ser adotado na nova ordem constitucional. Estas disputas interpretativas revelam o caráter político da jurisdição trabalhista, permeada por diferentes visões sobre o papel do Estado na regulação das relações laborais.
O discurso que apresenta a legislação trabalhista como entrave ao desenvolvimento econômico carece de sustentação empírica. Ao contrário, a experiência histórica sugere que a proteção social tende a favorecer o desenvolvimento sustentável, ampliando o mercado interno e reduzindo desigualdades estruturais. Soares, Soares e Cabral (2024) destacam os desafios enfrentados para a proteção do hipossuficiente nas relações de trabalho após as recentes alterações legislativas, evidenciando as dificuldades na aplicação efetiva da justiça laboral.
A proteção ao hipossuficiente, princípio fundamental do direito do trabalho, enfrenta desafios crescentes em um contexto de precarização e desregulamentação. A ficção jurídica da igualdade entre as partes contratantes, própria do direito civil, revela-se particularmente inadequada às relações laborais, caracterizadas pela assimetria de poder entre empregadores e trabalhadores. A preservação do caráter tuitivo da legislação trabalhista constitui, portanto, elemento essencial para a construção de relações laborais mais equilibradas e justas, contribuindo para a redução das desigualdades sociais.
Desafios contemporâneos: precarização e resistência no capitalismo globalizado
A memória das lutas trabalhistas constitui elemento fundamental para a construção da identidade coletiva e da consciência de classe. O resgate historiográfico das experiências de resistência e organização dos trabalhadores contribui para desnaturalizar a precariedade e reconhecer a historicidade das relações sociais. As narrativas que apresentam direitos como privilégios ou custos excessivos ignoram deliberadamente os processos históricos de exploração e luta que configuraram o mundo do trabalho contemporâneo, servindo a interesses específicos de deslegitimação das conquistas sociais.
Os desafios contemporâneos impõem a necessidade de repensar as estratégias de organização e luta. A fragmentação da classe trabalhadora, intensificada pelas novas morfologias do trabalho, exige formas inovadoras de articulação que transcendam os limites do sindicalismo tradicional. A construção de solidariedades que atravessem fronteiras setoriais, nacionais e identitárias emerge como condição necessária para enfrentar a globalização do capital.
A revitalização do movimento trabalhista passa necessariamente pela incorporação de pautas que extrapolam o âmbito estritamente laboral, incluindo questões ambientais, de gênero, raciais e relacionadas aos direitos humanos em sentido amplo. Esta ampliação do horizonte reivindicatório não significa o abandono das demandas tradicionais por melhores condições de trabalho e salários dignos, mas seu enriquecimento a partir de uma compreensão mais complexa das múltiplas dimensões da exploração capitalista.
O enfrentamento à precarização requer a reconstrução dos mecanismos de proteção social desmontados nas últimas décadas. Este processo não se limita à revogação de medidas específicas, como a reforma trabalhista de 2017, mas implica a formulação de um novo paradigma regulatório adequado às transformações do mundo do trabalho no século XXI. A redefinição das fronteiras entre trabalho e não-trabalho, o reconhecimento da diversidade de formas de inserção produtiva e a garantia de proteção social universal constituem elementos centrais deste projeto renovador.
Perspectivas futuras: a reinvenção das lutas trabalhistas no século XXI
A experiência histórica demonstra que os direitos não constituem aquisições definitivas, mas conquistas sempre provisórias, sujeitas a avanços e retrocessos conforme a correlação de forças sociais. Como vimos ao longo deste ensaio, desde as primeiras mobilizações operárias até as recentes reformas legislativas, a história dos direitos trabalhistas no Brasil é marcada por intensas disputas políticas e jurídicas. Esta perspectiva nos permite compreender estas disputas como expressões de conflitos de classe mais amplos, nos quais trabalhadores buscam afirmar sua autonomia e dignidade frente às diferentes formas de exploração capitalista.
A recuperação da perspectiva de classe, não como categoria estática, mas como processo relacional continuamente reconstituído nas práticas sociais, oferece importantes ferramentas para compreender e enfrentar as novas formas de exploração emergentes no capitalismo contemporâneo. A análise das particularidades da formação social brasileira, marcada pelo legado escravista e por um processo de modernização conservadora, nos ajuda a identificar as raízes históricas da precariedade estrutural que caracteriza nosso mercado de trabalho. Simultaneamente, o reconhecimento da agência dos trabalhadores revela as múltiplas formas de resistência desenvolvidas em diferentes contextos, superando visões deterministas que negligenciam a capacidade transformadora da ação coletiva.
O futuro dos direitos trabalhistas dependerá fundamentalmente da capacidade de mobilização e organização coletiva dos trabalhadores em suas múltiplas configurações. Frente aos discursos que naturalizam a precariedade e apresentam a desregulamentação como inevitável, é necessário reafirmar o caráter histórico e político das relações de trabalho. A longa trajetória de lutas e conquistas sociais aqui examinada demonstra que transformações significativas nas condições laborais não resultam de processos espontâneos ou concessões benevolentes, mas da ação consciente e organizada daqueles que vivenciam diretamente a exploração. Neste sentido, o estudo crítico da história do trabalho oferece não apenas instrumentos analíticos para compreender o passado, mas também recursos políticos para imaginar e construir futuros alternativos.
Erik Chiconelli Gomes é Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP).
Referências
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