A dialética do esclarecimento revisitada
Num mundo em que principalmente as novas tecnologias da comunicação mudam a todo instante, não há como não questionar o porquê de ainda termos de nos preocupar com fatos que decididamente remetem a uma barbárie arcaicaHelcio Kovaleski
“O encanto do conhecimento seria diminuto se, para atingi-lo, não
houvesse tanto pudor a vencer.”
Friedrich Nietzsche1
Os índices alarmantes de mortes violentas ocasionadas por homicídios, acidentes de trânsito e suicídio ocorridos durante o decênio 2002-2012, mostrados no levantamento Mapa da violência 2014,2 divulgado em maio deste ano pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), de autoria do sociólogo argentino Julio Jacobo Waiselfisz, sugerem questionamentos que vão além da própria análise dos dados. Se tomarmos apenas um deles (já que este ensaio procura se ater somente aos dados de homicídio) – o de que, ao longo de 2012, o país registrou 56 mil mortes violentas –, já poderemos concluir que possivelmente o Brasil pode estar voltando a um estágio pré-Idade Média. Ou que ainda não saiu dessa época.
Se levarmos em consideração o momento em que esse número absolutamente alarmante foi divulgado – nestes tempos sombrios (para tomar de empréstimo uma expressão da filósofa alemã Hannah Arendt) de recrudescimento de posições radicalmente reacionárias, sobretudo na seara político-partidária; do advento de um Congresso Nacional hegemonicamente conservador; do reaparecimento de preconceitos racistas, sexistas e de homofobia; e do avanço do discurso religioso em detrimento da reafirmação de um Estado laico, fatores que, de resto, denotam um neo-obscurantismo perigoso exatamente pelo fato de manifestar-se em pleno século XXI –, todo esse contexto nos remeterá inexoravelmente às discussões dos pensadores alemães Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, próceres da Escola de Frankfurt, na obra clássica Dialética do esclarecimento.3 A pergunta básica, em linhas gerais, é semelhante aos questionamentos propostos por esses dois filósofos: “Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade”.4
No quesito Idade Média, vale retomar a análise do semiótico da comunicação e escritor italiano Umberto Eco, mais precisamente no livro Viagem na irrealidade cotidiana.5 No capítulo “A Nova Idade Média”, ao falar de um “projeto alternativo” para essa era, Eco lembra que o nome do período define dois momentos históricos bastante distintos: “um que vai da queda do Império Romano do Ocidente até o Milênio, e é uma época de crise, decadência, massacres violentos de povos e choques de culturas; o outro vai do Milênio àquilo que na escola nos definem como Humanismo, e não por acaso muitos historiadores estrangeiros já o consideram uma época de pleno florescimento; aliás, falam antes em três Renascenças, uma Carolíngia, a outra nos séculos XI e XII e a terceira aquela conhecida como Renascença propriamente dita”.6
No caso deste ensaio, é bem possível que os dados do estudo da Flacso permitam avaliar que o Brasil esteja voltando ao primeiro momento histórico da Idade Média proposto por Eco. Com o perdão da heresia, parafraseando o título de um dos romances do escritor português José Saramago, talvez este seja uma espécie de Ensaio sobre a cegueira,7 porque remete aos espasmos obscurantistas atuais.
En passant, é oportuno lembrar que o Mapa da violência 2014 abrange também países da América Latina. No entanto, para este ensaio, a escolha foi somente pelos dados do Brasil.
Informa o levantamento que, desde o primeiro Mapa da violência, divulgado em 1998, considerou-se como mortalidade violenta a resultante do somatório de homicídios, suicídios e acidentes de transporte, precisamente por sua elevada incidência na juventude e por ser produto de um conjunto de situações sociais e estruturais. Dessa forma, o estudo permite concluir o “brutal incremento” dos homicídios a partir dos 13 anos de idade, uma vez que as taxas saltam de quatro homicídios por 100 mil para 75 na idade de 21 anos. “A partir desse ponto, há um progressivo declínio. Nessa faixa jovem, são taxas de homicídio que nem países em conflito armado conseguem alcançar”, alerta o estudo, que, na sequência, destaca que a evolução histórica da mortalidade violenta no Brasil impressiona pelos quantitativos implicados. “Vemos que, segundo os registros do Sistema de Informações de Mortalidade [SIM], entre 1980 e 2012, morreram no país 1.202.245 pessoas vítimas de homicídio; 1.041.335 vítimas de acidentes de transporte e 216.211 suicidaram-se. As três causas somadas totalizam 2.459.791 vítimas”, diz o estudo.
É o próprio levantamento da Flacso que faz uma afirmação categórica e estarrecedora: “Mas o que realmente impressiona nesses números são suas magnitudes. No ano de 2012, com todas as quedas derivadas da Campanha do Desarmamento e de diversas iniciativas estaduais, aconteceram mais de 56 mil homicídios. Isso representa 154 vítimas diárias, número que equivale [a] 1,4 massacre do Carandiru a cada dia do ano de 2012. Na década analisada, morreram, no Brasil, nem mais, nem menos 556 mil cidadãos vítimas de homicídio, quantitativo que excede, largamente, o número de mortes da maioria dos conflitos armados registrados no mundo. Chamam atenção, em primeiro lugar, as fortes oscilações do final do período e, em segundo lugar, a indagação se estaremos presenciando a retomada do crescimento da violência homicida”.
Ainda: o Mapa da violência 2014continua informando que, se a magnitude de homicídios correspondentes ao conjunto da população já pode ser considerada muito elevada, “a relativa ao grupo jovem adquire caráter de verdadeira pandemia”. “Os 52,2 milhões de jovens que o IBGE estima que existiam no Brasil em 2012 representavam 26,9% do total da população. Mas os 30.072 homicídios de jovens que o Datasus [Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde] registra para esse ano significam 53,4% do total de homicídios do país, indicando que a vitimização juvenil alcança proporções extremamente preocupantes.”
O estudo segue dizendo que, no período entre 1980 e 1996, os homicídios nas capitais cresceram 121%, enquanto o aumento no interior foi bem menor: 69,1%. “Nessa fase, fica evidente que o motor da violência homicida encontrava-se centrado nas capitais do país. Fica claro que o comando do crescimento no período ficou por conta das capitais, responsáveis pela forte elevação das taxas nacionais”, diz o levantamento.
Do ponto de vista da faixa etária das vítimas de violência, o levantamento da Flacso fala por si e conclui que, até os 12 anos de idade, o número de vítimas é relativamente baixo. “Nessa idade, foram 85 as vítimas em 2013. A média de homicídios, nessa faixa de 0 a 12 anos, foi de 36,5 por idade simples. A partir dos 13 anos, o número de vítimas de homicídio vai crescendo rapidamente, até atingir o pico de 2.473 na idade de 20 anos. A partir desse ponto, o número de homicídios vai caindo lenta e gradativamente”, informa o levantamento. Vale lembrar que, na data em que este ensaio foi escrito (18 de junho), a redução da maioridade penal foi aprovada pela Comissão Especial para crimes violentos – faltando, ainda, passar por votações em duas sessões pelo Plenário da Câmara.
Em 2012, de acordo com dados do Ministério da Saúde (MS), em termos de número e taxas de homicídio por 100 mil habitantes segundo a faixa etária, o resultado foi este: 120 mortes de crianças menores de 1 ano (4,2), 83 de 1 a 4 anos (0,7), 125 de 5 a 9 anos (0,8), 743 de 10 a 14 anos (4,3), 9.295 de 15 a 19 anos (53,8), 11.744 de 20 a 24 anos (66,9), 9.658 de 25 a 29 anos (55,5), 12.961 de 30 a 39 anos (43), 6.438 de 40 a 49 anos (25,5), 2.989 de 50 a 59 anos (16), 1.329 de 60 a 69 anos (11,5) e 851 a partir de 70 anos (9,1). O total foi de 56.337 mortes (29).
O estudo destaca que, “ao longo dos diversos mapas que vêm sendo elaborados desde 1998, emerge uma constante: a elevada proporção de mortes masculinas nos diversos capítulos da violência letal do país, principalmente quando a causa são os homicídios”. “Assim, por exemplo, nos últimos dados disponíveis, os de 2012, pertenciam ao sexo masculino: 91,6% das vítimas de homicídio na população total e ainda mais entre os jovens: 93,3%. […] E vemos que, historicamente, essas proporções diferem pouco de ano para ano. A participação masculina no total de homicídios do país, nos 32 anos computados, passou de 90,3% para 91,6%, e a feminina caiu de 9,7% para 8,4%. Entre os jovens, essa estabilidade é bem semelhante”, diz o estudo.
Outro dado francamente alarmante diz respeito ao quantitativo de mortes de pessoas negras comparado ao de pessoas brancas. Segundo o estudo, “o número de homicídios de jovens brancos cai 32,3%, e o dos jovens negros aumenta 32,4%. As taxas de homicídio de jovens brancos caem 28,6%; as dos jovens negros aumentam 6,5%”.
O levantamento da Flacso conclui que a série histórica analisada – de 1980 a 2012 – possibilitou estabelecer que: “Se as taxas de homicídio na população jovem passam de 19,6 em 1980 para 57,6 em 2012 por 100 mil jovens, o que representa um aumento de 194,2%, no restante da população, que denominamos não jovem, no mesmo período, passam de 8,5 para 18,5 por 100 mil: crescimento de 118,9%”.
Mais luz, por favor
Relendo Dialética do esclarecimento, impressiona a atualidade de certos trechos do livro, mesmo passados quase 68 anos da sua publicação. Não há como não revisitá-lo neste momento em que a impressão que dá é de uma autêntica volta a um mundo de trevas. Nesse sentido, também não deixam de se constituir em metáforas do mundo contemporâneo as séries televisivas The Walking Dead, com seus zumbis quase invencíveis, e Game of Thrones, com seu contexto profundamente inspirado em algum lugar da Idade Média.
Muito apropriadamente, no capítulo “Dialética do esclarecimento: elementos do antissemitismo: limites do esclarecimento”, Adorno e Horkheimer afirmam que “o passatempo pueril do homicídio é uma confirmação da vida estúpida a que as pessoas se conformam”.8 Para eles, o sentido dos direitos humanos “era prometer a felicidade mesmo na ausência de qualquer tipo de poder”. “Tudo aquilo que dá razão a semelhante repetição […] tudo atrai sobre si o desejo de destruição dos civilizados que jamais puderam realizar totalmente o doloroso processo civilizatório.”9
Essa verdadeira revisão do conceito de esclarecimento é atualíssima, num mundo em que principalmente as novas tecnologias da comunicação mudam a todo instante. Não há como não questionar o porquê de, em um momento altamente tecnológico, ainda termos de nos preocupar com fatos que decididamente remetem a uma barbárie arcaica. No prefácio da obra, Adorno e Horkheimer vão dizer que a crítica feita ao esclarecimento “deve preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega”.10
No livro Estratégias da comunicação, mais especificamente no capítulo “O campo dos media e a instituição militar”, o sociólogo português Adriano Duarte Rodrigues vai, de certa forma, restabelecer essa discussão e explicar o advento da violência no item “A dupla estratégia: planetarização e transversalidade da violência”. De acordo com ele, “a violência tende, por conseguinte, a tornar-se cada vez mais um processo implosivo e disseminado. Tanto a violência dos dispositivos bélicos como a dos discursos não se jogam hoje em torno de interesses inerentes à defesa da integridade geográfica dos Estados; põem antes em confronto razões e interesses antagônicos que atravessam as culturas e as sociedades. A irrupção da violência assemelha-se, assim, mais a processos vulcânicos, irruptivos e imprevisíveis, não nas fronteiras que delimitam as nações mas um pouco por todo o lado”.11
Há que se perguntar até quando esse estado das coisas irá continuar. Ou ainda: por quais meios os governos federal, estaduais e municipais vão se dar conta da emergência desse quadro. O fato é que, mais do que tentar compreender o porquê desses índices, não dá para aceitá-los sem uma profunda revisão de todos os métodos de prevenção e de coibição da violência. Ao mesmo tempo, diante dos índices específicos sobre mortalidade de jovens e de jovens negros, predominantemente masculinos, há que se rever profundamente todas as políticas voltadas às crianças e aos adolescentes e à reafirmação das cotas raciais. Mais. Com esse levantamento, não há argumento à altura que chegue a negar ou mesmo deixar de reestruturar amplamente essas políticas. O tempo urge e, infelizmente, os índices mostrados pelo Mapa da violência 2014 só fazem confirmar as apavorantes forças reacionárias que têm reaparecido nos últimos tempos. Mais luz, por favor.
Helcio Kovaleski é jornalista, roteirista e crítico de teatro, autor do livro Festival crítico: dez anos escrevendo sobre o Fenata (Festival Nacional de Teatro). Atualmente é assessor parlamentar da Câmara Municipal de Ponta Grossa, Paraná.