A diplomacia cativa sob Jair Bolsonaro
Como poucas vezes em nossa história, as idiossincrasias presidenciais afetam de maneira profunda a política externa do Brasil, prejudicando nossa inserção internacional e causando danos à imagem do país
A trajetória recente do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia exemplifica de maneira didática o processo de deterioração da imagem e da posição do Brasil no exterior nos últimos anos. Depois de mais de duas décadas de negociação, atravessando cinco administrações federais diferentes, o tratado foi finalizado e celebrado com toda a pompa e circunstância em junho de 2019. À época, a expectativa era positiva: enfim, dois dos maiores blocos econômicos do mundo conseguiram chegar a um difícil entendimento comum e logrado fechar um acordo comercial abrangente, com potencial de movimentar bilhões de dólares por ano e intensificar as trocas comerciais transatlânticas de maneira substancial.
No entanto, logo em seguida, a intensificação das queimadas na Amazônia chegou ao noticiário internacional. Mais do que o fogo em si, destacaram-se os tropeços do governo brasileiro para justificar aquela situação: a falta de recursos, o desmonte dos órgãos ambientais, o enfraquecimento da legislação ambiental, as piscadelas nada discretas do próprio presidente para atores econômicos responsáveis por grilagem de terras e desmatamento ilegal. Para piorar, a falta de traquejo diplomático básico de muitas autoridades em Brasília causou danos no relacionamento bilateral com muitos parceiros europeus – especialmente com as duas maiores economias da UE, a França (que teve seu presidente e sua primeira-dama insultados por ministros brasileiros) e a Alemanha (alvo de declarações grosseiras do presidente e destratada pelo ministro do meio ambiente durante uma tentativa fracassada de renegociar o Fundo Amazônia).
Depois disso, a ladeira nunca mais acabou. Com a escalada da crise ambiental no Brasil, grupos reticentes ao acordo comercial na Europa (tanto por motivos ambientais como por considerações protecionistas) se agarraram a essa situação e conseguiram melindrar a tramitação do texto. O humor europeu com o Brasil piorou consideravelmente. Hoje, pouco mais de um ano depois da conclusão bem-sucedida das negociações em torno desse acordo comercial, as perspectivas de curto prazo para sua efetivação são mínimas.
Essa digressão é pertinente para destacar como a diplomacia brasileira sob a gestão Bolsonaro perdeu não apenas o prestígio, mas a capacidade básica para operação da política externa. E um dos maiores obstáculos tem sido exatamente o próprio presidente e seu entorno político, que impõem suas idiossincrasias sobre o Itamaraty como poucos governos o fizeram no passado. O corpo diplomático brasileiro, reconhecido por sua expertise e capacidade de ação, não está conseguindo fazer frente às falas e condutas pouco diplomáticas da cúpula do governo.
Em pouco menos de dois anos, já podemos perceber o prejuízo para nossa política externa. Além da inviabilização do acordo comercial com a União Europeia, o Brasil também ganhou destaque negativo nas negociações internacionais sobre mudança do clima. A atuação deprimente do ministro do meio ambiente Ricardo Salles na Conferência de Madri (COP 25) – encontro que, aliás, deveria ter acontecido no Brasil, mas que foi vetado sem qualquer cerimônia por Bolsonaro – foi repercutida amplamente na imprensa internacional. Diplomatas envolvidos nessa agenda há décadas, servindo a governos de diferentes matizes ideológicos, de repente se viram amordaçados, incapazes de conter o ímpeto desastroso de Salles na Espanha. Pior: historicamente visto como um país proativo nessas negociações, o Brasil se tornou um antagonista, criando problemas para as conversas e dificultando entendimentos.
A transformação da política externa em instrumento de disputa ideológica por parte do governo – que se exemplifica também nas nomeações polêmicas dos irmãos Weintraub para cargos no Banco Mundial e na Organização dos Estados Americanos – tornou a diplomacia brasileira refém das “guerras culturais” empreendidas pelo presidente e seus aliados. Parafraseando o embaixador Celso Amorim, que costuma identificar a política externa de seus tempos de chanceler como “ativa” e “altiva”, nenhum outro adjetivo resumiria tão bem a diplomacia sob Bolsonaro como “cativa”.
*Bruno H. Toledo Hisamoto é doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), professor do curso de Comércio Exterior do Centro Universitário FIEO (Unifieo) e consultor do Instituto ClimaInfo. As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não correspondem necessariamente às opiniões dessas instituições.