A distopia liberal, as economias de guerra e o pós-crise já em disputa
Diante dos diferentes desafios (sanitário e econômico), parece haver um consenso entre muitos analistas: não há solução para a crise pela via do mercado. Da utopia à distopia liberal, ao que tudo indica caberá a Covid-19 jogar a pá de cal no neoliberalismo e na globalização econômica iniciada há quatro décadas
O mais inteligente, a meu ver, é aquele que ao menos uma vez por mês se chama de imbecil – um habilidade da qual não se tem notícia agora! Antes, em último caso, o imbecil tomava consciência da própria imbecilidade ao menos uma vez por ano, mas, agora, jamais. A coisa ficou tão confusa que não conseguem mais distinguir o imbecil do inteligente. E fizeram de caso pensado.
(Dostoiévski, Revista O Cidadão, fevereiro de 1973).
Antes da deflagração da pandemia, o mundo vivenciava uma dinâmica de crescente rivalidade entre as grandes potências do sistema internacional: EUA, Rússia e China. O próprio transbordamento dos campos em disputa é revelador da intensidade a que chegou tal competição. Sem pretensões exaustivas, podemos citar os campos: militar, energético, tecnológico-industrial, monetário, financeiro, comercial, diplomático, aéreo-espacial, biotecnológico, cibernético, da informação, da ética internacional, dentre outros. A própria narrativa sobre as origens da Covid-19 tornou-se uma dimensão dessa disputa, como ficou evidente nas acusações recíprocas entre autoridades estadunidenses e chinesas.
Todavia, sejam quais forem suas origens, a pandemia submete todos os estados, queiram ou não, a uma crise com duas dimensões: uma sanitária relacionada ao desafio de desenvolver medicamentos eficientes e frear a propagação do vírus; e outra econômica, derivada das próprias estratégias de controle da velocidade de contágio, incidindo diretamente sobre diversas atividades da economia real e, decerto, com desdobramentos perigosos sobre os mercados financeiros em geral. Cabe notar que as crises sanitária e econômica não conseguiram alterar tampouco atenuar as rivalidades entre as grandes potências.
Distopia liberal
Diante dos diferentes desafios (sanitário e econômico), parece haver um consenso entre muitos analistas: não há solução para a crise pela via do mercado. Da utopia à distopia liberal, ao que tudo indica caberá a Covid-19 jogar a pá de cal no neoliberalismo e na globalização econômica iniciada há quatro décadas. As forças de mercado mostram-se impotentes frente ao problema e inoperantes diante do desafio de encontrar soluções. Tudo isso porque a “mão invisível” não planeja ações estratégicas, não coordena os atores econômicos, políticos e sociais, ignora qualquer compromisso de solidariedade. Como presume um agir, um modus operandi, pautado pelo individualismo e acumulação de valores, a “mão invisível” agrava a crise ao invés de resolver. A lógica do lucro impele um sujeito a comprar e estocar produtos essenciais ao combate da pandemia, para vendê-lo a preços abusivos, realizando lucros extraordinários, mesmo que expondo concidadãos ao risco de contaminação. Da mesma forma que incentiva os empresários a cortarem custos e demitirem trabalhadores, os bancos a aumentarem as taxas de juros e assim por diante.
Nada muito diferente do “moinho satânico” de que falou Karl Polanyi. Segundo o autor, existe um antagonismo, inerente às ordens econômicas liberais, entre a dinâmica dos mercados auto-regulados e a preservação da vida. Trata-se de uma tensão permanente entre o princípio de mercantilização da vida (transformação generalizada, inclusive da saúde, do ser humano, da educação, da terra, da água, etc. em mercadoria) e, por outro lado, o movimento defensivo das populações em geral por autoproteção social em razão da violência dos processos de ajuste automático dos mercados. Esperar que tais processos se completem implica muitas vezes a aniquilação da vida humana. Por isso, a oposição entre ambos os princípios que explode de tempos em tempos, sem nenhuma regularidade cíclica e resultado prévio. Assim, dada ineficiência liberal já registrada pelas imagens de hospitais lotados, pela explosão do número de óbitos, dos enterros de vítimas em vala comum, da incineração de corpos nas ruas, etc., grande parte das forças de diferentes espectros da política (direita e esquerda) tenderão a se posicionar a partir de uma agenda econômica anti-liberal.
As economias de guerra pré-pandemia
Há tempos os principais alvos da política externa estadunidense têm sofrido, em graus diferenciados, uma forte pressão diplomática, militar e econômica, pelos mais diversos meios, dentre os quais bloqueios navais e sanções financeiras e comerciais. Isso significa dizer que, antes mesmo da pandemia, alguns países já viviam num contexto de economia de guerra, ou seja, com dificuldades de acesso a mercadorias e serviços essenciais e cujos efeitos sobre suas populações civis têm sido severos em alguns casos. Como resposta defensiva, essas economias nacionais vêm operando há mais tempo sob coordenação, planejamento, controle e interferência de seus respectivos Estados, seja nos setores estratégicos da economia ligadas à segurança e à defesa nacional, seja nos setores com maior peso para determinação dos níveis de emprego, renda e produto nacionais ou, ainda, naqueles com maior potencial para a promoção de uma inserção econômica internacional mais autônoma.
O curioso é que a resposta de adaptação das economia desses países a um contexto de sanções e bloqueios pode ter se tornado uma considerável vantagem na atual conjuntura pandêmica em termos de uma rápida e eficiente capacidade de reação aos novos desafios. Essa é uma das razões do porquê a maior parte desses países responde relativamente bem ao desafio pandêmico. A China, por exemplo, embora tenha sido a primeira a ser atingida pelo coronavírus, conseguiu reagir de forma surpreendente, sem qualquer informação prévia que lhe pudesse indicar as características do vírus, o processo de contágio, os tratamentos mais eficientes, etc. A Rússia, por sua vez, vem mantendo os números de casos e de óbitos bastante controlados quando comparados a outros países, mesmo possuindo uma extensa fronteira direta e ativa com a China. No caso da Venezuela, a situação de bloqueio severo não impediu que o governo implementasse rapidamente uma política ativa e bem orientada para o enfrentamento epidêmico e de mitigação dos efeitos econômicos. O caso de Cuba chega a ser emblemático. O forte bloqueio ao qual está submetida a Ilha há muito tempo não impede que o país realize iniciativas de grande solidariedade, como o envio de médicos para outros países.
Na outra ponta, alguns dos países em situação mais dramática ou com maior potencial de crise são os aqueles que, ou negaram o problema (muitas vezes em razão da parvoíce de seus governantes), ou apostaram numa solução sem planejamento ou, ainda, aqueles com estados relativamente fracos, incapazes de iniciativas mais incisivas.
O mundo pós-pandemia já em disputa
Na história do sistema internacional, durante momentos críticos com potenciais disruptivos, os países mais poderosos atuaram muitas vezes com base em lógicas distintas, derivadas de diferentes objetivos, que não necessariamente eram convergentes: de um lado, empreenderam estratégias e ações visando a proteção de suas populações e defesa de seus interesses imediatos; e, por outro, realizaram estratégias e ações orientadas para moldagem, ao seu modo, das novas feições do sistema internacional pós-crise. No limite, as ações nem sempre são pautadas pelas estratégias mais eficientes para derrotar o inimigo do presente, pois são atravessadas em algum grau e de diferentes formas pelos objetivos políticos e econômicos do que se pretende para o pós-crise. Ademais, apesar de haver convergências e inimigos em comum durante as crises, o que se busca individualmente para o futuro necessariamente não é convergente entre as grandes potências, dada a percepção de ameaça recíproca entre elas.
Na conjuntura atual, a pandemia também pode provocar o reposicionamento de países no sistema internacional. Os severos efeitos sobre um determinado país pode enfraquecer seu governo e, assim, viabilizar sua derrubada, reinserindo-o de outro modo na geopolítica das grandes potências. É o que explica a ação desumana do governo dos Estados Unidos de intensificar no contexto de crise sanitária global as sanções e bloqueios sobre alguns países, como Venezuela e Irã. Ao que tudo indica, a administração Trump reforçou, durante a atual crise, sua opção pelo ataque direto a seus adversários, pela não cooperação global e pelo boicote a diversas instituições multilaterais.
Portanto, em razão ou do veto à cooperação, ou das sanções econômicas ou, ainda, das tentativas de intervenções e golpes, as sucessivas administrações dos EUA têm empurrado países com dificuldades das mais diversas à busca de novas parcerias estratégicas que lhes dêem algum fôlego e condições de sobrevivência. Algo agravado sobremaneira durante a pandemia. Criam, com efeito, um contexto de oportunidades favoráveis à Rússia e à China se projetarem ainda mais, reforçando antigos laços e criando novos laços inimagináveis entre si e com outras nações.
O presidente Trump e seus estrategistas talvez estejam tornando realidade alguns dos pesadelos de importantes autores da geopolítica angloamericana: a despeito de todas as contradições e fraturas, a formação de uma aliança de poder dentro da massa eurasiana, cujos pilares China e Rússia projetam-se e alcançam, por diferentes caminhos e graus distintos, diversos países de diferentes regiões.
Portanto, o mundo pós-crise pandêmica não deve ser assemelhar a uma ordem multilateral, pois a cooperação tem sido bombardeada sistematicamente pelos EUA e, havendo oposição da maior potência econômica e militar do sistema, não há cooperação possível. Também não é provável que o sistema caminhe para uma bipolaridade, dada a heterogeneidade de países com relevância e peso, a multiplicidade de temas sensíveis e as inúmeras fraturas e contradições entre eles. Muito menos provável ainda é uma ordem unipolar, pois a reconstrução da Rússia, a ascensão da China e suas consideráveis capacidades de resposta aos mais diversos desafios inviabilizam qualquer projeto estadunidense nesse sentido. Talvez estas não sejam categorias adequadas para se pensar o mundo pós-crise. É preciso refletir sobre o mundo pós-crise a partir dos processos de desordenamento e entendê-los como dinâmicas que não necessariamente se resolvem de forma breve, mas se prolongam e “organizam” o funcionamento do mundo a seu modo.
Mauricio Metri é professor Associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ e do programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI-IE) da UFRJ.