A dívida maquiada
Apesar de os ativos do país terem superado aparentemente os passivos da dívida externa, o endividamento público, impulsionado pela expressiva valorização do Real frente ao Dólar, continua sendo um importante obstáculo para o desenvolvimento nacional e a implementação de políticas sociais
O anúncio da elevação do Brasil à condição de credor externo líquido foi bastante festejado pelas autoridades. De acordo com o governo, graças ao aumento de nossas reservas internacionais, pela primeira vez possuímos recursos para pagar as dívidas externas pública e privada. A euforia, no entanto, se justifica apenas numa perspectiva estritamente política. Do ponto de vista econômico, apesar da dívida externa ser hoje um problema menor quando comparado à dívida interna, o pagamento de ambas ainda é uma barreira para os avanços sociais tão urgentes.
Segundo o Banco Central, em janeiro de 2008 o Brasil possuía uma dívida externa de US$ 196,2 bilhões, contra ativos, compostos principalmente pelas reservas internacionais, de US$ 203,190 bilhões. Essa diferença – US$ 6,983 bilhões – é que elevou o país à condição de credor externo líquido. É interessante notar que, desde março de 2001, o Banco Central exclui do cálculo da dívida externa (passivo) os empréstimos intercompanhia (dívidas de filiais de transnacionais no Brasil com suas matrizes no exterior). Ao adicionarmos estes montantes – que, entre dezembro de 2003 e fevereiro de 2008, saltaram de US$ 20,484 bilhões para US$ 49,926 bilhões –, o total da dívida externa ultrapassa US$ 240 bilhões, superando, portanto, os ativos e desmentindo a suposta nova condição alcançada.
Mesmo deixando de lado esta distorção, ainda estamos muito longe de superar a questão. O grande vilão continua a ser o pagamento dos juros, encargos e amortizações que, sozinhos, correspondem a 30,59%1 do orçamento geral da União executado em 20072. Para se ter uma idéia, no mesmo ano foram gastos 5,17% dos recursos do orçamento com saúde, 2,58% com educação e 0,41% com ciência e tecnologia. Apesar disso, as despesas com as dívidas raramente são consideradas nos debates sobre a maior eficiência dos gastos públicos. A crítica é de Ronaldo Coutinho Garcia, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), para quem, curiosamente, estes pagamentos são “intocáveis, impronunciáveis, inexistentes para a política fiscal, ainda que a onerem pesadamente”3. Garcia afirma que o perfil atual dos gastos públicos privilegia um número restrito de famílias e grupos econômicos com acesso ao mercado financeiro, enquanto pune a maioria dos brasileiros, que depende do avanço das políticas sociais. Não discutir esta situação equivale a reconhecer a “intocabilidade destes privilégios”, quando intocável deveria ser a garantia dos direitos sociais da maioria.
Assim, ao anunciar a nova condição de credor externo líquido, o governo pretende se capitalizar politicamente, repetindo uma estratégia utilizada em 2005, quando nossa dívida com o FMI foi cancelada através do pagamento antecipado de US$ 15,5 bilhões. Enquanto isso, a dívida interna alcançou a astronômica cifra de R$ 1,242 trilhão em fevereiro de 2008, superando quase em três vezes o valor da dívida externa, estimada em R$ 417 bilhões4. Se considerarmos as operações de mercado aberto do Banco Central, ou seja, a colocação de títulos no mercado para enxugar a liquidez advinda principalmente da compra de dólares, este valor chega a R$ 1,4 trilhão5. Dos R$ 237 bilhões executados no orçamento da União para os juros e amortizações da dívida pelo Brasil em 2007, R$ 219 bilhões foram para o pagamento da dívida interna e apenas R$ 18 bilhões para a dívida externa, doze vezes mais.
Numa meteórica expansão, a dívida interna brasileira foi multiplicada por sete em uma década! Após a implantação do Plano Real, em 1994, o aumento das importações provocou um déficit na balança comercial brasileira. Este desequilíbrio precisou ser compensado mediante a atração de capitais especulativos, que vinham ao Brasil em busca da remuneração por uma das mais elevadas taxas de juros do planeta. Uma das saídas encontradas pelos gestores da política econômica foi transformar a dívida pública em títulos negociáveis no mercado financeiro. Dessa forma, muitos dos credores externos se tornaram “internos”, processo que vem se intensificando ainda mais diante da recente tendência de valorização do Real frente ao Dólar6.
Entre 1978 e 2007, nossa dívida externa, que era de US$ 52,8 bilhões, saltou para US$ 243 bilhões. Neste mesmo período, pagamos US$ 262 bilhões a mais do que recebemos de empréstimos. Logo, ao analisarmos a relação entre a dívida interna atual e a gerada durante os anos de ditadura, percebemos que continuamos quitando uma conta já paga. Se considerarmos ainda o incalculável passivo socioambiental provocado pelos grandes projetos financiados com recursos da dívida, chegaremos à conclusão de que somos nós os verdadeiros credores!
Deveríamos, portanto, fazer cumprir a Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 26, do Ato das Disposições Transitórias, determina a realização de uma auditoria da dívida externa. Isso abriria uma oportunidade para a retomada do debate sobre o peso do pagamento desses juros sobre o orçamento.
É o que está fazendo o governo do Equador, liderado pelo presidente Rafael Correa que, em 2007, criou a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (Caic). O objetivo é examinar e avaliar o processo de endividamento entre os anos de 1976 e 20067, identificando tanto as taxas de juros, comissões e multas –impostas muitas vezes de maneira unilateral, violando a soberania dos países tomadores –, como também os efeitos dos compromissos assumidos na contratação sobre as condições de vida da população. Além disso, será analisada a relação entre a finalidade de cada projeto e os impactos sociais e ecológicos provocados, numa abordagem multicriterial.
Olhamos com expectativa para os avanços do processo equatoriano de auditoria, na esperança de que possamos tomá-lo como exemplo. Desejamos que a força de seus resultados abra caminho para retomarmos o debate sobre o peso da dívida para a sociedade brasileira e com isso, numa perspectiva mais ampla, comprovarmos que são os povos os verdadeiros credores desta dívida.
*Gabriel Strautman é economista do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), integrante da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rede Jubileu Sul.