A era Bolsonaro foi trágica para a democratização da mídia
Os quatro anos de governo fascista distanciaram o país da comunicação pública e de políticas para regulamentação da radiodifusão; a comunicação comunitária foi desprezada
Numa pequena cidade do interior do Ceará, ponto de parada na estrada de uma viagem mais longa, a família que vendia doces estava de olhos e ouvidos muito ligados na televisão. Segundo a Pesquisa TIC Domicílios 2019, em 95% das casas brasileiras existe aparelho de televisão, sendo 92% na área rural e 96% na urbana. Naquela casa, um senhor interagia com a tevê, xingando o atual presidente Lula, pois agora, segundo suas palavras, a família brasileira ia acabar: era homem com homem, mulher com mulher, pai com filha…
O caso é um exemplo tanto da penetração da televisão na vida de brasileiras e brasileiros quanto do ideário bolsonarista, reforçado nos últimos anos com dispositivos e estratégias de desinformação. Algumas delas, inventadas para fomentar o ódio à grande mídia comercial e esconder que Bolsonaro, apesar do discurso, não deixou de contemplá-la com verbas publicitárias. Em vídeo que viralizou nas redes sociais, a jornalista Carla Cecato dizia, em recorte de entrevista que deu à Jovem Pan News, que as emissoras de tevê só falavam mal de Bolsonaro porque ele deixou de “jorrar dinheiro” na imprensa. Na ocasião, Carla Cecato já havia sido demitida da TV Record.
Numa coisa a jornalista bolsonarista tinha razão: Bolsonaro, de fato, foi muito criticado pela Rede Globo. Segundo levantamento do projeto Manchetômetro, o Jornal Nacional fez majoritariamente menções negativas ao então presidente. A única exceção é o período eleitoral, em que há um pico de menções neutras. Segundo o pesquisador João Feres Júnior, coordenador do projeto, a legislação eleitoral, que exige equilíbrio entre a cobertura das diferentes candidaturas, pode ser uma explicação para isso. Porém, mesmo se posicionando contra o projeto de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT), a mídia seguiu firmemente contrária a Jair Bolsonaro até o fim das eleições. O Manchetômetro é um projeto do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (Lemep), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“Nossos estudos do Manchetômetro mostram que, ao longo do mandato inteiro do Bolsonaro, a TV Globo e o jornal O Globo foram bastante críticos à figura do Bolsonaro, mas bastante lenientes à figura do Paulo Guedes e à agenda de reformas neoliberais ou fiscalistas. Existe essa tensão: Bolsonaro era tratado de uma forma predominantemente negativa, enquanto a agenda econômica dele e o Paulo Guedes eram tratados de maneira neutra ou positiva”.
A pesquisadora Eula Dantas Taveira Cabral, coordenadora do grupo Economia Política da Comunicação e da Cultura da Fundação Casa de Rui Barbosa, avalia que, depois de muitos conflitos, o governo levantou bandeira da paz. “A Globo, mesmo com todos os entraves, manteve a maior audiência. Isso em um país onde a TV aberta impera, como ainda é constatado pelas pesquisas de mercado. Nenhum político consegue abafar por muito tempo um grupo poderoso e resolve tentar trazê-lo para seu lado”, afirmou.
A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integrante do Grupo de Pesquisa em Economia Política do Audiovisual (EPA!), Janaine Aires, avalia que os empresários de radiodifusão deram grande apoio ao ex-presidente, desde antes de ser eleito. Mais dependentes de publicidade oficial que a Globo, os grupos Record, Band e especialmente Rede TV “permitiram que Bolsonaro aparecesse com muita frequência, que estivesse constantemente sendo entrevistado, que pudesse falar coisas muito polêmicas que facilitariam a reverberação do discurso e da imagem de Bolsonaro em outros suportes, como os grupos de Facebook, YouTube, nas mensagens instantâneas e assim sucessivamente”.
Assim, a estruturação das redes de desinformação bolsonaristas passou também pela radiodifusão. “Foi a partir dessas emissoras que diversas fake news que circulavam nas redes sociais, nos grupos que o gabinete do ódio sustentava, ganhou credibilidade. A gente teve o caso das fake news que diziam que os caixões estavam sendo enterrados vazios, nos momentos mais graves da pandemia, que foi transmitida no Brasil Urgente, do Datena. O caso de um homem de Pernambuco que teria morrido vítima de explosão de um pneu, e não de Covid-19, foi contado pelo próprio Bolsonaro em entrevista ao vivo a Sikêra Jr. A história foi desmentida pela Secretaria de Saúde”, contou Janaine. Além disso, houve também o apoio através de verbas publicitárias. A pesquisadora lembra que o programa Brasil Urgente, no momento mais crítico da pandemia, tinha quadros específicos patrocinados pelo Ministério da Cidadania, de Onyx Lorenzoni, com participação diária do staff do governo federal.
Numa análise de cobertura sobre o 7 de setembro de 2022, data sequestrada pelo governo Bolsonaro, pode-se ter uma ideia do tom das emissoras de TV. Em texto no blog do Intervozes na CartaCapital, Gyssele Mendes, Iara Moura, Olívia Bandeira, Ramênia Vieira e Sheley Gomes analisaram telejornais da Globo, Record e SBT. A diferença foi gritante. Enquanto o Jornal Nacional criticou o uso eleitoral do Bicentenário da Independência, os demais funcionaram como linha auxiliar do governo.
No SBT Brasil, houve uma matéria de 2min sobre o Grito dos Excluídos, que trouxe diferentes vozes dos movimentos sociais, enquanto, na Record, a manifestação não foi mencionada. A emissora do bispo Edir Macedo deu destaque aos atos cívico-militares e àqueles em apoio ao então presidente durante todo o dia, que chegou a ser chamado pela apresentadora Mariana Godoy, do Fala Brasil, como “um dia de festa”. A emissora mostrou e ouviu principalmente mulheres com crianças, focando justamente na fatia de eleitorado que tinha maior rejeição a Bolsonaro. Também foi enfatizado que as manifestações não eram violentas. A Record não fez nenhum contraponto às matérias positivas a Bolsonaro, não deu espaço para nenhum outro candidato nem para ninguém que denunciasse o caráter eleitoreiro dos atos daquele dia. Vale lembrar que no primeiro 7 de setembro como presidente, em 2019, Bolsonaro convidou os radiodifusores Edir Macedo, Sílvio Santos e representantes da Band e da Rede TV para assistirem com ele o tradicional desfile do Dia da Independência. Janaine Aires considera o caso, que ganhou destaque no Relatório Direito à Comunicação 2019, muito simbólico da relação entre a radiodifusão e o então presidente.
Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei
A suposta perseguição sofrida por Bolsonaro pela Rede Globo era revidada por ele em lives (transmissões ao vivo pelo canal do ex-presidente no Youtube) desde 2019, com a ameaça de não renovar a concessão: “Temos uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. Porque o processo de renovação da concessão não vai ser perseguição. Nem pra vocês nem pra TV nem rádio nenhuma. Mas o processo tem que estar enxuto, tem que estar legal. Não vai ter jeitinho pra vocês”, disse em outubro de 2019 numa das lives. O ano da renovação finalmente chegou e, como se sabe, as ameaças não se concretizaram. No apagar das luzes de 2022, no dia 20 de dezembro, Bolsonaro publicou decreto de renovação das cinco emissoras da Rede Globo (no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Recife). Também foram renovadas as concessões da Rádio e Televisão Bandeirantes de Minas Gerais e da Rádio e Televisão Record, em São Paulo.
Até setembro de 2022, prazo para que a Rede Globo solicitasse a renovação, a possibilidade de perseguição parecia concreta. O site Na Telinha noticiou que a estratégia do presidente seria, no mínimo, tumultuar o processo. Ele enviaria um relatório contrário à emissora ao Congresso Nacional, onde as concessões são definidas, com posterior sanção presidencial. Em setembro, quando a emissora deu entrada no pedido de renovação, o mesmo site lembrou que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, genro de Silvio Santos, fundador e proprietário do SBT, também usou um discurso legalista ao afirmar que o critério seria “100% técnico”. Em maio de 2022, a Rede Globo já tinha emitido a seguinte nota sobre o tema: “Esse assunto não se dá por decreto presidencial. A Globo seguirá os prazos estabelecidos com a tranquilidade de cumprir e de sempre ter cumprido todas as obrigações legais para a renovação da concessão”.
Na ocasião da renovação das cinco emissoras da Rede, o então presidente também editou oito decretos tornando sem efeito concessões de TV educativa, pois as entidades requisitantes não teriam enviado os documentos corretos. Não foi informado quais entidades foram essas, num gesto corriqueiro no governo Bolsonaro: a ausência de informações e de transparência.
Por outro lado, vale lembrar que, durante três dos quatro anos do governo, a TV Escola manteve contrato com a produtora de direita Brasil Paralelo. O contrato data de 28 de novembro de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. De acordo com o documento, a produtora cedia o direito não exclusivo de exibição, de forma gratuita, da série “Brasil: a última cruzada”.
Levantamento que fiz para a elaboração do artigo “A verdade da direita: a produção audiovisual de memória sobre a ditadura de 1964”, publicado na edição de 2019 da Avanca Cinema International Conference, mostra que a forma de financiamento da produtora é um mistério: dificilmente eles conseguiriam realizar suas produções apenas com o dinheiro de assinaturas e venda de cursos, como afirmam. A lista desses assinantes não é divulgada por eles. Apesar da falta de informações sobre as fontes de recursos, é possível vislumbrar, a partir da escolha dos entrevistados para os documentários produzidos, que existe relação entre a produtora e think tanks de direita, como Instituto Liberal, Instituto Millenium, Instituto Von Mises Brasil, Instituto Liberdade e Instituto Atlas.
Assim como os outros conteúdos da Brasil Paralelo, a série tem caráter revisionista e olavista, inclusive com entrevistas com o guru do grupo, o hoje falecido extremista Olavo de Carvalho. Um dos diretores da Associação Roquette Pinto seria uma indicação olavista: Eduardo Melo, que Carvalho gostaria que tivesse sido ministro. A Associação gere a TV Escola com recursos repassados pelo Ministério da Educação (MEC).
Segundo a pesquisadora Eula Cabral, “esse governo de extrema direita tentou impor suas posições e tirar do mapa todos que podiam atrapalhá-lo. No caso da Rede Globo, durante um bom tempo foi abafada e perdeu publicidade governamental. Enquanto isso, SBT, do sogro do ministro das Comunicações, e Record, empresa ligada à Igreja Universal que elegeu o presidente, além da Bandeirantes e Rede TV!, ligadas a empresários que apoiaram o governo, foram totalmente beneficiadas, inclusive com permissão de ‘arrendamento’ de horários”.
O arrendamento é a venda de espaço televisivo para terceiros, responsáveis pela produção do conteúdo daqueles horários, algo ilegal, mas comumente feito para televendas ou congregações religiosas. Em julho de 2022, o então presidente sancionou, sem vetos, a Lei 14.408/22, que permite às emissoras de rádio e televisão transferir, comercializar ou ceder o tempo total de programação para terceiros. Até então, só era possível a venda de 25% da programação, considerado o teto para inserções publicitárias.
Essa foi apenas uma das interferências de Jair Bolsonaro nas regras para a radiodifusão. Levantamento feito pelas pesquisadoras Ana Carolina de Melo Souto e Nelia Rodrigues Del Bianco, respectivamente mestranda e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), identificou 98 normas, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, que mudaram as obrigações a serem cumpridas pelos radiodifusores. Elas avaliam que esses dispositivos infralegais estão ancorados no discurso de “desburocratização” e de estímulo ao ambiente de negócios no país.
Segundo Oscar Cowley Forner e Almudena Muñoz Gallego, respectivamente mestrando e professora visitante no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEM/UFRN), “trata-se de uma estratégia político-eleitoral que se sustenta por meio da tentativa de passar a ideia de defesa de uma mídia livre, mais competitiva e sem censuras, como assim consta na proposta de governo no slide dedicado ao tema da comunicação, denominado ‘Imprensa livre e independente’. Mas, na verdade, promove a aliança entre grupos políticos e midiáticos que alimentam a prática do clientelismo”.
Integrante do Grupo de Trabalho das Comunicações durante o governo de transição (para a nova gestão de Lula como presidente), o Secretário Geral da Rádio Ferrabraz FM e integrante do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, Alan Camargo, destaca a mudança estrutural feita por Bolsonaro para que o fluxo de verbas ficasse sob o controle dele, ao extinguir o Ministério da Comunicação, depois retomá-lo ligado à Secretaria de Comunicação (Secom), diretamente subordinada à Presidência da República. “Eles fizeram uma bagunça, então uma fatia do bolo ficou para o grupo ligado a Fábio Faria. Bolsonaro deixou no Ministério da Ciência e Tecnologia apenas aquela parte da malha cartorial exatamente para organizar o dinheiro. Em algum momento, grupos medianos, como o Massa, e a Record, operaram a distribuição dos recursos diretamente com o palácio. E esses que sustentaram o bolsonarismo levaram muito dinheiro”, avalia.
A comunicação comunitária: um problema histórico que se agravou
Quanto à comunicação comunitária, Alan Camargo apresenta dados impressionantes que mostram o descaso com o setor há sete anos. Segundo ele, “o número de cerca de 5 mil emissoras comunitárias outorgadas se mantém desde 2016. Desde então, até novembro do ano passado, inclusive, não havia publicação de editais para novos municípios. O último foi o Edital nº 172, de 25 de novembro de 2022, lançado ainda no governo Bolsonaro, para 71 municípios”.
O número, além de pequeno, deixa de fora comunidades indígenas, quilombolas, bairros e vilas de grandes cidades que já foram contempladas anteriormente com apenas uma rádio. Isso porque só é permitida uma outorga por município. “O movimento de rádios comunitárias considera que o Marco Legal de Radiodifusão Comunitária, a Lei 9.612, de 1998, reprimiu as emissoras. A projeção, naquele ano, era de 25 mil rádios comunitárias. Hoje há apenas 4.800. Boa parte delas, pela dificuldade de sustentabilidade, foi parar sob a influência de igrejas evangélicas e de prefeitos de pequenos municípios”, explica Camargo.
Segundo ele, hoje tramitam 40 mil processos de outorga ou renovação no Ministério das Comunicações. Entre eles, de rádios que existem há 20 anos e não conseguem ser renovadas. “Nós apresentamos no Grupo de Trabalho a regulamentação da Lei 9.612. É preciso aplicar o que é previsto no artigo 5, de que em caso de inviabilidade técnica deve ser oferecido um canal alternativo para atender à comunidade. Pedimos o fim do plano nacional de outorgas, que é muito burocratizado. O processo técnico não pode continuar sendo a primeira etapa para se conseguir as outorgas, já que é impeditivo para a maioria das rádios”.
Ele lembra que mesmo nos governos Lula e Dilma o tema não foi enfrentado. Segundo Geremias dos Santos, presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço Brasil), a morosidade na tramitação dos processos de outorga para a comunicação comunitária “faz parte de uma estratégia, porque quem manda no setor de comunicação do Brasil é a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), inclusive indicam ministros e dirigentes no Ministério das Comunicações. Eles dominam quase a totalidade dos 25 integrantes titulares da Comissão da Ciência Tecnologia e Inovação da Câmara (CCTCI)”.
A pesquisadora Eula Cabral concorda: “No caso das rádios comunitárias, nem no governo da esquerda nem no governo da direita foram beneficiadas. Os grupos midiáticos, que têm como meta o lucro, não permitem que sejam mantidos os comunitários e continuam perseguindo a sociedade civil e evitando que sejam organizados conselhos de comunicação e criadas políticas públicas em prol da população que tem direito à comunicação, à informação e à cultura”.
Assim, historicamente entregue aos interesses do empresariado, com uma maioria de emissoras alinhadas ao bolsonarismo, a radiodifusão segue funcionando majoritariamente como instrumento estratégico na manutenção de ideais neoliberais e conservadores. Como o personagem do início desta reportagem, a maioria da população brasileira conhece o mundo não só pela internet, mas também pela tevê e o rádio – e Bolsonaro soube bem utilizá-los de forma associada à difusão on-line de ódio e desinformação.
Mônica Mourão é jornalista, professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.