A escolta
E, agora, lá estava eu novamente escoltado. Alguns me perguntam, ao me verem nesta condição, o motivo para tanto, mais precisamente, querem saber de onde vem o perigo, imaginando ser dos presos
“Bom dia! Ficarei pronto em 15 minutos, como combinado. Vou direto ao Fórum. Sairei apenas para o almoço, logo retornando para o gabinete. À tarde, devo ir até o presídio, novamente retornando ao Fórum, onde permanecerei até à noite. Em seguida, farei a palestra na universidade e só depois vou para casa, o que deve o ocorrer por volta das 22h30”.
“Afirmativo, doutor! Estamos a postos.”
Mais um dia de escolta começava.
Era a segunda semana com segurança e, querendo ou não, já me habituava àquela nova realidade. A decisão de usar a medida fora tomada em razão de ameaças advindas de determinada pessoa, um auto intitulado “cidadão de bem”, que eu não conhecia e nunca tinha ouvido falar, mas que se arvorara no direito de destilar ódio contra a minha pessoa, porque, segundo o dito cujo, eu era “um defensor de bandido”.
Até então, nos últimos anos, já havia precisado de guarda-costas uma meia dúzia de vezes, algo que não era comum no passado mais distante. Felizmente, em todas as ocasiões, a situação foi logo controlada e, em pouco tempo, pude retornar à rotina e andar livre, sempre, é claro, com os cuidados inerentes à profissão exercida, juiz da vara de execuções penais da maior comarca de Santa Catarina, responsável por 9.000 processos, 2.100 presos, 500 apenados com tornozeleira eletrônica, cerca de 4.000 condenados em regime aberto, livramento condicional e sursis, tudo em um país que possui um chefe de Estado que não poupa ataques ao Judiciário (STF) e aos direitos humanos.
E, agora, lá estava eu novamente escoltado.
Alguns me perguntam, ao me verem nesta condição, o motivo para tanto, mais precisamente, querem saber de onde vem o perigo, imaginando ser dos presos. E eu explico, para surpresa da pessoa, que jamais recebi ameaça de presos, sequer um olhar intimidador, que nunca fiquei em risco dentro da prisão, nas inspeções ou em audiências. E não porque decido conforme a Constituição e por isso favoravelmente aos direitos individuais dos encarcerados, mas sim porque respeito a todos como seres humanos e acredito no caminho da lei.
Em síntese, não é por causa de presos e apenados que preciso de escolta de quando em vez. As ameaças sempre vêm ou de cidadãos moralistas, recalcados e violadores constantes da lei, que não aceitam decisões garantidoras dos direitos fundamentais, ou de dentro do sistema, o chamado “fogo amigo”, a partir de minha atuação como juiz corregedor na contenção de abusos.
O fato é que andar escoltado, porque sua vida está em risco, é algo muito peculiar, para ficar no básico.
Em termos práticos, por mais competentes, discretos e confiantes que sejam os profissionais da escolta, o escoltado fica à sua mercê, ou seja, ele deixa de ter autonomia. E também perde-se boa parte da privacidade, a vida particular acaba não sendo mais particular. Por outro lado, há uma preocupação com os seguranças, com seu bem estar. Já desisti muitas vezes de ir a determinados lugares, porque, recém deixado em casa, não queria sobrecarregar a escolta, nada obstante ela estivesse plenamente preparada, em número suficiente de pessoas, para trabalhar 24 horas por dia.
Para além dessas questões práticas, muitas outras passam a povoar os pensamentos. Há um sentimento de injustiça em ter a liberdade vigiada sem dever, apenas porque se exerce o trabalho; existe um cansaço mental que resulta em conclusões nem sempre corretas, sobre se doar integralmente pelo bem comum e receber como resposta olhares furtivos de desprezo e ódio, que desaguam em risco concreto à própria vida.
Acima de tudo, o que causa mais angústias ao andar sob escolta, é saber que eu, como juiz, tenho minha integridade preservada, sou protegido, enquanto populações inteiras sofrem com a violência e não têm a quem recorrer. Neste país governado com tanta insensibilidade humana, quantas crianças presenciam confrontos patrocinados pelas forças públicas, quantas balas perdidas acham corpos pretos e vulnerabilizados, quantas famílias pobres são destroçadas pela tortura de seus entes!
Não cabe a mim recusar a escolta quando ela se faz essencial. A minha segurança transcende à minha pessoa, ela significa a segurança de um membro de poder, pertencente a uma instituição republicana. Mas não deixa de ser conflitante esse “privilégio” pessoal, frente à tanta miséria.
*
“Já me instalei e não devo mais sair de casa. Obrigado e descansem.”
“Não se preocupe, doutor. Ainda aguardaremos nas imediações. Descansa o senhor.”
Mais um dia findava e mais uma noite de escolta começava.
João Marcos Buch é juiz de direito e membro da Associação Juízes pela Democracia (AJD).