A estética mórbida do Bolsonarismo e o espírito neoliberal
A superexposição do presidente em roupas hospitalares, com fios e tubos entrando em sua boca ou pelo nariz, pode denotar uma estratégia de vitimização. Contudo, este artigo propõe lançar luz sobre um aspecto menos evidente dessa sua forma de aparição pública. Uma pequena intuição me sugere que a estética mórbida de Bolsonaro encontra uma ressonância na ideologia destrutiva do neoliberalismo.
Qualquer um que tenha ligado a televisão ou acessado a internet nos últimos meses percebeu que o presidente Jair Bolsonaro faz uso de uma iconografia degradante ou mórbida. Pensemos, por exemplo, na exposição recorrente do presidente em situações críticas e de aparente fragilidade, e aceitemos o convite que ela nos faz a uma reflexão sobre o significado dessa forma de comunicação.
A superexposição do presidente em roupas hospitalares, com fios e tubos entrando em sua boca ou pelo nariz, pode denotar uma estratégia de vitimização. Contudo, este artigo propõe lançar luz sobre um aspecto menos evidente dessa sua forma de aparição pública. Uma pequena intuição me sugere que a estética mórbida de Bolsonaro encontra uma ressonância na ideologia destrutiva do neoliberalismo.
Desde que Luc Boltanski e Eve Chiapello publicaram O novo espírito do capitalismo sabemos que o neoliberalismo se faz particularmente eficaz graças a todo um dispositivo discursivo de justificação que vai do campo da administração ao das finanças globais, passando pela explosão do mercado do trabalho informacional cuja maior expressão é o aplicativo Uber. O neoliberalismo é, para os autores, a ideologia da dissimulação por excelência.
Esse seu aspecto é explorado em recente documentário do francês Jean-Robert Viallet, L’Homme a mangé la terre. Ele mostra de maneira inequívoca o caráter mortífero do capitalismo, sobretudo, na sua fase neoliberal, representando o antropoceno como a era na qual o homem acabou devorando a terra. Não é à toa, então, que vivemos submersos por imagens de destruição da natureza, seja ela em forma do degelo ou das queimadas na floresta mais importante do planeta: a Amazônia. Tudo indica que esses efeitos devastadores sobre a natureza tenham a ver com o nosso modo de produção baseado no crescimento econômico como fim em si.
Engrenagem mortífera
Sempre percebi que a Sociologia não dispunha de todos os instrumentos intelectuais necessários para compreender certos fenômenos sociais. Por isso, tendo a procurar na arte uma explicação do mundo. Cito duas obras particularmente potentes e que souberam superar os limites do discurso sociológico.
No cinema, ninguém descreveu com tanta precisão a adesão das elites econômicas – portanto, capitalistas – ao totalitarismo como Luchino Visconti em seu Deuses malditos. O filme conta a história de uma grande família de aristocratas alemães que enriqueceu graças à indústria de armamento e precisa decidir o futuro não somente da família, como também da empresa diante da ascensão do nazismo. Eis que O barão Von Essenbeck, patriarca da família, decide ceder seu império a um amigo da família provocando uma guerra entre os diferentes herdeiros. Visconti mostra então que o totalitarismo não destrói apenas o campo político, mas igualmente a esfera da intimidade.
A eleição de Bolsonaro produziu em mim uma estranha necessidade de ver (e rever) o filme para tentar compreender o processo que faz um regime democrático, e sobretudo, as elites econômicas em sociedades democráticas abrirem caminho ao totalitarismo. Eu quis entender, sobretudo, como esse autoabandono ao mal corrói particularmente a alma.
Por outro lado, o pintor irlandês Francis Bacon conseguiu, com sua personalidade peculiar, refletir o horror da vida moderna. Em realidade, o que a violência de sua obra expressa não é nada mais que a engrenagem mortífera do capitalismo. Pensadores contemporâneos como Achille Mbembe, que consagra a categoria “necropolítica”, também detectaram essa correlação entre a política moderna e a produção da morte.
Segundo Mbembe (2016) a relação entre a política contemporânea e a morte se reflete em outras esferas tais como a economia e: “consequentemente, novas relações surgem entre o fazer guerras, as máquinas de guerra e a extração de recursos. Máquinas de guerra estão implicadas na constituição de economias locais ou regionais como altamente transnacionais”.
Essas obras me fazem pensar que imaginar as relações políticas contemporâneas sem essa lógica é, de certa forma, navegar no escuro. A violência não se limita ao simples fato de ser violência; ela precisa se apresentar em forma de discurso ao mesmo tempo impositivo e esteticamente remodelado.
A vingança de Quasimodo
A ideia de remodelagem da estética tem a ver com a possibilidade do indivíduo se acostumar com o horror. Na lógica bolsonarista a relação com o belo é invertida de tal maneira que autoriza falar da suposta feiura da primeira dama da França, Brigitte Macron, ao mesmo tempo que apresenta constantemente o presidente em situação de morbidez.
O advento do bolsonarismo consagrou no Brasil a onipresença do grotesco. É como se constantemente estivéssemos diante da imagem de Quasimodo, só que, desta vez, ele também seria a encarnação da figura do torturador: não no sentido físico, mas moral e estético.
O imaginário nacional é dominado por um sentimento de putrefação constante que paralisa os sentidos. De certa forma, Bolsonaro executa sua vingança pessoal contra todos. Assim como Quasimodo precipitou Frollo do alto de uma das torres de Notre-Dame, Bolsonaro precipita o país no abismo de sua estética destrutiva (Dinis, 2005).
Uma forma de olhar para o bolsonarismo, que abrange o presidente, mas também seus filhos e ministros, é, portanto, como a imposição do grotesco. Neste sentido, Bolsonaro é a própria figura de Quasimodo, mas sem a decência deste, pois Quasimodo tinha o pudor dos antigos, o que o tornava paradoxalmente sublime. Victor Hugo (2002) escreve que “o grotesco antigo é tímido, procura sempre esconder-se. Sente-se que não está no seu terreno, porque não está na sua natureza. Dissimula-se o mais que pode”. Já o bolsonarismo, em contraste, é um fenômeno moderno por sua própria natureza de permanente espetacularização: “no pensamento dos modernos, ao contrário, o grotesco tem um papel imenso. Aí está por toda a parte; de um lado, cria um disforme, e o horrível; do outro, o cômico e o bufo.” (Hugo, 2002).
Como se trata de um fenômeno moderno, também não há nada mais errôneo que qualificar o processo político atual de retrocesso; isto é, como algo perdido com que se teria reencontrado. A massificação, mesmo que seja do horror e da brutalidade, sempre foi um fenômeno moderno. A conjunção da comunicação de massa e dessa estética mórbida tem a faculdade de criar uma aproximação entre o governo e as massas individualizadas, embora essa relação em si seja uma falsificação da experiência.
A espetacularização funciona também como antídoto. É impossível manter viva a indignação coletiva sobre um momento específico já que outro momento ainda mais escandaloso vem ocupar seu lugar. O passado se torna inacessível, nem mesmo através da documentação ou do arquivamento. Minha impressão é que há uma sobreimpressão de imagens sobre outras num processo que acaba obscurecendo tanto a visão do passado quando a visão geral do quadro. O antídoto, neste sentido, não cura, mas neutraliza qualquer possibilidade de prolongamento da experiência (Kang, 2009).
Fabricação de um álibi moral
Nessa mesma lógica de normalização e superexposição do horror e do mórbido encontra-se a espetacularização da violência cristalizada na figura do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. No entanto, aqui, temos uma dimensão mais perversa e covarde, que é a da coletivização da morte.
É preciso voltar à Segunda Guerra Mundial para ver algo parecido do ponto de vista da fabricação de um álibi moral. Imediatamente após os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o governo norte-americano multiplicou as campanhas de propaganda cujo objetivo era justificar o assassinato industrial de civis. Esse episódio trágico da história da humanidade nunca foi mostrado de forma tão assustadoramente realista quanto no filme de Shohei Imamura, Chuva negra.
Pois bem, a tática de marketing usada pelo governo norte-americano consistiu em coletivizar o “êxito da operação” com todo o povo de tal forma que toda crítica contra o uso da bomba atômica era neutralizada. “O êxito de Hiroshima e Nagasaki não é apenas dos soldados, da marinha ou dos pilotos, é seu também, homem e mulher nas fábricas”, repetiam as peças publicitárias. Em outras palavras, você também apertou o botão.
Esquema psicológico
Witzel opera de acordo com esse mesmo esquema psicológico. Não deve surpreender que as operações da Polícia Militar tenham aumentado no Rio de Janeiro apenas algumas semanas depois do episódio trágico da ponte Rio-Niterói que terminou com a morte do sequestrador após ação de sniper.
A imagem do governador saltitando como um adolescente em momento de euforia não foi somente a materialização do vazio político que ele representa. Naquele momento, se estava construindo um álibi moral para o que viria depois. Era a concessão de um salvo-conduto para “ir mais longe”.
Não podemos esquecer que esse mesmo governador se desculpou e lamentou “futuras mortes”, algo inédito na história da comunicação política, prenúncio de uma lógica implacável: Witzel está construindo para si um álibi moral contra tudo que virá depois, na medida em que ele aumenta o número de seus cúmplices.
É sintomático que no dia seguinte às operações da Polícia Militar do Rio de Janeiro, quando habitantes do Complexo do Alemão relataram que tiros de um helicóptero impossibilitaram o funcionamento de escolas, o maior jornal televisivo do país, o Jornal Nacional, da Rede Globo, tenha dedicado apenas 36 segundos ao acontecimento. 36 segundos.
De certa forma, o álibi moral de Witzel vai ganhando consistência na medida em que o país perde sua capacidade de indignação. O risco agora é que os indignados não se sintam mais legitimados para expressar sua contrariedade, porque, quando ninguém reage, todos são culpados. Se isso chegar a acontecer, será então o momento em que a vergonha se tornará maior que a própria morte, como diria Kafka.
Referências
Boltanski, L. & Chiapello, E. O Novo Espírito do Capitalismo. Martin Fontes, Trad. Ivone C. Benedetti, Revisão técnica: Brasílio Sallum JR, São Paulo, 2009.
Dinis, D. F. Le sublime et le grotesque dans l’étude comparée de trois oeuvres: O Bobo de Alexandre Herculáno et Notre-Dame de Paris et Le Roi s’amuse de Victor Hugo. Máthesis 14, 2005, 205-220
Hugo, V. Do grotesco e do sublime. Tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
Kang, J. A crítica da cultura de Walter Benjamin. Trad. de Joaquim Toledo Júnior, Novos Estudos, 2009.
Mbembe, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016.