Amazônia e uma pós-verdade inconveniente
A pós-verdade soa como um eufemismo inconveniente, uma vez que este, por definição, cumpre a função de suavizar uma expressão ou evento de carga negativa. As imagens de satélites da Nasa e as nuvens de fumaça que cobrem os céus de boa parte do país, porém, dispensam figuras de linguagem contraproducentes. O cenário caótico, mais do que nunca, justifica alarmismos e sobressaltos, exigindo ações rápidas para conter as chamas que se espalharam da democracia brasileira para a floresta amazônica.
Em 2016, a Universidade de Oxford elegeu a pós-verdade como palavra do ano. O termo, segundo o Oxford Dictionaries (2016), denota “circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. A pós-verdade ganha destaque com o que estamos vendo na Amazônia. Mas o termo ganhou notoriedade na esteira da eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e da vitória do Brexit, no Reino Unido, ambos democraticamente escolhidos em um cenário de difusão de argumentos falaciosos.
Exemplos ilustrativos foram as mentiras propagadas por Trump e seus correligionários acerca de o aquecimento global ser uma farsa ou sobre Barack Obama não ter nascido nos Estados Unidos – o que faria deste um presidente ilegítimo e criminoso. Naquele contexto, o então presidente Obama chegou a tornar pública sua certidão de nascimento, mas, para os fanáticos seguidores de Trump, a verdade não fazia a menor diferença. Em outras palavras, parafraseando Nelson Rodrigues, se os fatos diziam o contrário, pior para os fatos.
O Brasil de 2019, no entanto, parece ter alçado a pós-verdade a patamares sem precedentes, fazendo com que o comedimento inato ao termo já cause algum incômodo ou constrangimento, sobretudo aos que podem observar, da janela de casa, a fumaça e as cinzas da verdade e da Amazônia.

Por aqui, onde vivemos a era das mentiras escancaradas e das fraudes escandalosas, a pós-verdade soa como um eufemismo inconveniente, uma vez que este, por definição, cumpre a função de suavizar uma expressão ou evento de carga negativa. As imagens de satélites da Nasa e as nuvens de fumaça que saíram da Amazônia e cobrem os céus de boa parte do país, porém, dispensam figuras de linguagem contraproducentes. O cenário caótico, mais do que nunca, justifica alarmismos e sobressaltos, exigindo ações rápidas para conter as chamas que se espalharam da democracia brasileira para a maior floresta do planeta.
ONU e G7
Como no combate a qualquer incêndio, todos os focos do fogo precisam ser apagados para que ele não volte a se alastrar. E a origem da tragédia que vem suscitando as necessárias, ainda que tardias, reações da ONU e do G7 não está na floresta, mas sim na política.
O golpe de 2016, a indústria das fake news e as tramoias jurídicas clandestinas, que vêm sendo reveladas pela Vaza Jato, levaram ao poder um presidente legitimado pelas urnas e deslegitimado pela verdade. Esta, no entanto, não tardou a vir à tona: o governo Bolsonaro se forjou em sistemáticos ataques ao Estado democrático de direito, que retiraram da disputa eleitoral seu principal, favorito e hoje preso político adversário, e que estão implodindo a democracia brasileira.
Uma realidade que se manifesta agora através das chamas na Amazônia, mas que já vem se revelando há tempos nos ataques às universidades, à seguridade social, à Ancine e às reservas indígenas – para nos retermos apenas a alguns exemplos. Entretanto, ao potencializar uma crise climática global, a devastação do país transpassa fronteiras nacionais, atraindo maior atenção da comunidade internacional, tradicionalmente mais preocupada com indicadores de risco financeiro do que propriamente com a qualidade de democracias mundo afora.
Infelizmente, para os brasileiros, os bombeiros não vieram quando a política estava sendo carbonizada pelo bolsonarismo. Infelizmente, para a humanidade, talvez não haja agora bombeiros suficientes para conter o desastre gestado em outubro de 2018 – e que muitos aplaudiram.
Atrocidades
Bolsonaro, já não é novidade, sempre defendeu publicamente uma longa lista de atrocidades, na qual se inclui o desprezo por qualquer tipo de pauta favorável à conservação ambiental. Sem grandes surpresas a essa altura do campeonato, portanto, eis a explicação presidencial para o inferno que nos cerca: “pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil” (Folha, 2019).
Sim, para Jair Bolsonaro a tragédia na Amazônia parece ser apenas um ato de guerra de seu inimigo ideológico imaginário contra a sua pessoa. Antes disso, aliás, recorda-se que o presidente abriu fogo contra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – cujo diretor logo foi demitido – pela inconveniente divulgação de dados sobre o desmatamento no Brasil.
Mais exemplos contemplam um CNPq falido e o corte de verbas da CAPES, demonstrando que a verdade não é admissível para o presidente da pós-verdade. Assim como não foi um processo democrático que pariu o presidente da pós-democracia.
Quem sabe aí não resida uma das peças do quebra-cabeças da origem do incêndio que por ora mobiliza a humanidade. Para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a conservação da Amazônia só seria mesmo possível através de uma dose de capitalismo (BBC, 2019). Como árvores e animais resistem a aderir à ideologia do governo, não é por meio deles que a política ambiental vem sendo implementada a todo vapor, substituindo o verde pelo cinza e a vida pela morte. Salles, cabe observar, é do Partido Novo, o mais governista no Congresso Nacional e que, de Novo, só fez pintar de laranja um conjunto de ideias velhas e fracassadas.
Distopia
Na pasta da injustiça, seu colega, ex-juiz, vem submergindo em um mar de lama, que alega ser falso, mas que diz também não conter nada de errado. Já o ministro mais mal-educado da história da Educação não faz qualquer cerimônia para drenar os recursos financeiros que, no curto-prazo, vão paralisar o ensino público – do nível básico ao superior.
Na famosa distopia de George Orwell, o Ministério da Verdade era o responsável por destruir documentos históricos e propagar mentiras favoráveis ao governo, o Ministério da Paz tratava dos assuntos da guerra, o Ministério do Amor tinha como ofício monitorar, torturar e assassinar os inimigos do regime e o Ministério da Fartura era o responsável pela fome.
Qualquer semelhança com o Brasil, a essa altura, já não é mera coincidência. Ainda que por aqui, diferentemente da Pista de Pouso Número 1, ainda haja tempo para apagar as chamas do incêndio. E neste ponto, é bom dizer que não há remédio para a pós-verdade que não passe pelo reencontro com a verdade. Assim como não há remédio para a pós-democracia que não inclua a retomada da democracia. Ambas, por sinal, são mutuamente dependentes entre si para existir e sobreviver.
É preciso, portanto, fechar as portas do inferno que se abriram com o golpe de 2016 que retirou do poder a última presidente legítima e democraticamente eleita no país. De lá, afinal, estão vindo as chamas que devem acelerar a ascensão da era da pós-humanidade.
Pedro Lange Netto Machado é doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), onde é pesquisador associado ao Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP). Contato: [email protected]