A ética vitoriosa de Donald Trump
Para entender a ascensão de Trump, contextos e proporções à parte, basta acompanhar as redes digitais brasileiras. Nelas há exemplos cotidianos do crescimento de um espírito reacionário que amalgama diversos repertórios comuns
A perplexidade generalizada com o resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos deixou escapar um ponto simples e fundamental: o sucesso de Donald Trump não ocorreu apesar de sua figura polêmica, mas exatamente por causa dela. Em outras palavras, o machismo, a xenofobia e a intolerância do candidato fizeram parte de uma bem-sucedida estratégia publicitária.
Isso significa que o republicano soube reproduzir a imagem de liderança que as pesquisas qualitativas demonstraram ser mais atraente para seu público-alvo. O risco de incorporar tal personagem nunca seria assumido, numa campanha bilionária, com centenas de profissionais envolvidos, se houvesse qualquer perspectiva de fracasso.
É ocioso especular sobre o artificialismo da figura. O sucesso empresarial de Trump já insinua uma sagacidade que, por natureza, tem pouco de espontânea. O fato é que, apesar das notórias idiossincrasias pessoais, nas eleições ele poderia ter optado pela temperança, adotando perfil ameno e hipócrita, como tantos candidatos similares. E perderia a disputa, pois ficaria associado à figura do político tradicional, que seus seguidores rejeitam.
A persuasão exercida por Trump não se deu tanto no universo argumentativo (o logos da retórica clássica) quanto na afinidade com a imagem-de-si (o éthos) que ele construiu através das suas propostas, calcadas em predisposições do eleitorado republicano. Daí o esforço quase caricato para negar os valores identificados com o campo democrata, em especial aqueles que compõem o repertório do “politicamente correto”, assimilado por seus opositores como elitista, hipócrita, burocrático, injusto.
Longe de ser a causa, portanto, Trump é sintoma de um fenômeno que os progressistas ignoraram por tempo demasiado, talvez porque receassem admiti-lo. E, de fato, ainda resistem a aceitar que a adesão à ética “antiética” de Trump ilustra o esgotamento de uma cultura política de pretensões universais e civilizatórias, tida como inerente a nações desenvolvidas e democracias consolidadas. Pelo menos a setores populacionais com certo grau de instrução, liberdades, acesso à internet etc.
Esses aspectos são menosprezados também no Brasil. As análises hegemônicas nos debates locais parecem calcadas na ilusão de que o populismo não passa de um ardil para enganar os eleitores e manipular suas vontades e expectativas. É mais fácil demonizar ou ridicularizar certas figuras do que reconhecer que espelham tendências preexistentes, assumindo papéis que as satisfaçam no interior de pautas circunstanciais.
Para entender a ascensão de Trump, contextos e proporções à parte, basta acompanhar as redes digitais brasileiras. Nelas há exemplos cotidianos do crescimento de um espírito reacionário que amalgama diversos repertórios comuns, principalmente os contrários a pautas progressistas e em geral nascidos no antipetismo que se disseminou a partir do imenso esforço midiático a favor do impeachment.
Trata-se de um mesmo impulso represado, unindo as bolhas de ignorância da internet, à espera de alguém que o incorpore. É ingênuo acreditar que essa expectativa ainda não produziu resultados. Eles apareceram, apesar de esparsos e localizados, nas vitórias de candidatos municipais que apostaram no mesmo tipo de ética antipolítica adotado por Trump e que tiveram, como ele, um público predisposto a aceitá-la.
O sucesso das iniciativas regionalizadas configura o primeiro passo para o fenômeno atingir dimensões nacionais. Sua trama subjetiva aos poucos vai enredando contingentes urbanos cada vez maiores, norteados por crenças e princípios homogêneos que as plataformas locais naturalizam e fortalecem. E, de modo muito característico, a própria frustração das esperanças renovadoras alimenta esse arcabouço ideológico, pois o ceticismo perante os fiadores do discurso eleitoral ortodoxo recicla as potências desejosas de alternativas, ampliando-as para domínios de percepção do sistêmico e do global.
O perigo do ultraconservadorismo não reside na aparição de representantes modestos ou identificados com nichos radicais. Reside no fortalecimento desse imaginário até ele ganhar relevância estatística, atraindo a máquina partidária, o aporte financeiro e as lideranças prestigiadas que tornam qualquer projeto competitivo. Quando a causa passar a instrumento de pragmatismo eleitoral, sua fantasia ética estará pronta para quem se dispuser a vesti-la. E não será um diletante qualquer.
Guilherme Scalzilli, historiador e escritor, mestre em Divulgação Científica e Cultural. Blog: http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/