A Europa que não queremos mais
A crise grega mostra o funcionamento da União Europeia, como testemunha em artigo o ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis (págs. 14 e 15). Ela atualizou a distância entre o mundo real e as ambições formuladas pelos pais fundadores da comunidade: democracia, solidariedade e prosperidade.Serge Halimi
Um movimento jovem e vigoroso pretendia transformar uma nação e despertar o Velho Continente. O Eurogrupo e o FMI acabaram com essa esperança.
Podemos extrair três lições do choque que os acontecimentos gregos representam para os adeptos do projeto europeu. Em primeiro lugar, a natureza cada vez mais autoritária da União Europeia, à medida que a Alemanha lhe impõe sem contrapeso suas vontades e obsessões. Depois, a incapacidade de uma associação fundada na promessa de paz de aprender qualquer coisa com a história, mesmo recente, mesmo violenta, pois seu maior interesse é castigar os maus pagadores e os cabeças-duras. Finalmente, o desafio apresentado por esse cesarismo amnésico aos que veem na Europa o laboratório de uma superação do quadro nacional e de uma renovação democrática.
De início, a integração europeia prodigalizou a seus cidadãos as vantagens materiais colaterais do enfrentamento Leste-Oeste. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o projeto foi impulsionado pelos Estados Unidos, que buscavam um escoadouro para suas mercadorias e uma barreira contra a expansão soviética. Washington compreendera que, se o chamado mundo “livre” quisesse concorrer em igualdade de condições com as repúblicas “democráticas” do Pacto de Varsóvia, deveria antes de tudo conquistar corações e mentes – demonstrando sua boa vontade social. Como esse fator de estratégia não existe mais, a Europa administra-se como se fosse um banco.
Alguns atores da Guerra Fria, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), sobreviveram à queda do Muro de Berlim inventando novos monstros a destruir em outros continentes. As instituições europeias também redefiniram seu adversário. A paz e a estabilidade que alardeiam reclamam agora a neutralização política das populações e o fim dos instrumentos de soberania nacional de que elas ainda dispõem. É a integração em marcha forçada, a inserção das questões políticas em tratados, o projeto federal. Esse empreendimento não é de hoje; o caso grego apenas ilustra com que brutalidade ele vem sendo conduzido atualmente.
“Quantas divisões possui o Vaticano?”, teria replicado Joseph Stalin a um dirigente francês que o aconselhava a poupar as suscetibilidades do soberano pontífice. Oitenta anos depois, os Estados do Eurogrupo parecem raciocinar da mesma maneira a propósito da Grécia. Estimando que seu incômodo governo seria incapaz de se defender, eles o desestabilizaram, obrigando-o a fechar bancos e a proibir compras no exterior.
A priori, as relações entre as nações-membros da mesma “união”, que participam das mesmas instituições, elegem um mesmo parlamento e adotam a mesma moeda, não deveriam permitir esse tipo de tramoia. Todavia, certos de sua superioridade esmagadora, todos os Estados do Eurogrupo, com a Alemanha à frente, impuseram à Grécia enfraquecida um ultimato que, pelo consenso geral, agravará a maior parte de seus problemas. O episódio deixa a nu a profundidade das imperfeições europeias.1
Em janeiro último, o partido de esquerda Syriza venceu as eleições e parece ter razão em (quase) tudo. Razão em identificar a ruína da economia grega com o purgante administrado, durante cinco anos, ao país tanto pelos socialistas quanto pela direita. Razão em alegar que nenhum Estado com seu setor produtivo inibido pode se recuperar consagrando somas cada vez maiores ao reembolso dos credores. Razão em lembrar que, numa democracia, a soberania pertence ao povo, o qual se torna impotente caso sua decisão não influa na política a ele imposta.
Diante de um pelotão de fuzilamento
Três cartas imbatíveis, desde que os jogadores sejam amigos. Nos conselhos europeus, esses trunfos se voltaram contra seus detentores, definidos como marxistas meridionais, distantes da realidade a ponto de se atrever a questionar os postulados econômicos oriundos da ideologia. As armas da “razão” e da convicção são inúteis em casos desse tipo. Para que alegar inocência diante de um pelotão de fuzilamento? Durante os meses de “negociações” das quais participou, o então ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, percebeu que seus colegas europeus o olhavam fixamente, parecendo pensar: “Você tem razão, mas nós o esmagaremos assim mesmo”.2
Contudo, o sucesso ao menos provisório do projeto alemão de relegar a Grécia à condição de protetorado do Eurogrupo se explica também pelo fracasso das apostas, demasiado otimistas, feitas desde o início em Atenas pela maioria de esquerda que esperava mudar a Europa.3 Pensava-se que os dirigentes francês e italiano a ajudariam a superar os tabus monetaristas da direita alemã. Pensava-se que os povos europeus, esmagados pelas políticas de austeridade que eles também suportavam, pressionariam seus governos a adotar a reorientação keynesiana da qual a Grécia se julgava o guia no Velho Continente. Pensava-se que essa reviravolta seria tão viável na zona do euro a ponto de não se cogitar nenhuma outra solução. Pensava-se, enfim, que a sugestão intermitente de uma “opção russa” conteria, por razões geopolíticas, as ganas punitivas da Alemanha e induziria os Estados Unidos a travar o braço vingador de Berlim. Nenhuma dessas esperanças pareceu em vias de concretizar-se. Não se combate um tanque de guerra com violetas e zarabatanas.
Inocentes culpados, os dirigentes da Grécia acharam que os credores do país se mostrariam sensíveis à escolha democrática do povo grego, de sua juventude em particular. As eleições legislativas de 25 de janeiro e depois o referendo de 5 de julho provocaram, ao contrário, a estupefação ultrajada de Berlim e seus aliados. Eles então só tiveram um objetivo: castigar os rebeldes e todos aqueles que sua ousadia houvesse podido inspirar. A capitulação por si só não bastava, teria de vir acompanhada de desculpas (Atenas admitiu que suas escolhas econômicas tinham provocado a quebra da confiança de seus parceiros) e reparações: ativos públicos privatizáveis, de valor igual a um quarto do produto nacional grego, deveriam servir de penhor junto aos credores. Graças ao inestimável apoio do presidente francês, François Hollande, a Grécia conseguiu apenas que esse penhor não fosse transferido para Luxemburgo. Todos se sentiram aliviados: a Grécia pagará.
“A Alemanha pagará.” Essa fórmula, sugerida ao ex-presidente francês Georges Clemenceau por seu ministro das Finanças Louis Klotz ao fim da Primeira Guerra Mundial, tornou-se o talismã dos poupadores da França que haviam emprestado ao Tesouro durante o sangrento conflito. Eles se lembravam de que, em 1870, a França havia pago o montante integral do tributo exigido por Bismarck, superior ao que a guerra custara aos alemães. Esse precedente inspirou o presidente do Conselho, Raymond Poincaré: cansado de não receber as parcelas das reparações alemãs previstas no Tratado de Versalhes,4 ele decidiu, em janeiro de 1923, forçar a barra ocupando o Vale do Ruhr. O economista britânico John Maynard Keynes, contudo, compreendeu logo a inutilidade dessa política de humilhação e penhor obtido à força: se a Alemanha, como hoje a Grécia, não pagava era porque não podia pagar. Só com os eventuais excedentes de sua balança comercial ela conseguiria saldar sua dívida gigantesca. Ora, a França não admitia a ressurreição econômica de sua rival, pois isso permitiria à Alemanha “pagar”, mas também, talvez, financiar seu Exército, com risco de um terceiro conflito mortal entre os dois países. O êxito econômico da esquerda grega não teria consequências humanas tão dramáticas para os povos europeus. Mas deitaria por terra a justificativa das políticas de austeridade de seus dirigentes…
Os outros pagarão ainda mais caro
Um ano depois de se apossar de seu penhor, Poincaré precisou aumentar os impostos em 20% a fim de cobrir as despesas da ocupação do Ruhr. Para um dirigente de direita inimigo dos impostos, que não parava de esbravejar que a Alemanha pagaria, o paradoxo pareceu cruel. Poincaré perdeu as eleições; seu sucessor evacuou o Ruhr. Hoje não se concebem consequências dessa ordem em nenhum dos países europeus que acabam de oprimir a Grécia para obrigá-la a pagar uma dívida que até o FMI admite ser “totalmente inviável”. Todavia, essa fúria punitiva já obrigou os países do Eurogrupo a dispor em julho de três vezes mais dinheiro (perto de 90 bilhões de euros) do que seria necessário se a soma houvesse sido desbloqueada antes, pois, nesse meio-tempo, a economia grega minguou por falta de liquidez.5 O rigor do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, custará, pois, quase tanto quanto o de Poincaré. Mas a infindável humilhação de Atenas servirá de exemplo para os próximos recalcitrantes – Madri? Roma? Paris? Ela lhes lembrará o “teorema de Juncker”, formulado pelo presidente da Comissão Europeia apenas quatro dias depois da vitória legislativa da esquerda grega: “Não há escolha democrática em relação aos tratados europeus”.6
Uma cama não se torna pequena demais quando dezenove sonhos nela se acotovelam? Impor em poucos anos a mesma moeda à Áustria, a Chipre, a Luxemburgo e à Espanha, a povos que não têm a mesma história, a mesma cultura política, o mesmo padrão de vida, os mesmos amigos ou a mesma língua foi um empreendimento por assim dizer imperial. Como um Estado pode conceber uma política econômica e social submetida a debate e a arbitragens democráticas quando todos os mecanismos de regulamentação monetária lhe escapam? Como supor que povos desconhecidos entre si aceitem uma solidariedade comparável à que liga hoje a Flórida e Montana? Tudo se baseava numa hipótese: o federalismo em marcha forçada iria aproximar as nações europeias. Ora, quinze anos depois do surgimento do euro, a animosidade entre elas está no auge. Com efeito, em 27 de junho, quando anunciou seu referendo, o primeiro-ministro Alexis Tsipras empregou termos muito semelhantes a uma declaração de guerra. Vilipendiou a “proposta [do Eurogrupo] em forma de ultimato endereçado à democracia grega”. E acusou alguns de seus “parceiros” de terem por objetivo “humilhar todo um povo”. Os gregos apoiarão em massa seu governo; os alemães secundarão em bloco as exigências rigorosamente contrárias do deles. Poderão os dois unir seus destinos mais estreitamente ainda sem o risco de violências conjugais?
Contudo, não há inimizade apenas entre Atenas e Berlim. “Não queremos ser uma colônia alemã”, insiste Pablo Iglesias, dirigente do partido Podemos, da Espanha. “Digo à Alemanha: já chega! Humilhar um parceiro europeu é impensável”, desabafa o presidente do Conselho italiano, Matteo Renzi, que, no entanto, se destacou pela notável discrição durante todo esse processo. “Nos países mediterrâneos e, em certa medida, na França”, observa o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, “a Alemanha é detestada como jamais o foi desde 1945. […] A união econômica e monetária, que deveria consolidar em definitivo a União Europeia, pode agora fazê-la voar em pedaços.”7
Os gregos igualmente despertam sentimentos hostis. “Se o Eurogrupo funcionasse como uma democracia parlamentar, você já estaria fora, pois a quase totalidade de seus parceiros querem isso”, teria concluído, dirigindo-se a Tsipras, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia.8 E, segundo uma mecânica conservadora bem conhecida, agora elevada ao nível de nações, os Estados pobres foram induzidos a acusar-se mutuamente de viver à custa de outros quando estes eram ainda mais pobres que eles. O ministro da Educação estoniano procurou acalmar assim o ânimo de seus “parceiros” de Atenas: “Vocês fizeram muito pouco, muito devagar e infinitamente menos que a Estônia. Nós sofremos mais que a Grécia, mas não paramos para choramingar, nós agimos”.9 Os eslovacos ficaram escandalizados com o nível, segundo eles, muito alto das aposentadorias na Grécia, um país que deveria ser declarado “falido, para purificar a atmosfera”, completou generosamente o ministro das Finanças tcheco.10
Rematando à sua maneira essa festança estival da Europa social, Pierre Moscovici, socialista francês e comissário europeu para assuntos econômicos e financeiros, repetiu alegremente a mesma “anedota” a todos os microfones que se voltavam para ele: “Em uma reunião do Eurogrupo, um ministro socialista lituano disse a Varoufakis: ‘É muito simpático de sua parte querer aumentar o salário mínimo em 40%, mas seu salário mínimo já é o dobro do nosso. E você quer aumentá-lo com o dinheiro que nos deve, com uma dívida!’. Eis aí um argumento de peso”.11 De peso, realmente – sobretudo quando se sabe que, há apenas catorze meses, o partido de Moscovici anunciava: “Queremos uma Europa que proteja seus trabalhadores. Uma Europa de progresso social, e não de degradação social”.
Avançar na mesma direção de sempre
Em 7 de julho de 2015, durante uma reunião do Conselho Europeu, vários chefes de Estado e de governo comunicaram a Tsipras a irritação que ele lhes inspirava: “Não aguentamos mais! Há meses que só se fala da Grécia! É preciso tomar uma decisão. Se você não for capaz de fazer isso, nós faremos por você”.12 E fizeram mesmo, alguns dias depois. Não deveríamos ver aí uma forma, ainda que rudimentar, de federalismo? “Precisamos avançar”, foi a conclusão que Hollande tirou em 14 de julho desse episódio. Mas avançar em que direção? Ora, na de sempre: “o governo econômico”, “um orçamento da zona do euro”, “a convergência com a Alemanha”. Pois na Europa, quando uma prescrição degrada a olhos vistos a saúde econômica ou democrática de um paciente, dobra-se a dose. É que, segundo o presidente francês, “a zona do euro soube reafirmar sua coesão com a Grécia”, “as circunstâncias nos obrigam a ir mais depressa”.13
Para um número crescente de militantes de esquerda e sindicalistas, o melhor seria, ao contrário, parar e refletir. Mesmo para quem teme que a saída do euro favoreça o deslocamento do projeto europeu e o despertar dos nacionalismos, a crise grega oferece um exemplo de que, na ausência de um povo europeu, a moeda única se opõe frontalmente à soberania popular. Longe de conter a extrema direita, essa evidência a conforta quando ela critica as lições de democracia de seus adversários. E como supor, de resto, que a moeda única possa se acomodar um dia a uma política de progresso social depois de ler as instruções que os Estados do Eurogrupo, unanimemente, enviaram a Tsipras para induzir o primeiro-ministro de esquerda a adotar uma férrea política neoliberal?
Ao longo de sua história, a Grécia já suscitou grandes questões universais. Desta vez, ela acaba de desnudar a aparência atual da Europa que não queremos.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).