A extrema-direita contra o legado de Francisco
O poderio e a influência do catolicismo atravessaram os tempos, sobrevivendo à queda de impérios, a mudanças de governos e a guerras das mais diversas proporções. Portanto, quem será o próximo ocupante do trono de Pedro?
Nesses dias de sede vacante – entre a morte do Papa e a eleição de um novo – o mundo todo vive a expectativa do momento em que veremos a fumaça branca saindo da chaminé da Capela Sistina, que anunciará que habemus papam. Enquanto isso, podemos observar as inúmeras notícias que transbordam o intramuro da Santa Sé e inundam o mundo secular, antes mesmo do início do Conclave.
Muitas especulações sobre os rumos que a Igreja tomará com o novo pontificado — quem será o próximo ocupante do trono de Pedro? — vêm à tona, enquanto o legado de Francisco é celebrado por uns e rechaçado por outros. Muito distante da ideia de uma Igreja uníssona e monolítica, os bastidores deste conclave revelam as disputas, internas e externas, que a cercam.
Os conchavos em torno de quem será o novo Papa começaram antes mesmo de Francisco fazer sua Páscoa definitiva. O termo “conchavo” possui a mesma origem etimológica que “conclave”: ambos vêm da expressão em latim conclava, que podemos traduzir como “fechado à chave”, para se referir a reuniões fechadas com caráter secreto.
Enquanto “conclave” é utilizado para nomear a assembleia em clausura de cardeais reunida para eleger um novo papa, a palavra “conchavo” adquiriu, na língua portuguesa, uma conotação negativa de conluio — uma aliança para algo ruim, uma mancomunação ou trama.
Antevendo sua morte ou afastamento devido aos problemas de saúde que o Papa enfrentava, Donald Trump, reconhecida liderança da extrema-direita global, vem, há meses, encarando a sucessão papal como uma prioridade estratégica de seu novo mandato presidencial.
Ainda que seu vice, J.D. Vance, seja católico (recentemente convertido), o interesse de Trump – criado na fé presbiteriana e autodeclarado, há alguns anos, “cristão não denominacional” – na sucessão do maior cargo do catolicismo, certamente passa ao largo de questões de ordem religiosa. Sua busca por influenciar o resultado do Conclave revela o quanto a política e a economia estão presentes neste evento (não puramente) religioso carrega em seu cerne.
Aliás, cabe notar que, se voltarmos para a longa história da Igreja Católica, não é possível dissociar o religioso do político e do econômico. Esses três elementos sempre estiveram imbricados desde os primórdios de sua incorporação ao mesmo império que assassinou seu inspirador, Jesus Cristo: o Império Romano. A imperialização do cristianismo, iniciada pela conversão de Constantino no início do século IV, depois a oficialização como religião do Império Romano com Teodósio I, no mesmo século, traçou os rumos dessa amálgama que Carlos Magno, quatro séculos mais tarde, consolidou.
A própria Igreja foi se constituindo como um império e, ao longo de seus dois milênios de existência, participou e influenciou muitos outros. O poderio e a influência do catolicismo atravessaram os tempos, sobrevivendo à queda de impérios, a mudanças de governos e a guerras das mais diversas proporções.
Não é surpreendente, portanto, que as atenções do Ocidente estejam voltadas para quem será o próximo a conduzir a “Barca de Pedro” – como é chamada a Igreja pelos setores mais conservadores – pelos mares turbulentos da conjuntura global que se apresenta neste um quarto do século XXI.
Também não é inédito o interesse de Washington na sucessão do leme da Santa Sé, como muitas reportagens vêm trazendo à tona. Exemplo disso é a aliança entre a Casa Branca e o Vaticano durante a Guerra Fria, e o papel estratégico deste na condenação do comunismo e da União Soviética.
Essa condenação moral foi fundamental tanto para fortalecer o discurso dos EUA para o mundo, como defensor das liberdades e da democracia, quanto para calar vozes que se levantavam desde o interior da própria Igreja, por uma orientação pastoral e teológica centrada nos pobres e sua libertação dos males do capitalismo.
A partir do primeiro mandato de Trump (2017-2021), Francisco se tornou um ponto de inflexão nessa aliança. Denunciou as mazelas provocadas pelo capitalismo: a pobreza, a crise climática, as guerras, genocídios dos povos originários e dos palestinos.
O tema das migrações e dos refugiados foi especialmente caro ao papa Francisco, sendo não apenas uma voz de defesa e acolhida, mas também um declarado opositor da política econômica de Trump e da xenofobia institucionalizada em seu governo. Francisco criticou a construção do muro na fronteira do México logo no início do primeiro mandato do presidente dos EUA, chegando a declarar que “uma pessoa que pensa apenas em construir muros, e não pontes, não é cristã”, ao que Trump respondeu ser “vergonhoso” para um líder religioso colocar em dúvida a fé de alguém.
Diante da oposição declarada a Francisco e ao que ele representou para a Igreja e para o mundo, o desejo de Trump e da extrema-direita global é enterrar o legado de Francisco junto com ele, interrompendo um ciclo de renovação da Igreja e de sua atuação empática com as dores das pessoas mais vulnerabilizadas e do planeta Terra, nossa “Casa Comum”, como dizia. O que está em jogo são as fissuras internas que Francisco provocou e deixou como legado, bem como o poder e a influência que a Igreja Católica exerce no mundo secular.

O catolicismo é o elemento ordenador do mundo ocidental: não é possível pensar no Ocidente sem o cristianismo. Para além da fé professada por mais de um bilhão de pessoas, a instituição católica é responsável pela forma como organizamos, inclusive, nosso tempo e espaço e, portanto, toda a vida cotidiana.
Na América Latina, em especial – que conta com quase metade dos católicos do mundo –, foi um dos lastros coloniais responsáveis pelo escravismo, que até hoje nos assola com o racismo aliado às desigualdades econômicas e de gênero. Sem a legitimidade que a Igreja Católica conferia, em termos morais, simbólicos e espirituais, às empreitadas colonizadoras, elas não teriam existido. Ao mesmo tempo, foram essas mesmas empreitadas que permitiram a expansão do catolicismo pelo mundo.
É justamente este elemento ordenador que interessa ao projeto da extrema-direita, que tem como um dos pilares o ultraconservadorismo religioso. Olhando para o interior do mundo católico, o melhor termômetro para medir a temperatura das ebulições provocadas por Francisco é a postura dos grupos ultraconservadores contra ele. Paradoxalmente, foram os grupos ultraconservadores católicos os responsáveis por questionar a autoridade papal de Francisco.
Os mesmos que prezam pela tradição católica ignoraram que, ao falar desde sua cadeira pontifícia (ex-cátedra), o papa é preservado do erro, de acordo com o dogma da infalibilidade papal, estabelecido pelo Concílio Vaticano I, em 1800. Isso demonstra a mutabilidade, mesmo de seus fundamentalismos, uma vez que elementos que são pilares da tradição – como a autoridade moral, a rígida hierarquia da Igreja e até mesmo um dogma – são facilmente abandonados diante de seus interesses políticos.
As “Dúbias”, apresentadas a Francisco em 2016 e 2023, são emblemáticas da oposição interna que o pontífice enfrentava e do questionamento de sua autoridade. Em 2016, sobre a possibilidade de comunhão de pessoas divorciadas e em segunda união que a exortação apostólica “Amoris Laetitia” e as “Dúbias” de 2023 por ocasião do Sínodo da sinodalidade de 2023, por sua vez questionavam a possibilidade de bênção para casais homoafetivos, uma abertura para ordenação de mulheres, como a própria ideia de uma Igreja mais sinodal, um processo de descentralização da Cúria Romana de decisões de ordem moral e doutrinária para os Sínodos.
Aqui no Brasil, também é perceptível como alguns grupos católicos ultraconservadores rechaçam as mudanças promovidas por Francisco e não poupam críticas ao pontífice. O Centro Dom Bosco, – um grupo ultraconservador que se propõe a “resgatar o que foi perdido por causa do modernismo e das diversas infiltrações na estrutura eclesiástica” – por exemplo, chegou a afirmar que Francisco violava a tradição da Igreja ou até mesmo que abriu caminho para heresias.
Não fortuitamente, são grupos alinhados ao bolsonarismo e trumpismo, utilizando suas redes e canais de comunicação para apoiar as ideias e candidaturas desse espectro político. Esses grupos foram fundamentais para a eleição de Jair Bolsonaro à presidência, apoiando abertamente seu nome, o combate à diversidade sexual e à autonomia reprodutiva, e a defesa da família tradicional, mostrando como as moralidades religiosas e o neoliberalismo econômico são pilares do mesmo projeto de poder.
A extrema-direita, católica ou não, deseja um novo pontífice que se volte mais para a Igreja de modo interno, não para reformá-la, mas para reavivar a tradição e o conservadorismo moral, ao passo que seja mais condescendente sobre as questões da geopolítica global.
Ao mesmo tempo, há uma forte pressão social e interna para que o legado de Francisco continue inspirando a Igreja a seguir na direção da renovação e de uma presença mais pastoral no mundo.
O novo pontífice enfrentará, assim, desafios espinhosos para manter o que Francisco construiu. Como posicionar-se em um mundo globalizado, cada vez mais mediado pela tecnologia, frente a uma pluralidade religiosa dentro do próprio cristianismo e dos conflitos internos do catolicismo, cada vez mais acirrados.
Após declarar que sua primeira opção para o novo papa seria ele próprio, Trump publicou em seu perfil uma imagem sua com vestes papais. A imagem, gerada por Inteligência Artificial, também republicada pelo perfil oficial da Casa Branca, movimentou as redes e a imprensa mundial, provocando reações de católicos e não católicos, em sua maioria revoltados com o que consideraram desrespeitoso e debochado.
O efeito negativo, contudo, não parece causar qualquer abalo ou constrangimento em Trump, que mantém, até o momento, a publicação no ar. Muito familiarizado com a gramática do mundo digital e com a lógica por trás dos algoritmos, o presidente dos EUA conseguiu, de alguma maneira, capturar as atenções para o evento de maior importância para o catolicismo e, de quebra, desviar as críticas que vem recebendo internamente pela guerra comercial com a China, deportações arbitrárias e pela perseguição violenta a quem ousa se levantar contra o genocídio em Gaza promovido por Israel, com seu apoio irrestrito.
Mesmo sem saber se as estratégias que vem desenvolvendo nos bastidores do Vaticano serão bem-sucedidas, essas investidas trazem à tona questões latentes que envolvem a geopolítica mundial e o papel crucial que o Vaticano exerce dentro dela. E revelam o quão estratégico é o projeto de reorganização da ordem global da extrema-direita mundial, personificado na figura de Trump.
É por isso que, de maneira talvez inédita, Trump vem tentando, de forma pública e notória, influir na própria escolha do novo pontífice desde o “extra omnes” (todos fora) do Conclave, mesmo antes de ele ser anunciado. Para além do sucesso que possa obter quanto à influência na decisão do novo pontífice, o fato é que Trump já conseguiu, e com ele toda a extrema-direita mundial, que o Conclave se tornasse sobre ele. O que é, por si só, um alerta que não podemos menosprezar.
Gisele Pereira é Coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Historiadora e mestra em Ciência da Religião (PUC-SP). Pesquisadora da linha de Gênero, Religião e Poder do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-UNICAMP).