A força do iluminismo
O negacionismo pode ser compreendido como a prática de negar uma realidade como meio de escapar de uma verdade desconfortável, se opondo as evidências científicas e costuma se fortalecer quando a sociedade se encontra em situação de instabilidade.
Estamos vivendo uma época paradoxal: quanto mais avanços científicos presenciamos em diversas áreas do nosso cotidiano, como na medicina, comunicação e nos transportes, apenas para exemplificar, mais cresce a oposição ao conhecimento e a ciência, como podemos perceber pelos movimentos negacionistas e obscurantistas que estão se fortalecendo no mundo todo, incluindo EUA e países europeus. Exemplos disto são os movimentos antivacina, o negacionismo das mudanças climáticas, os movimentos terraplanistas e criacionistas, bem como os movimentos antidemocráticos que defendem a volta da ditadura, o fechamento de Congressos e o fim das Supremas Cortes e, claro, o negacionismo atual em relação à pandemia de Covid-19.
Imaginem o cenário de alguém que leia sobre estes movimentos num futuro hipotético distante, é razoável estipular que essa pessoa teria dificuldade em situar a época em tela como o século XXI, provavelmente pensando se tratar do início do século XVII, uma vez que nesse período era normal um europeu culto acreditar em feitiçaria, astrologia, que ratos nasciam por geração espontânea nos montes de feno, que era possível transformar em ouro o metal comum e, sobretudo, que a Terra era imóvel e plana e que o Sol e as demais estrelas giravam ao seu redor (D. Wootton, A invenção da ciência, Temas e Debates, 2017, pp. 18-20).
O negacionismo pode ser compreendido como a prática de negar uma realidade como meio de escapar de uma verdade desconfortável, se opondo as evidências científicas e costuma se fortalecer quando a sociedade se encontra em situação de instabilidade. E, além de negar os fatos, estes movimentos pretendem erradicar o próprio modo de vida baseado na razão, ciência e nos valores humanísticos, por isso o termo obscurantista. Os dados para comprovar esta catástrofe são alarmantes.
Na Europa, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 2018 registrou o maior número de casos de sarampo da década: 82,5 mil pessoas contraíram a doença e 72 morreram, e isso em razão da contestação, sem base científica, da eficácia e segurança da imunização contra o sarampo, poliomielite e hepatite. Também, nos EUA, 17 estados permitem que as pessoas não vacinem seus filhos. Dos 13,9 mil artigos publicados entre 1991 e 2012, só 24 negam o aquecimento global, mas o público não sabe disto e posta nas redes sociais todo o tipo de fake news sobre o tema.
Segundo pesquisa do Datafolha (julho/2019), realizada com 2.091 pessoas, 7% dos brasileiros acreditam que a Terra seja plana e 46% discordam que a espécie humana evoluiu a partir de um ancestral comum aos chimpanzés. Além disso, cresce cada vez mais o apoio para que o criacionismo seja ensinado nas escolas, sobretudo nos EUA, onde é bem conhecido o fato de que as instituições educacionais, em vários estados, são geralmente forçadas a opor o criacionismo bíblico à teria da evolução darwiniana. E no Brasil não é por acaso que aumenta a pressão para que se regulamente o ensino domiciliar (homeschooling), talvez com a intenção de enfraquecer o ensino embasado em teorias científicas que são contrárias ao que é defendido pelo fundamentalismo religioso, sobretudo o neopentecostal. Por fim, sobre os movimentos antidemocráticos, podemos lembrar da invasão do Capitólio após a derrota de Trump, que ocorreu durante a recontagem oficial dos votos do colégio eleitoral para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden. E, na Alemanha, o grupo negacionista Querdenker, que liderava os protestos contra as medidas de isolamento, está sob vigilância nacional, pois as autoridades temem que se perpetue as teorias conspiratórias espalhadas durante a pandemia (El País, 28/04/2021).
Apesar de ser usual tentar refletir sobre as causas desta desesperadora onda negacionista e obscurantista que coloca em xeque nossa civilização, ameaçando nossas vidas, seja na saúde, no meio ambiente, seja na política e na economia, o objetivo é propor um antídoto a estes movimentos regressistas que consiste na defesa dos ideais iluministas de razão, ciência, humanismo e progresso, em contraposição ao misticismo, superstição, descaso com a justiça e com a própria vida humana.
Embora o iluminismo seja bastante conhecido de nossa tradição intelectual, penso que ele esteja sendo subvalorizado, até porque lembramos mais facilmente das críticas que já foram e ainda são direcionadas ao movimento do que de suas ideias basilares e dos avanços que ele nos propiciou. Por exemplo, medicina baseada em evidências científicas, com uso de vacinas, penicilina, medicamentos de todo tipo e cirurgias complexas. Meios de comunicação e transportes mais eficientes. Educação e saúde acessível às pessoas de todas as classes sociais, o que propiciou alguma mobilidade social. Governos baseados na democracia representativa, Estado de direito, separação dos poderes, liberdade de expressão, religiosa e de imprensa, além de secularização e laicidade. Relações internacionais orientadas pelos ideais de paz e defesa intransigente dos direitos humanos. Economia baseada no livre mercado, mas com uma preocupação crescente com a equidade na distribuição de oportunidades e recursos, e até mesmo punições mais humanas, com a proibição de execuções públicas e cruéis.
Mesmo não sendo uma panaceia para a cura de todos os nossos males, acredito que podemos nos valer da convicção iluminista fundamental de que é possível usar o conhecimento e o método científico para encontrarmos a solução dos nossos problemas.
O iluminismo foi um movimento baseado na razão, confiando na capacidade humana de reorganizar a sociedade com princípios racionais, possibilitando a superação dos preconceitos que eram vistos como causas da opressão. Como explicado por I. Kant, o iluminismo ou esclarecimento seria “(…) a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado”, menoridade definida como a incapacidade de se usar o próprio entendimento, ficando submetido aos dogmas e fórmulas da autoridade religiosa ou política, sendo a coragem de saber – Sapere Aude – o seu lema (“Resposta à questão: o que é Esclarecimento?”, 1784). Voltaire, Diderot, D’Alembert e Rousseau, por exemplo, importantes representantes do iluminismo francês, tinham como pauta a defesa da ciência para melhorar a vida humana, a rejeição dos privilégios de classe e da tirania, a defesa dos direitos naturais de vida, liberdade e igualdade e a universalização do conhecimento. Estas ideias, reunidas na Encyclopédie, são reconhecidas como a base da Revolução Francesa de 1789, que acabou com os privilégios da nobreza e do clero e instituiu a República. Esse caráter progressista do movimento pode ser observado, inclusive, na crítica feita por Edmund Burke, pai do conservadorismo, em Reflexões sobre a Revolução na França (1790), a respeito do otimismo iluminista em uma ordem futura e sua arrogância racionalista ao abolir a tradição. Mesmo Adam Smith, referência do liberalismo econômico, foi um importante representante do iluminismo escocês, que se caracterizou pela busca do progresso social, vendo o sectarismo e o fanatismo como corruptores dos sentimentos morais e tomando a ciência e a filosofia como “o grande antídoto ao veneno do entusiasmo e da superstição” (A Riqueza das Nações, 1776, V.i.g.14).
Mas, não seria um anacronismo defender os valores de um movimento do século XVIII como forma de resolver nossos dilemas atuais? Não estariam estes ideais já ultrapassados? Creio que não, até porque estes conceitos ainda permanecem na base de nossa civilização, mesmo que de uma forma um tanto envergonhada. Sobre este ponto, é importante mencionar a publicação recente do livro de Steven Pinker chamado Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism and Progress (Penguin Books, 2018), traduzido no Brasil com o título O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo (Companhia das Letras, 2018). Neste livro, Pinker diz que o movimento iluminista, com a defesa intransigente da razão, da ciência e dos ideais humanistas e progressistas, a partir da modernidade, nos possibilitou uma vida melhor, com o aumento da expectativa de vida, a diminuição da pobreza, o desparecimento das fomes coletivas e genocídios, a diminuição das guerras, a redução das taxas de criminalidade, consolidação dos governos democráticos, além da acentuada diminuição do analfabetismo. Alguns dados impressionam. A expectativa de vida no mundo no período de 1760 a 1780 era de 29 anos, ao passo que em 2015 pulou para 71,4. Em duzentos anos, de 1820 a 2020, a taxa de extrema pobreza no mundo despencou de 90% para apenas 10%. Em 1970, a taxa de subnutrição no mundo em desenvolvimento era de 35%, caindo para 13% em 2015. De 1500 a 2000, houve uma diminuição vertiginosa das guerras entre as grandes potências mundiais. As taxas de homicídios no mundo caíram de 8,8 por 100 mil pessoas em 2000 para 6,2 em 2012. Entre 1860 a 2020, mais ou menos 100 países aboliram a pena capital. E, em 1820, mais de 80% do mundo não tinha educação formal, enquanto hoje, 80% do mundo tem ao menos educação básica.
Pinker defende que o iluminismo representou o emprego do conhecimento e da razão para a superação de nossas dificuldades, possibilitando o progresso em vários domínios, como o científico-tecnológico, o político, o socioeconômico, e até mesmo oportunizando o progresso moral, com o fim do sacrifício humano, canibalismos, escravidão, duelos, torturas, execuções públicas e o fim dos espetáculos de monstruosidades. E ele destaca corretamente que o ponto central do movimento foi o comprometimento inegociável com a razão, isto é, com a exigência de que as teses apresentadas sejam sensatas, justificadas ou verdadeiras, o que significou fazer uso de um método para a avaliação das crenças segundo critérios objetivos. Nas palavras de Pinker: “Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tinham em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, o carisma, o misticismo (…)”.
O problema é que já no próprio século XVIII e durante todo os séculos XIX e XX os valores iluministas passaram a ser atacados por vários movimentos, tais como o romantismo, o voluntarismo e o pós-modernismo, por exemplo. Atacou-se o racionalismo (razão) pela não consideração das emoções e da vontade como determinantes da ação humana; atacou-se a ciência por ela ter reduzido todo o conhecimento, inclusive o das humanidades, a uma modelo matemático cientificista, apelando-se para a ideia de narrativa. Até mesmo o humanismo foi atacado, seja em razão de seu antropocentrismo, com a negação do valor das outras espécies e da natureza, seja pelas afirmações coletivistas de cultura, classe e tribo. Inclusive, há uma tendência acadêmica ainda em voga de culpar a modernidade e a razão científica como a causadora de todos os males humanos, como o colonialismo, imperialismo, racismo, as guerras mundiais e até mesmo a desigualdade econômica ocasionada pelo capitalismo.
É claro que podemos reconhecer a pertinência da crítica, até porque quanto mais conhecemos o funcionamento de nosso cérebro-mente mais facilmente identificamos a influência das emoções e das convicções pessoais em nossas decisões, sejam elas políticas, econômicas ou mesmo existenciais. Por exemplo, os estudos sobre vieses cognitivos mostram que nossas avaliações sofrem diversos tipos de distorções. Entretanto, nossa natureza mental é plástica, o que permite a correção destas distorções. E mais, considero que podemos ressignificar estes ideais, tomando a razão como interconectada com as emoções, interpretando a ciência como um conjunto de hipóteses altamente prováveis, sendo estas hipóteses falseáveis, assim como defendido por Popper na Lógica da Pesquisa Científica (1959) e, também, compreendendo o humanismo de forma a incluir outras espécies e a própria natureza, pensando, por exemplo, num ser humano integrado com seu ambiente natural e social.
Agora, devemos ficar atentos à contradição, uma vez que não seria coerente celebrar a vacina e o uso de máscara e não reconhecer o valor da razão e da ciência. Não seria consistente bradar contra o negacionismo e simultaneamente fazer críticas à modernidade e à racionalidade tecno científica, pois foi esta mesma racionalidade, que tem por base testar hipóteses com evidências, que possibilitou os avanços médicos que salvam vidas. Se a ciência for equivalente a narrativas, como criticar os que dizem que a vacina causa autismo ou que ela tem um chip para controle populacional?
A solução, então, para enfrentarmos o negacionismo-obscurantista pode ser, sugiro, abraçar a plataforma iluminista de um jeito mais modesto, defendendo a razão com r minúsculo, a ciência e um humanismo ampliado como uma forma de diferenciarmos as opiniões pessoais das evidências, com a finalidade de progresso, não tratando os diversos assuntos que são muito complexos como uma mera questão de identidade, até porque o que está em jogo é a nossa própria sobrevivência e prosperidade. Defender a autonomia, manter a mente aberta e ter humildade intelectual para reconhecer as evidências que os outros trazem à discussão pode ser o caminho que nos permitirá ter um futuro. Sapere Aude!
Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq. Doutor em filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard.