A força dos neotalebãs
Misturando a ideologia da Al Qaeda ao know-how militar adquirido dos centros de formação do exército paquistanês, os “neotalebãs” passaram a controlar o teatro de operações afegão e, pela primeira vez, o número de soldados ocidentais mortos no país superou as baixas no Iraque
A partir de 2003, a guerra travada pelo Estado paquistanês contra organizações muçulmanas na região da Caxemira provocou a evasão de muitos militantes. Perseguidos, os combatentes islâmicos migraram para o Waziristão do Norte e do Sul, perto da fronteira com o Afeganistão, e lá acabaram se aproximando das tribos do país vizinho, em luta contra a ocupação estrangeira em seu território. O encontro foi decisivo para modificar a estratégia de guerrilha em solo afegão.
Pudera: os paquistaneses foram formados nas mais modernas técnicas de guerrilha urbana pelo Inter-Service Intelligence (ISI), o serviço secreto do Paquistão, e contam com o reforço de inúmeros oficiais que pediram demissão do exército após a guinada pró-Washington operada pelo ex-presidente Pervez Musharraf.
Assim, os procedimentos antes primitivos transformaram-se numa doutrina militar sofisticada, inspirada na estratégia dos “três passos” do general vietnamita Vo Nguyen Giap, vencedor da batalha de Dien Bien Phu, em 1954, contra os franceses. Os resultados foram expressivos para os afegãos. Primeiro, um bem-sucedido ataque maciço em abril de 2008, seguido por uma série de ataques isolados contra postos de segurança e quartéis das tropas inimigas. Depois, a extensão da insurreição para os centros urbanos e a capital, Cabul.
Essa revisão das orientações foi acompanhada pelo surgimento de uma aliança composta por militantes oriundos dos países árabes e da Ásia Central, além de integrantes da organização paquistanesa Tehrik-i-Talibans, dirigida por Baitullah Mehsud e por um veterano das lutas contra as forças indianas, o maulana1 Ilyas Kashmiri. Juntos, eles elaboraram uma estratégia militar para toda a região afegã-paquistanesa e para a Índia.
Depois dos ataques de 11 de setembro, todos os grupos islâmicos da Ásia do Sul passaram por momentos difíceis, principalmente em razão do recrudescimento da repressão, reforçada pelos governos da região a pedido de Washington. As forças militantes se reagruparam então no front do Afeganistão para se concentrarem nos combates contra a ocupação ocidental. Foram necessários alguns anos para que essa estratégia amadurecesse. No decorrer desse período, os militantes começaram a falar na “Batalha do fim dos tempos”, numa alusão a um hadith2 do profeta Maomé que anunciava uma guerra no Khorasan – território que abrange o Afeganistão moderno, as zonas tribais do Paquistão e uma parte do Irã. Segundo os planos, uma vez vencida a batalha, e dentro de uma visão escatológica do fim do mundo, os voluntários de lá deveriam partir rumo ao Oriente Médio, com o objetivo de apoiarem a luta do Mahdi – o bem-guiado, ou o messias – contra “as forças do anticristo” na Palestina.
Vários eventos que ocorrem na Ásia do Sul desde 2001 contribuíram para preparar essa ofensiva liderada pelos talebãs, cujo apogeu foi atingido em maio desse ano. Um pouco por acaso, personalidades provenientes de diferentes lugares se reuniram na fronteira afegã-paquistanesa. A sua estratégia transformou-se numa insurreição de baixa intensidade, uma verdadeira guerra.
O primeiro desses eventos é a chegada do maulana Ilyas Kashmiri, chefe do Karkatul Jihad Islami. Herói da luta armada na Caxemira, ele passou dois anos numa prisão indiana em razão dos seus supostos vínculos com os kamikazes que haviam arremessado seus veículos lotados de explosivos contra uma comitiva do presidente Pervez Musharraf, em 25 de dezembro de 2003. Kashmiri decidiu pôr um fim ao seu envolvimento na luta pela libertação da Caxemira, e partiu junto com toda a sua família para o Waziristão do Norte. A sua mudança foi interpretada pelos militantes, nos campos da guerrilha na Caxemira, como uma verdadeira fatwa – decisão jurídico-religiosa com valor de lei – que os conclamava a abandonar essa província para irem enfrentar as tropas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Foi assim que centenas desses jihadistas – combatentes da “guerra santa” – acabaram implantando um pequeno campo de treinamento na região de Razmak.
Novos campos de treinamento
O mesmo caminho foi seguido pelo comandante Abdul Jabbar, chefe da organização clandestina Jaish-i-Muhammad, que também combatia na Caxemira. Após ter sido preso em inúmeras oportunidades depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, ele acabou se instalando num campo de treinamento para se preparar para os combates no Afeganistão. Por fim, uma trajetória similar foi seguida pelos oficiais que haviam sido destacados do exército paquistanês para treinar os militantes caxemirianos.
Esses novos campos se tornaram rapidamente populares, atraindo um número crescente de militantes estrangeiros – tchetchenos, uzbeques e turcomenos – e de senhores de guerra das tribos locais. Eles também atraíram a presença de ideólogos árabes. Construiu-se assim o cenário que se tornou palco da formação de círculos de estudos ideológicos dirigidos inicialmente por pensadores árabes, tais como os xeques Essa, Abu Walid Asari e Abu Yahva al-Libbi. Sem demora, chefes de guerra começam a participar das sessões de discussão, e aos poucos tomou forma um cenáculo que tem em seu centro comandantes, tais como Baitullah Mehsud e Sirrajudin Haqqani – que foi um dos dirigentes dos mudjahidins durante a guerra contra os soviéticos –, além de ideólogos árabes da Al Qaeda e de veteranos da Caxemira. Foi assim que, em menos de dois anos, nasceu um poderoso braço armado paquistanês que reivindicava sua filiação à Al Qaeda, e conseguiu revolucionar a estratégia da resistência afegã sob a condução dos talebãs.
A primeira conseqüência desta mistura heteróclita não demorou a aparecer: a ideologia da Al Qaeda foi inculcada aos trânsfugas do movimento de libertação da Caxemira e o know-how militar adquirido nos centros de formação do exército paquistanês, transmitido para os talebãs. A partir daquele momento, o teatro de operações afegão passou a ser controlado pelos “neotalebãs”.
Entre 2006 e 2007, um novo tipo de combatente, bem treinado e ultra-radical, vai disseminar-se por toda a zona tribal. O Waziristão do Norte e do Sul sempre foram os principais baluartes dos militantes, mas, numa região tribal como Mohmand, onde os talebãs eram praticamente desconhecidos antes de 2006, é possível que tenham passado de 18 mil no final de 2007. No distrito vizinho de Bajaur, há mais de 25 mil deles.
Bloqueio aos equipamentos da OTAN
O comandante da OTAN no Afeganistão não parece ter se dado conta da dimensão dessas mudanças. Contudo, logo em 14 de janeiro de 2008, os neotalebãs deram uma primeira demonstração das suas novas capacidades. Naquele dia, membros da rede Haqqani atacaram e ocuparam o Hotel Senera, em Cabul. Seguindo o exemplo dos militantes da Caxemira, que tinham por hábito se infiltrar no sistema de segurança indiano para perpetrar seus atentados, os guerrilheiros afegãos trajavam uniformes da polícia. Outros exemplos deste esquema culminaram na tentativa de assassinato do presidente afegão, em 2008, e na bem-sucedida libertação de centenas de militantes talebãs presos em Kandahar.
Mas essas são apenas operações secundárias. A estratégia principal foi aplicada num outro terreno: na província afegã de Kandahar e na zona de Khyber no Paquistão, por onde transitam 80% das mercadorias e dos equipamentos que abastecem a OTAN. Os talebãs se instalaram nessa área muito discretamente. A partir de fevereiro de 2008, os comboios da OTAN foram alvo de ataques bem organizados. Essas operações foram tão bem planejadas e se revelaram tão eficientes que a OTAN se viu obrigada a assinar em Bucareste, em 4 de abril de 2008, um acordo com a Rússia no qual esta autoriza o transporte de equipamentos e materiais não-militares através do seu território. Esse itinerário, porém, pode onerar seriamente o orçamento das forças ocidentais.
“Cortar as linhas de abastecimento da OTAN a partir do Paquistão é um elemento importante da nossa estratégia. Se essas operações forem realizadas corretamente em 2008, isso resultará na retirada das tropas da OTAN em 2009. Talvez seja necessário um ano suplementar”, avalia um alto dirigente dos talebãs que pediu para não ter o seu nome revelado. Em 9 de maio de 2008, o responsável paquistanês pelas operações de transporte do petróleo de Karachi ao Afeganistão foi seqüestrado. O seu paradeiro permanece até hoje desconhecido. Em agosto, um grupo de 35 talebãs atacou um comboio que transportava armas no exato momento em que ele estava deixando Karachi, o que comprova o detalhamento das suas informações. Um responsável ocidental pelas questões de segurança explicou que certas bases militares no sul do Afeganistão careciam de tudo, e que elas haviam “interrompido todas as movimentações e todas as ofensivas por falta de combustível”3.
Washington e a OTAN subestimaram amplamente essa nova estratégia, assim como as alianças ideológicas e estratégicas que conduziram ao nascimento dos neotalebãs. Contudo, a coalizão ocidental constatou o recrudescimento da atividade nos campos da Al Qaeda situados nas zonas tribais paquistanesas. A partir de janeiro de 2007, oficiais americanos pediram aos dirigentes paquistaneses, não só para perseguir militarmente os talebãs, como também para destruir seus apoios logísticos, como a Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, na qual estudavam 7 mil homens e mulheres, e cujos membros da administração haviam anunciado publicamente sua fidelidade e submissão à Al Qaeda e aos talebãs. Outros alvos foram tribos, movimentos islâmicos e pequenas organizações4.
Durante as suas visitas – ao menos sete delas foram efetuadas no espaço de seis meses, entre janeiro e junho de 2007 –, os emissários de Washington insistiram para que Islamabad implementasse um conjunto de medidas próprias para mobilizar a população em favor da sua “guerra contra o terrorismo” e facilitar as operações contra os talebãs. Eles conseguiram que Musharraf desistisse das suas responsabilidades de chefe das forças armadas e se tornasse um chefe de Estado civil. Eles o pressionaram igualmente a colaborar com as forças liberais e os partidos laicos, e o incentivaram a formar um governo de coalizão em decorrência das eleições legislativas que estavam previstas para janeiro de 2008 – e que foram adiadas em algumas semanas, depois do assassinato de Benazir Bhutto. Comandados por esse novo sistema, os militares paquistaneses poderiam finalmente conduzir operações eficientes contra os militantes radicais.
Dentro do quadro desse novo acordo, os Estados Unidos e o Reino Unido desempenharam o papel de mediadores no processo que conduziu a uma reconciliação entre a antiga primeira-ministra Benazir Bhutto e o presidente Musharraf. Acordos similares foram concluídos com diversos pequenos partidos nacionalistas, tais como o Awami National Party e o Movimento Mutehida Quami, e também com um partido conservador religioso, o Jamiat-i-Ulema-i-Islam Fazlur Rahman. A partir do mês de junho de 2007, tudo estava pronto para uma confrontação decisiva com os talebãs. Essa estratégia política e militar visava matar dentro do ovo sua ofensiva, que era esperada para a primavera de 2008.
A primeira etapa desse contra-ataque tomou a forma de uma investida conduzida, em 10 de julho de 2007, contra a Mesquita Vermelha, que provocou pesadas baixas dos dois lados. Esse ataque seria seguido por uma operação conjunta americano-paquistanesa contra os campos implantados nas zonas tribais, a partir de uma base instalada em Peshawar. Um plano detalhado da coordenação entre as forças americanas e paquistanesas, que foi revelado pela imprensa nos Estados Unidos, previa transferir uma centena de instrutores para unidades escolhidas a dedo em meio às 85 mil formações paramilitares paquistanesas, as quais deveriam constituir a vanguarda da ofensiva.
Contudo, muito rapidamente, logo depois do ataque contra a Mesquita Vermelha, os militantes do talebãs voltaram suas armas contra o presidente Musharraf e concentraram seus esforços num confronto com o exército paquistanês. Entre julho de 2007 e janeiro de 2008, ondas sucessivas de violência perturbaram profundamente a vida social, política e econômica do país. O ataque contra a comitiva de Benazir Bhutto, em Karachi, quando do seu retorno do exílio, em 18 de outubro de 2007, foi a primeira resposta dos neotalebãs aos projetos americanos.
Por um milagre, Benazir Bhutto conseguiu sair ilesa daquele atentado devastador, que deixou no seu rastro mais de 200 mortos e 500 feridos. Ela foi a única liderança política do país que se prontificou a apoiar a operação contra a Mesquita Vermelha e aprovou publicamente a “guerra contra o terrorismo”.
Ataques de rara violência
O seu assassinato, perpetrado por ordem do comando do Waziristão, talvez tenha sido um ponto final nos projetos americanos para o Paquistão. Os eventos que se seguiram à sua morte são conhecidos: eleições adiadas, suspensão das operações militares contra os talebãs etc. Procedendo conforme um plano bem calculado, estes últimos passaram então a lançar mão de ataques de rara violência e provocaram um caos tão grande pelo país que o aparelho de Estado perdeu todo controle da situação.
Em 18 de fevereiro de 2008 foram realizadas as eleições legislativas. O resultado obtido pela Liga Muçulmana Paquistanesa Nawaz (PML-N), liderada pelo antigo primeiro-ministro conservador, superou todas as previsões. Num primeiro momento, ela foi incluída na coalizão governamental5. Enfiando ainda mais a faca dentro da ferida, uma semana depois dessas eleições, um general, Mushtag Beg, foi morto durante um ataque suicida contra a guarnição de Rawalpindi.
Após terem conseguido desmantelar os projetos americanos de ação conjunta com o exército paquistanês, os neotalebãs buscaram ganhar tempo para preparar sua ofensiva. Eles tiraram proveito da participação da Liga Muçulmana no governo para dar início a negociações com as forças de segurança paquistanesas. Mas, a OTAN equivocou-se sobre o significado dessa tática ao interpretá-la como uma suspensão das operações de ataque. Assim, acabou surpreendida pela ofensiva que se desenvolveu a partir de maio de 2008. Pela primeira vez, a contagem dos soldados ocidentais mortos no Afeganistão (70) superou o número de baixas no Iraque (52).
O atentado suicida de 7 de julho de 2008 contra a embaixada da Índia em Cabul, que matou 40 pessoas, ilustrou uma mudança de paradigma na estratégia dos talebãs: tratava-se de dissuadir os países da região, começando com a Índia e o Paquistão, de apoiarem a “guerra contra o terrorismo” dirigida pelos Estados Unidos. No Waziristão, os ideólogos da guerra desenvolveram também uma estratégia mais ampla, que futuramente poderá incluir atentados contra os interesses dos Estados Unidos na Europa.
Os observadores concordam com a análise de que o Paquistão está no cerne da estratégia da Al Qaeda e dos talebãs. Essa série de sucessos no Afeganistão oriental faz com que estes últimos possam planejar com otimismo a próxima etapa. Desde que o número de árabes que vivem nas zonas tribais diminuiu em razão das migrações rumo ao Iraque, dos mortos e das prisões, combatentes de outras nacionalidades tomaram o seu lugar. E o primeiro objetivo declarado deles é expulsar a coalizão ocidental do Afeganistão e do Iraque. O segundo é criar condições favoráveis para o advento de uma nova Frente de Libertação da Palestina. Isso deve ser suficiente, acreditam, para garantir a programação de novas batalhas, inscritas numa visão do advento, num futuro próximo, do “Mahdido fim dos tempos”.
*Syed Saleem Shahzad é jornalista e dirige a sucursal paquistanesa do Asia Times Online, de Hong Kong.