A guerra pelo petróleo se joga no mar
As descobertas de novas reservas em águas profundas (mais 400 m) proliferam e se igualam ao total de reservas terrestres descobertas entre 2005 e 2009 fora da América do Norte. Dado ainda mais importante: as reservas descobertas em águas ultraprofundas (mais de 1.5 KM) são quase 50% das jazidas descobertas em 2010Michael T. Klare
No início de maio de 2014, a instalação da plataforma petrolífera de perfuração HYSY-981 nas águas contestadas do Mar da China Meridional suscitou especulações sobre as motivações chinesas. Na avaliação de diversos observadores ocidentais, Pequim pretendeu, com esse gesto, demonstrar que pode impor seu controle e dissuadir outros países de seguir com suas reivindicações de direito de exploração dessas águas, como é o caso do Vietnã e das Filipinas. A medida chinesa faria parte “do quadro de uma série de ações empreendidas pelos chineses nos últimos anos para afirmar a soberania do país em relação a partes contestadas do mar [da China Meridional]”, de acordo com Erica Downs, especialista em China na Brookings Institution (Washington). Entre essas ações, exemplifica, estão a tomada de controle do recife de Scarborough (ponta de terra não habitada, reivindicada pela China e pelas Filipinas) e o ataque repetido a navios de vigilância vietnamitas.
Para outros especialistas, essas ações são a expressão legítima da emergência de uma China como potência regional. Se por um lado o país não estava em condições de proteger seus territórios marítimos, agora lideranças afirmam que a China está suficientemente forte para fazê-lo. No entanto, se considerações nacionalistas e geopolíticas sem dúvida desempenharam um papel essencial na decisão de instalar a HYSY-981, não se pode subestimar o interesse relacionado a assuntos terrestres que essa plataforma oceânica representa para a busca de preciosas jazidas de petróleo e gás natural.
As necessidades chinesas aumentam, e as autoridades desaprovam a dependência crescente de fornecedores pouco confiáveis na África e Oriente Médio. O país procura suprir grande parte da energia utilizada por meio de fontes internas, entre elas os campos petrolíferos marítimos das zonas dos mares da China Oriental e Meridional, que considera estar sob seu controle. A China pretende monopolizar a exploração nessas áreas.
Pequim e Taiwan, a mesma área
Até agora, essas águas profundas foram exploradas de forma limitada, e a amplitude real da fonte de hidrocarbonetos permanece desconhecida. A Agência de Informação sobre Energia (Energy Information Administration, EIA), ligada à Secretaria de Energia dos Estados Unidos, estima que o Mar da China Oriental abrigue entre 60 milhões e 100 milhões de barris de petróleo, e entre 28 bilhões e 50 bilhões de metros cúbicos de gás.1 Os especialistas chineses falam em volumes muito maiores.
A China investiu consideravelmente no desenvolvimento de tecnologias de perfuração de águas profundas. Procurando reduzir sua dependência em relação a tecnologias estrangeiras, a China National Offshore Oil Corporation (Cnooc) investiu 6 bilhões de yuans (mais de R$ 3 bilhões) para construir HYSY-981, a primeira plataforma semissubmersa do país. Com a superfície do tamanho de um campo de futebol e uma torre de perfuração equivalente a um prédio de quarenta andares, essa plataforma pode operar a uma profundidade de 3 quilômetros oceano abaixo e 12 quilômetros na terra.2
A China alega que cerca de 90% do Mar Meridional faz parte de suas águas territoriais, de acordo com uma carta publicada pelo governo nacionalista de 1947 – chamada muitas vezes de “traçado de nove linhas”, em referência às linhas que delimitam a zona reivindicada. Outros quatro Estados – Brunei, Malásia, Vietnã e Filipinas – reivindicam zonas econômicas exclusivas na mesma área. Taiwan, que justifica sua reivindicação da área pela mesma carta usada pela República Popular, quer a totalidade das águas.3
No Mar da China Oriental, Pequim estima que seu platô continental exterior se estenda até a foz do Okinawa, não distante das ilhas ao longo do Japão – que, por sua vez, reivindica uma zona econômica exclusiva que se estende até a linha mediana entre os dois países. Até o momento, as duas partes respeitaram um acordo tácito segundo o qual nenhum dos dois países deve avançar a exploração para além dessa linha. Mas as empresas chinesas estão realizando perfurações em uma zona imediatamente a oeste da linha mediana e explorando um campo de gás que se estende até o território reivindicado pelo Japão.
Essa rivalidade pela energia reflete a dependência mundial e crescente do petróleo e do gás marítimos em detrimento das reservas terrestres. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), a produção de petróleo bruto proveniente das jazidas existentes, em sua maioria situadas em terra ou em águas costeiras pouco profundas, baixará em dois terços entre 2011 e 2035. Essa perda, afirma a AIE, pode ser compensada, contudo, apenas se os campos atuais forem substituídos por outras jazidas no Ártico, nas águas profundas e em formações ricas em xisto na América do Norte.4 Fala-se muito na extração por fraturação hidráulica do petróleo e gás natural contidos nas reservas de xisto dos Estados Unidos. Esforços mais importantes, porém, foram consagrados ao desenvolvimento de fontes marítimas. Segundo analistas do IHS Cambridge Energy Research Associates, eminente escritório de consultores, as descobertas de novas reservas em águas profundas (mais de 400 metros) proliferam e se igualam ao total das reservas terrestres descobertas entre 2005 e 2009 fora da América do Norte. Dado ainda mais importante é que as reservas descobertas em águas ultraprofundas (mais de 1500 metros) representam quase metade das jazidas encontradas em 2010.5
Em alguns casos, os futuros campos de exploração se localizam em águas pertencentes a zonas econômicas exclusivas de um Estado, que podem chegar a 200 milhas náuticas (370 quilômetros) da costa do país. A regra evita contendas como as dos mares da China Oriental e Meridional. O Brasil, por exemplo, descobriu diversas jazidas importantes na bacia de Santos, no Atlântico Sul, a cerca de 180 quilômetros a leste do Rio de Janeiro. Nas zonas mais promissoras, contudo, nenhum Estado criou zonas econômicas exclusivas, e as atividades exploratórias são controversas.
Os conflitos se produzem geralmente nos mares semifechados, como o Mar Cáspio, o do Caribe e o Mediterrâneo. As fronteiras marítimas podem ser terrivelmente difíceis de estabelecer em razão de um litoral irregular e da presença de muitas ilhas, cuja propriedade muitas vezes é reivindicada por outros Estados. Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que data de 1982, contém uma série de disposições sujeitas a múltiplas interpretações. Enquanto um Estado pode usar uma das causas para reivindicar uma zona econômica exclusiva a 200 milhas náuticas de seu litoral (como no caso do Japão e da China oriental), outro Estado pode se valer de uma disposição diferente que permite o controle sobre o platô continental exterior, mesmo que este se estenda sobre os domínios da zona exclusiva de seu vizinho (como a China alega neste caso). Apesar das Nações Unidas terem estabelecido uma Corte especial para cuidar desses desacordos – o Tribunal Internacional do Direito do Mar –, vários Estados não reconhecem sua autoridade, e os conflitos continuam crescendo. Algumas nações adotaram posições inflexíveis, ameaçando recorrer a forças militares para defender o controle do que consideram interesses nacionais essenciais.
Os perigos são patentes, como se observa no caso das águas do Atlântico Sul que contornam as Ilhas Malvinas (Ilhas Falkland, para os britânicos), reivindicadas tanto pelo Reino Unido como pela Argentina. Em 1982, os dois países entraram em guerra pelo controle do arquipélago. O conflito breve, porém sangrento, teve como motor o nacionalismo e a queda de braço entre os dirigentes políticos envolvidos: Margaret Thatcher em Londres e uma junta militar em Buenos Aires. Desde então, as partes acordaram um armistício, mas a questão da soberania sobre as ilhas não foi resolvida. Atualmente, a descoberta de campos submersos de petróleo e gás na região fez as tensões recrudescerem. Londres declarou uma zona exclusiva de 322 quilômetros ao redor das ilhas e autorizou empresas sediadas no Reino Unido a prospectar lá. De seu lado, a Argentina afirma que seu platô continental exterior se estende até as Malvinas e que essas empresas estão atuando de forma ilegal em seu território. Entre ameaças de outras represálias, proibiu navios britânicos do setor petroleiro de aportar em seu litoral. Londres reagiu reforçando destacamentos aéreos e navais no arquipélago.
Desenvolver as zonas disputadas
Uma situação ainda mais perigosa ronda o Mediterrâneo oriental, onde Israel, Líbano, Síria, Chipre, República Turca do Chipre do Norte, assim como autoridades palestinas de Gaza, reivindicam reservas promissoras de petróleo e gás. De acordo com o Escritório de Estudos Geológicos dos Estados Unidos (United States Geological Survey), o Mar Levantino, que corresponde ao quarto mais a leste do Mediterrâneo, abrigaria reservas de gás natural estimadas em 3,4 bilhões de metros cúbicos, aproximadamente o volume das reservas confirmadas no Iraque.6
Hoje, Israel é o único Estado costeiro que explora sistematicamente essas reservas. A produção começou em março de 2013 na jazida de gás natural de Tamar, e Tel-Aviv prevê explorar a jazida de Leviatã, muito mais vasta. O projeto provocou protestos no Líbano, que reivindica uma parte dessas águas. Enquanto isso, o Chipre concedeu licenças para as empresas Noble Energy (norte-americana), Total (francesa) e Eni (italiana) para a instalação de plataformas em seu território marítimo, e pretende começar a produção nos próximos anos. A Turquia, em apoio aos cipriotas turcos, condenou fortemente essas decisões.
Conflitos similares eclodiram em outros espaços marítimos ricos em recursos energéticos, como no Mar Cáspio (onde Irã, Uzbequistão e Turcomenistão disputam uma fronteira marítima) e nas águas situadas a nordeste da costa sul-americana (onde a Guiana e a Venezuela reivindicam a mesma zona de potencial exploração). Em todos esses casos, um nacionalismo exacerbado se alia à busca insaciável de recursos energéticos para evitar a importação de petróleo e gás natural.
Em vez de considerarem essas contendas um problema sistêmico, o que exigiria uma estratégia específica para resolvê-lo, as grandes potências tendem a tomar partido de seus respectivos aliados. Assim, com a pretensão de permanecer neutro em relação à questão da soberania das ilhas Senkaku/Diaoyu, no Mar da China Oriental, o governo de Barack Obama reafirmou várias vezes que apoiava o Japão e se comprometeu a enviar auxílio em caso de ataque chinês. Essa posição foi denunciada por Pequim como uma afronta inaceitável – e torna ainda mais difícil convencer partes adversárias, implicadas nessa querela ou em outras do mesmo tipo, a sentarem-se na mesa de negociações para encontrar uma solução e evitar que as coisas piorem.
Para tentar amenizar esses desentendimentos, há diversas iniciativas em andamento: explicações mais precisas sobre os direitos dos Estados costeiros e as zonas econômicas exclusivas em alto mar; eliminação das ambiguidades suscitadas pelas disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; esforço internacional para estabelecer instâncias neutras que possam encontrar soluções por meio de negociações pacíficas.
Enquanto esperam a consolidação de tais medidas, as partes engajadas nesses conflitos deveriam procurar desenvolver conjuntamente os espaços contestados – estratégia adotada pela Malásia e pela Tailândia no Golfo da Tailândia, assim como pela Nigéria e São Tomé e Príncipe no Golfo da Guiné. Na ausência de esforços nesse sentido, as contendas marítimas atiçadas pela disputa de recursos energéticos poderão estremecer o século XXI, assim como os conflitos fronteiriços terrestres abalaram os séculos passados.
Michael T. Klare é professor de Relações Internacionais no Hampshire College e autor de Rising Powers, Shrinking Planet: The New Geopolitics of Energy (Metropolitan Books, 2008).