A história não se repete
Agora que os oráculos da informática e os mestres do capitalismo verde reivindicam o monopólio do futuro, a esquerda abandona os grandes projetos de desenvolvimento. Na falta de perspectiva em mudar o mundo, ela guarda suas esperanças em suas memórias. Mas é possível conciliar progressismo e nostalgia?Pierre Rimbert
Ah, os bons tempos!”, ainda que nenhum partido político francês tenha até hoje adotado essa palavra de ordem, muitos lançam à sociedade pós-guerra um olhar cheio de sonhos e desejos.“Se aprendêssemos com todas as lições da crise, o mundo de amanhã poderia se parecer mais com aquele dos ‘trinta anos gloriosos’ [1945-1975] do que com aquele dos últimos trinta anos”, disse Henri Guaino, conselheiro de Nicolas Sarkozy (Marianne, 2 jul. 2011). A organização social surgida na França após a Libertação dos nazistas inspira reflexões não apenas da Frente de Esquerda, do Partido Socialista e do Movimento Democrata (Modem), mas também – de maneira mais oportunista – da Frente Nacional .
Já a “modernidade” liberal dos anos 1980 e 1990 seduz menos. Quinze anos e duas crises econômicas mundiais após as hesitações da globalização, a crítica aos “excessos” das finanças desregulamentadas e à explosão das desigualdades desenha um arco de consenso entre os ativistas do Ocupar Wall Street e o bilionário Warren Buffet. Sarkozy diz que pretende lutar por uma taxa Tobin, e a chanceler conservadora alemã Angela Merkel por “fazer os bancos [privados] pagar”. Mesmo o semanário TheEconomist, porta-voz dos liberais, reconhece o sucesso do capitalismo de Estado (21 jan. 2012). Promovida por muito tempo pelos poderosos, a degradação das regulamentações socioeconômicas, iniciada no final dos anos 1970, desperta uma crescente desaprovação.
Essa inflexão política intervém em um clima cultural de “retromania”, em que se misturam o triunfo da série de televisão Mad Men– que retrata as vicissitudes de publicitários no começo dos anos 1960 –, relançamentos de carros de época, como o Mini Cooper e o Fiat 500, o culto ao mobiliário kitsch e a fetichização dos primeiros álbuns de Bob Dylan.1 Um levantamento da revista semanal Marianne(16 jul. 2011) sobre o tema “O que era melhor antes?” evocou de forma atabalhoada a sociabilidade dos bistrôs, a distribuição de prêmios em escolas locais e a jovialidade dos carteiros de bicicleta. Na tormenta financeira, os empresários da nostalgia prosperam. Sua lógica poderia ser resumida da seguinte forma: uma vez que “antes era melhor” – antes da globalização, da desindustrialização, do desemprego crescente, da erosão das estruturas de apoio social (escolas, partidos, igrejas) –, as qualidades que faltam ao nosso presente repousam em nosso passado.
A melancolia ganha autores situados à esquerda. Em seus livros sobre o maoísmo (Maos eIls ont tué Pierre Overney[Eles mataram Pierre Overney], Grasset, 2006 e 2008), o romancista Morgan Sportès faz seus leitores sentirem saudade de um momento em que o gaullismo detinha o poder político e os comunistas o cetro intelectual. A brochura de Stéphane Hessel Indignez-vous![Indigne-se!], que adapta ao gosto atual os fundamentos do programa do Conselho Nacional da Resistência e as conquistas sociais da Libertação, não deixa a lista dos mais vendidos desde sua publicação em outubro de 2010. Quanto ao filósofo Jean-Claude Michéa, seu livro Complexe d’Orphée [Complexo de Orfeu] (Climats, 2011) incita os críticos do capitalismo a assumir uma sensibilidade conservadora, apresentada como a das pessoas comuns.
Miragens de um passado radiante
O apelo de uma época em que o equilíbrio de forças sociais era menos desfavorável para os trabalhadores assinala sem dúvida uma erosão da hegemonia neoliberal. Mas isso também reflete a impotência doutrinária e estratégica da esquerda. Para as forças vivas das grandes revoluções, a luta feminista, as batalhas sindicais e os movimentos anticoloniais, a recusa do presente apelava mais à invenção de um futuro melhor do que à restauração de um paraíso mais ou menos idealizado. O conhecimento de desilusões passadas e a consciência das novas alienações colocavam à frente o imaginário radical. Agora, eles o incitam a recuar.
Na luta defensiva travada pelos que se mostram refratários às leis do mercado, o uso da história produziu dois efeitos contraditórios. Um buscado, o outro acidental. Lembrar as conquistas sociais do pós-guerra ou as concessões do governo feitas sob a pressão de greves constitui um poderoso antídoto para a ideologia da “única política possível” – por exemplo, a da austeridade: em circunstâncias infinitamente mais difíceis, as pessoas enfrentaram isso. Contra os estrategistas socioliberais (Anthony Giddens, Alain Touraine, Fernando Henrique Cardoso) apressados em selar a câmara mortuária da classe trabalhadora em nome da liquidação dos “arcaísmos”, a memória defende a verdadeira modernidade, a das conquistas salariais. Aos líderes ocidentais livres da ameaça soviética que, desde a década de 1990, designam a democracia de mercado como a forma terminal das organizações humanas, a história objeta que o presente não é eterno, nem o mercado natural.
Com o colapso do castelo de cartas financeiro e as revoltas árabes, esse assunto parece compreendido.
Mas, ao medir o grau de regressão em termos de um ponto de referência em algum lugar entre 1944 e 1975, estabelece-se implicitamente o modelo econômico do pós-guerra como padrão de justiça social: um teto do progressismo. “Desde o final dos anos 1970”, “desde a virada liberal da esquerda”, “desde a primeira crise do petróleo”… Essas expressões coloquiais, prelúdios para a análise dos recuos socioeconômicos ocorridos na sequência, instalam automaticamente uma equivalência entre a luta contra o pensamento de mercado e o retorno às formas anteriores de regulação econômica. Uma volta ao capitalismo industrial tido como benéfico, mas pervertido pelas finanças; a retomada do compromisso social do pós-guerra supostamente equilibrado, mas avariado pelo neoliberalismo; a recuperação das formas de supervisão e controle coletivos pulverizados pela dissolução do espírito de solidariedade dos vilarejos, urbanização em massa e o espírito de maio de 1968.
Ao atribuir ao governo de Sarkozy a missão de “sair de 1945 e desfazer metodicamente o programa do Conselho Nacional da Resistência”(Challenges, 4 out. 2007), Denis Kessler, intelectual orgânico do patronato francês, suscitou uma mobilização militante; sem querer, designava para a esquerda a cidadela a proteger ao mesmo tempo que um mito a acalentar.
Era da reforma social nos Estados Unidos e na Europa ocidental, a segunda metade da década de 1940 assinou a certidão de nascimento do Estado de bem-estar social francês: criação da Seguridade Social e das pensões, estabelecimento do estatuto do funcionalismo público e restauração dos representantes sindicais, nacionalização do crédito e da energia. No entanto, a visão retrospectiva de um paraíso social é uma miragem. Pouco depois do início da Guerra Fria, o impulso da Libertação terminou com uma derrota do socialismo. A maioria das ferramentas de produção permanece em mãos privadas e, como observa o historiador norte-americano Richard Kuisel, “o planejamento francês assumiu um caráter neoliberal em vez de uma postura socializante ou sindicalista”.2
Os mortos zombam dos vivos
Tal resultado não era óbvio em um momento em que o futuro oscilava entre o socialismo e a social-democracia, e não, como agora, entre o liberalismo e o social-liberalismo. “As reformas da esquerda”, detalha Kuisel, “engendraram uma economia francesa mais dirigida do que antes, mais dinâmica, mas não mais socialista.” Como nos dias do New Deal, era necessário modernizar o capitalismo para salvá-lo. Desde 1948, o governo enviava tanques para dominar os mineiros grevistas do norte e do leste. “A classe trabalhadora, que tinha estado na vanguarda da resistência”, observava em junho de 1947 o presidente da República Vincent Auriol, “esperava obter profundas reformas estruturais, e ela viu reaparecer o mesmo sistema econômico com os egoísmos sociais, e nada mudou nas relações entre capital e trabalho”.3
As coisas caminhariam assim até maio de 1968. Dos anos 1950 lembramos mais facilmente da alta do padrão de vida do que das guerras coloniais; do crescimento borbulhante do que das infernais condições de trabalho na indústria química, nos portos ou no setor agroalimentar feminizado. Em 1962, houve na França 2,1 mil acidentes de trabalho: três vezes mais do que em 2011 para uma força de trabalho muito menor. No início desta década, ainda temos necessidade, em certas laminadoras de fios da Lorraine, como no início do século, de sapatos de madeira, com uma serpentina de aço incandescente que ondula pelo solo e morde as carnes como uma navalha.
Os “trinta anos gloriosos” são também os da pá e da furadora pneumática, do amianto respirado a plenos pulmões, dos trabalhadores mal pagos, dos imigrantes do norte da África enclausurados em favelas e confinados nos cargos mais desafiadores pela divisão racista do trabalho, das camisas de força morais e das proibições sexuais. Para a massa dos trabalhadores comuns, o benefício do “compromisso fordista” foi embolsado depois de 1968 e absorvido desde 1974-1975 como resultado do desemprego e da crise global.
Não surpreendentemente, a característica mais estimulante das sociedades pós-guerra é igualmente aquela da qual menos se tem saudade: a ordem econômica, moral e política foi radicalmente contestada; uma parte significativa da população rejeitava seus fundamentos e aspirava a derrubá-los. O relatório otimista sobre o futuro, esse sentimento dos trabalhadores de que seus filhos iriam conhecer uma vida mais invejável que a deles, baseava-se na crença de que tudo poderia mudar. Nesse caso, tocamos no paradoxo da esquerda nostálgica: ela lamenta hoje a ordem que ontem combatia.
Segundo seus representantes, é importante, para conter a turbulência financeira, voltar ao estágio anterior do mesmo sistema econômico.“Será o caso de encontrar soluções inteligentes para a crise do capitalismo sem questionar o capitalismo.E, claro, é um grande partido, como o Partido Socialista, que vai poder fazer isso”, explica odemógrafo Emmanuel Todd (France Inter, 8 mar. 2012).Mas cabe mesmo à esquerda juntar os trapos do sistema?
As ideias de desglobalização e de relocalização vêm ganhando o público nos últimos anos.4Seus partidários se distribuem por todo o espectro político.Na franja esquerda, a estratégia de “um passo atrás, dois passos à frente” se apresenta sem disfarces: restaurar regulamentações comerciais e financeiras desmontadas em nome do livre-comércio afrouxaria o torno da concorrência internacional e forneceria ao assalariado as condições para uma mobilização progressiva que favoreceria a longo prazo o estabelecimento de novas relações sociais.Quais? Mistério.Os caminhos de uma socialização dos meios de produção, os contornos de umademocraciaigualitária,mas tão pacientemente explorados por gerações de rebeldes, não contam no número de indivíduos que incitam a febre nostálgica.
Por não ser associada de forma consistente com a meta de emancipação social, a desglobalização continua sendo uma caixa de ferramentas à disposição de partidos políticos com objetivos notoriamente opostos.Mesmo protegido do dumpingsocial dos países emergentes, um assalariado ocidental permanece subordinado ao seu empregador que ele enriqueceu com seu trabalho.Combater a concorrência internacional sem questionar a relação de classe no plano nacional acaba por forjar uma aliança com a (grande) fração do patronato hostil à globalização e desejosa de encontrar a tranquilidade de uma exploração sob a bandeira tricolor – a dos “trinta gloriosos” e atividades que não podem ser deslocalizadas, como a construção e a reforma.
Um protecionismo progressivo, irrecuperável, poderia ser facilmente vislumbrado: bastaria aos seus proponentes associá-lo sempre à exigência de um controle das empresas por seus trabalhadores, reivindicação básica da esquerda relegada ao esquecimento pelos grandes partidos, enquanto as condições degradadas do trabalho levam alguns empregados ao suicídio.Da mesma forma, uma desglobalização indissoluvelmente ligada à distribuição das riquezas pela ampliação do sistema de contribuições sociais,5tal como a pantufa forrada de pele de esquilo, não caberia muito em qualquer pé.
Enquanto a crise financeira altera a distribuição das cartas ideológicas e coloca os governos liberais diante de suas contradições, a esquerda é consumida pela modéstia.Ela pintou com as cores da felicidade simples e com toalhas de mesa xadrez sua incapacidade de transformar o mundo do pós-guerra; hoje ela contempla o quadro com melancolia.Será que teria de voltar os olhos para outra direção, para outros céus?Em 1985, Thomas Sankara, o arquiteto da revolução em Burkina Faso, resumiu seu programa em um só fôlego:“Devemos ousar inventar o futuro”.
Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sartre à Rothschild (Paris, Raisons d’Agir Édition, 2005).