A imaginação política feminista no poder
Quem diria? Em muito pouco tempo, o feminismo cresceu e se disseminou pela consciência crítica nacional com força avassaladora, a partir de 2005, logrando mobilizar, como nunca antes, milhões de pessoas para o 8 de Março. Mas influenciou também a Revolta de 2019/2020 e a redação de uma Constituição paritária. Agora, no entanto, conseguiu chegar ao poder graças ao triunfo da candidatura do presidente eleito, Gabriel Boric, que não apenas se declara feminista, tal qual seu partido Convergencia Social e sua coalizão Apruebo Dignidad, como se comprometeu a fazer do feminismo parte fundamental de seu governo
No momento, o grande desafio é ocupar os espaços com força transformadora, evitando os riscos de uma institucionalização domesticadora, superando as tensões que isso seguramente gerará entre governo e movimento feminista, e, sobretudo, enfrentando as ambiguidades que sem dúvida, dentro do próprio governo, poderiam manifestar a tentativa de definir para a ação pública o que significa fazer política do ponto de vista do feminismo. Um desafio nada irrelevante.
Política e feminismo
Mal haviam decorrido oito horas após a vitória de Gabriel Boric, e já Camila Vallejo assegurava, em um programa de televisão, que sua esperança era ver o feminismo ocupando um lugar de destaque no Comitê Político no palácio de La Moneda.
“Em um governo feminista, o Ministério da Mulher não pode funcionar como o último vagão do trem, como aconteceu durante o governo de Sebastián Piñera. Por isso mesmo, creio que seria bom e interessante vê-lo no Comitê Político. Em minha opinião, o feminismo deve ter um papel político mais relevante […]. Deve estar no Comitê Político ou ganhar, de algum outro modo, maior relevância, e não tenho dúvidas de que Gabriel entende perfeitamente o desafio que enfrentamos” (CNN, 21/12/2021).
Para muitas pessoas alheias ao universo feminista, essa afirmação pode soar estranha. Qual é a utilidade de incluir uma ministra comprometida com temas “de mulheres e gênero” em um Comitê Político? Ainda são muitos os que consideram o feminismo um assunto de mulheres ou, na melhor das hipóteses, “setorial”. Contudo, os feminismos, embora se ocupem da realidade das mulheres, não se restringem a elas nem a “assuntos de mulheres”. Faz tempo que as diversas correntes do feminismo identificaram a posição de subordinação e dominação das mulheres em nossas sociedades como um problema essencialmente de poder, uma ordem de coisas que foi socialmente construída, por um lado, e culturalmente justificada e sustentada, por outro, durante séculos, manifestando-se em todas as áreas da vida social: saúde, economia, educação, trabalho… A boa notícia é que, por isso mesmo, ela pode ser modificada.
A construção histórica desse poder que hierarquiza e constrói o dever-ser dos gêneros, que se amalgama com as etnias e a classe, produzindo e reproduzindo diferentes formas de submissão, marginalização e exploração dos corpos femininos, mas também de outros corpos “feminizados”, é então matéria essencialmente política. Exige que se transforme a maneira de conceber e praticar o poder em todos os planos da vida social. As lutas pela educação, a anticoncepção, o aborto ou a violência machista jamais conquistarão, por si mesmas, a libertação das mulheres. São batalhas necessárias e justas, mas todas fazem parte de problemas gerados em um mesmo suporte cultural e político que deve ser desmontado.
A primeira dama e a paridade ministerial
Uma das discussões que se seguiram à vitória de Gabriel Boric nos permite apreciar de perto a necessidade de reformular nossas concepções do poder e a consciência que dele têm algumas das integrantes do novo governo. De início, os recém-eleitos estigmatizaram a posição de “Primeira-Dama” como um cargo dependente de vínculo familiar e não gerado pela eleição popular, que cumpre funções paternalistas e assistencialistas, fortalecendo o modelo de mulher estereotipado do século XX. Mas, ao contrário, a 18 de janeiro o que se anunciou foi que o posto seria efetivamente assumido por Irina Karamanos, namorada do presidente eleito, com o objetivo de desmontá-lo a partir de dentro.
“É preciso dar um formato diferente e mais atual a esse papel, despersonalizá-lo. Isso significará uma mudança na relação com o poder.” (Irina Karamanos, El País, 20/1/2022)
As políticas de paridade implementadas pelo presidente eleito – que já tinham um precedente no primeiro gabinete de Michelle Bachelet e na Convenção Constitucional – representam, sem dúvida, um esforço muito mais decisivo de nivelação da distribuição do poder entre homens e mulheres que a política de cotas usada, por exemplo, em duas eleições ao Congresso Nacional, que levará em março 35,5% de mulheres às suas cadeiras. Todavia, para uma efetiva distribuição do poder social, não bastam nomeações para cargos nem tampouco o gênero em si dos ministros: são necessárias, isso sim, uma forma de ver e a decisão de encarar as coisas de modo diferente, que transforme a maneira de produzir e reproduzir nossa vida em comunidade. É nesse marco transformador que, por exemplo, a participação de uma ministra da Mulher e da Equidade de Gênero no Comitê Político poderá fazer a diferença, sempre e quando esta incidir em sustentáculos teóricos e em uma prática política capazes de concretizar as diferentes políticas públicas. Isto é, caso se consiga tornar hegemônica a imaginação política feminista que o novo governo pretende encarnar.
A imaginação política feminista
Antes de tudo, é importante lembrar – como sempre – que os feminismos são diferentes e que o novo governo não representa necessariamente uma única voz hegemônica no movimento feminista nacional. Ainda assim, ao chegar ao poder e declarar-se feminista, a marca que ele imprimir às políticas públicas sem dúvida será determinante para o futuro do movimento: para o modo como será visto e entendido pela cidadania em sentido mais amplo.
Com isso em mente, não convém ignorar o fato de que uma espécie de imaginação política feminista se desenvolveu e gerou uma diferente concepção de militância e organização, de liderança e participação na esfera pública, impregnando uma parte da equipe que agora se instala em La Moneda.
Mas onde encontramos esses enunciados? Que modelos de construção de uma sociedade feminista nos são hoje propostos ou se rivalizam para concretizar esse sonho? Existe mesmo um modelo único? Quão profundas são as transformações sugeridas? Multiplicam-se as perguntas quando o desafio é tornar mais concreto aquilo que se concebe como uma ordem política desejável. No entanto, mesmo havendo muitas respostas possíveis, não deixa de chamar a atenção o surto de certas tendências que vão se tornando explícitas no discurso e na prática, reconhecidas como parte daquilo que se imagina constituir uma nova forma de pensar o poder social.
Com efeito, as pessoas e grupos que nos governarão a partir de março sabem – porque o aprenderam sobretudo nos movimentos estudantis e sociais da última década e meia, desde o movimento dos Pinguins em 2006 – que a forma de conceber a política por parte das novas gerações se baseia em um tipo de compreensão dos equilíbrios entre igualdade e diferença que destoa do que pensavam as gerações anteriores. Ela encara as temporalidades e exercícios de liderança segundo outros critérios éticos e de responsabilidade política, o que supõe uma transformação da cultura política nacional, caracterizada por posições totalmente contrárias.
É nesse quadro axiológico que os coletivos feministas foram pensados e implantados. Eles assumiram, em primeiro lugar, a política feminista como uma forma de aversão ao autoritarismo e ao paternalismo, sobretudo as formas de violência social (física e psicológica) que daí derivam. Isso implica não só o combate à exploração das mulheres em termos sexuais e reprodutivos, bem como as diversas limitações a seu gozo de direitos ou à sua capacidade de atuação social na cama, na casa e na rua, mas também a eliminação de todas as formas de exploração humana, que no caso chileno alcançam hoje sua maior expressão (por exemplo, nas condições indecentes de trabalho e de estruturação do sistema de bem-estar social, que afetam a maioria da população, mas com maior força, sem dúvida, as mulheres).
Por outro lado, nota-se uma grande preocupação com a precariedade da vida e uma ênfase na colaboração horizontal para a superação dessa fragilidade intrínseca de nossa natureza. Há, pois, uma atenção básica ao cuidado de si e dos outros, à vida boa e à criação coletiva de sistemas de bem-estar e ação social sensíveis às comunidades, que exigem a participação, o diálogo, o uso respeitoso do território e dos seres não humanos que o habitam.
Desse modo, tudo que poderia parecer “mera filosofia” se traduz também em outras formas de práxis política, ou seja, de organização não hierárquica ou com hierarquias rotativas e acompanhadas permanentemente de mecanismos de participação na tomada de decisões e no estabelecimento de prioridades, para não falar nas formas de construção e implementação das políticas nas diferentes escalas (e não o “simulacro de participação cidadã e clientelas políticas” que se viu nas últimas três décadas). A redistribuição do poder não supõe apenas ter voz, ou dar voz a delegações, mas também participar efetivamente de mecanismos de organização e consulta nos diversos níveis de vinculação comunitária e social, coisa que, ademais, se sabe tecnologicamente possível e eticamente necessária.
Ser e fazer um governo feminista
Se levarmos tudo isso em conta, o novo governo não deveria, por exemplo, apenas “criar mais trabalho para as mulheres”, como se propôs, mas também ouvi-las sobre o tipo de trabalho que desejam, buscar formas de promover sua formação/capacitação e inserção laboral nas diferentes áreas, facilitar sua organização em coletivos de trabalhadoras, chamá-las a procurar soluções de problemas por áreas produtivas e tipos de comunidades envolvidas (migrantes, indígenas, camponesas ou urbanas), elaborar políticas para o cuidado compartilhado (entre os pais) e coletivo (com base no Estado) dos filhos, reestruturar os horários de trabalho em benefício das famílias e comunidades… Além disso, estabelecer critérios de qualidade laboral e mecanismos de fiscalização e exigência efetiva desses padrões, para evitar que se repita o ciclo em que as mulheres têm vivido por décadas: contratos precários, salários baixos, diferença salarial, falta de proteção social, deterioração da saúde física e mental, carência de vida familiar e educação, desemprego, abandono de emprego, pobreza na velhice.
Fazer política feminista, tal qual é encarada no seio das organizações feministas predominantes no Chile, não é mera questão de paridade, envolve também uma forma de sensibilidade e horizontalidade social que desafia o modo de pensar e tornar predominantes até hoje em um país onde, sempre, o êxito macroeconômico prevaleceu sobre a qualidade de vida de sua comunidade e território.
É difícil antecipar se o governo eleito conseguirá promover essas mudanças na pesada burocracia estatal, frente aos entraves de uma Constituição ainda em vigor e a um Parlamento pouco favorável que o acompanhará. Talvez devamos pensar que será um governo de quatro anos ocupado na instalação de um apoio a ser aprofundado e aperfeiçoado em mandatos posteriores. Além disso, temos consciência de que, provavelmente, a relação entre o governo e o movimento feminista não há de ser fácil. Existe uma longa tradição, em nosso país, de desdém pelo “institucionalismo feminista” e uma forte corrente de “autonomia feminista”.
Não bastasse isso, é evidente que a evolução do movimento feminista chileno foi notável não só por ter ampliado a ideia de que a violência contra as mulheres, em todas as suas formas, é inaceitável, mas também porque elas tornaram sua a convicção profunda de que, não importa o que se faça, nunca mais será feito sem nós.
Ximena Goecke, mestra em Gênero e Cultura. Historiadora na Universidade do Chile.
Tradução do espanhol por Frank de Oliveira