A instrumentalização ideológica da migração, de 1964 a 2022
À parte a declaração proto-pedófila, o caso das meninas venezuelanas de São Sebastião, Distrito Federal, é emblemático da instrumentalização ideológica que Bolsonaro procura fazer da questão migratória
Após quase quatro anos de governo Bolsonaro, parecia improvável que nos causasse espécie mais um de seus arroubos verborrágicos. Atravessamos, afinal, mais de 1.400 dias até agora, todos eles recheados de impropérios, escatologias, ofensas e cinismo. Ainda assim, havia espaço para mais. No dia 14 de outubro, o fantoche do generalato brasileiro dava uma entrevista a um podcast quando decidiu contar uma história sobre um encontro que tivera com “meninas de 14, 15 anos”. À parte a declaração proto-pedófila de que havia ido à casa delas após ter pintado um clima, Jair Bolsonaro afirmou que as meninas, que participavam de um projeto social, pintavam-se e arrumavam-se “para ganhar a vida”. Poucos dias depois, um novo vídeo, dessa vez de 2021, veio à tona: Bolsonaro relatava o mesmo caso, mas dessa vez afirmava peremptoriamente que as meninas visitadas eram prostitutas.
Obviamente, os fatos ocorridos durante a visita relatada foram distorcidos para cumprir os propósitos da semiótica bolsonarista. No vídeo original da live que fez durante a visita, em 2020, Bolsonaro não faz menção à prostituição. À época em guerra aberta com os governadores dos estados e seus decretos de restrição de circulação em razão da pandemia, classificados pelo presidente enquanto ditatoriais, Bolsonaro vai ao local que abrigava as meninas venezuelanas para denunciar os efeitos que “governos autoritários” poderiam provocar na vida das famílias. “Você quer que a sua família um dia saia do Brasil e vá para outro país para fugir de um regime autoritário?”, questiona o presidente enquanto é registrado pela reportagem da CNN, equivalendo as medidas de contenção da pandemia a uma ditadura – e, por consequência, equivalendo também figuras como João Doria, Ibaneis Rocha, Ronaldo Caiado e Romeu Zema, líderes da direita tupiniquim que adotaram medidas de restrição à circulação, a Nicolás Maduro, presidente da Venezuela. Bolsonaro afirma, ainda, que nunca tivemos uma experiência como essa no Brasil, ignorando a ditadura de direita que governou o país entre 1964 e 1985, da qual é entusiasta e que tenta emular novamente.
Estava armada a arapuca. A declaração trouxe os adversários para o lugar reservado a eles pela campanha de reeleição de Bolsonaro: ao reagir sobre um acontecimento contrafactual – i.e., a possibilidade de ter havido um episódio de pedofilia – reforçou-se, entre o eleitorado bolsonarista, a imagem de que o presidente é apenas incompreendido, perseguido, mas de boa índole. Simultaneamente, emergiu na sociedade a demanda extemporânea e sem propósito para que Lula condenasse o regime venezuelano que forçou as garotas a virem para o Brasil, sob a alegação de que isso representaria um compromisso com a democracia e o rechaço à adoção de medidas semelhantes. Poucos dias antes, no entanto, era Bolsonaro que ventilava a possibilidade de aumento do número de cadeiras no Supremo Tribunal Federal, medida flagrantemente autocrática, entre tantos outros flertes e declarações ameaçadoras destinadas a produzir paralisias estratégicas, nas palavras do antropólogo Piero Leirner, e trazer o adversário para batalha em seu próprio campo, como afirmou Ciro Nogueira, em tom vitorioso, à Folha (20 out. 2022).
A cadeia de eventos que nos traz aqui é longa. A virada do século XXI foi marcada pela ascensão de governos de esquerda na maior parte dos países da América do Sul. Esse fenômeno ocorreu após as reaberturas democráticas que sequenciaram o fim de uma série de ditaduras no continente. Todas sob orientação ideológica de direita, as ditaduras sul-americanas foram oficialmente apoiadas pelo governo dos Estados Unidos, recebendo financiamento, auxílio em serviços de inteligência, treinamento de forças de repressão e sustentação política internacional. O principal objetivo desses governos ditatoriais era precisamente impedir a ascensão de governos de esquerda no continente, e foram marcadas por fortes discursos anticomunistas e antiesquerdistas, além da perseguição e morte de militantes ligados à esquerda.
Tal configuração teve forte repercussão na produção e acolhimento de refugiados na região: militantes de esquerda de todo o continente eram forçados ao deslocamento pelas perseguições políticas ocorridas em seus países de origem, mas sua presença era indesejada nos outros regimes ditatoriais dos países vizinhos. A título de exemplo, enquanto acolhia portugueses que saíam de Angola por ocasião da guerra decolonial de independência daquele país, o Brasil recusava refúgio a argentinos e uruguaios que fugiam das ditaduras de direita de seus países, ou os aceitava enquanto “pessoas em trânsito” sob condição de permanecerem no país em segredo e de serem obrigatoriamente transferidos após seis meses.
Mais de 3 mil latino-americanos chegaram ao país entre 1977 e 1982 em busca de asilo político, mas o status de refugiado foi concedido a apenas 1.380, e todos, sem exceção, foram reassentados em outros países pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) a pedido do governo brasileiro. À época, Rolf Jenny, vice-representante regional da organização em Buenos Aires, afirmou, em telegramas trocados entre os escritórios regionais e a sede do Acnur em Genebra, que o governo brasileiro continuava “a recusar dar asilo ou qualquer outro visto de residência permanente a nossos refugiados no Brasil”, complementando que “o Brasil não aplica na prática a lei de asilo nacional para a esquerda ou não-europeus”.
Na prática, o que ocorria era o estabelecimento de acordos entre os governos ditatoriais para cooperação na perseguição de militantes e ativistas de esquerda que fugiam de seus países. Em 1979, a ONU reconheceu, em telegrama, saber que o governo brasileiro perseguia cidadãos argentinos e uruguaios que fugiam das ditaduras militares daqueles países, além de ter sido informada de que vários cidadãos argentinos haviam sido, na verdade, sequestrados e devolvidos à Argentina pelo governo brasileiro. Também é de conhecimento público a atuação no governo dos Estados Unidos na instituição de uma rede de cooperação conhecida como Operação Condor, que articulou forças de segurança de todos os países da região e capacitou agentes policiais e militares para a tortura e a perseguição de ativistas e militantes de esquerda. Ocorria, portanto, uma seletividade ideologicamente orientada daqueles sujeitos que seriam elegíveis ou não ao refúgio, mas não apenas: a perseguição tornava-se transnacional, impossibilitando a requisição de asilo a países ideologicamente afins ao aparato estatal que os perseguia.
Criminalidade, narcotráfico e a esquerda
A Venezuela foi o primeiro país do continente a adentrar a chamada “onda rosa” com a eleição de Hugo Chávez em 1998. Desde então, a nação vizinha passou por uma série de intempéries políticas, incluindo tentativas de golpes de Estado, como o que tentou destituir o presidente eleito e instalar um governo de facto em 2002 – governo este que durou menos de 48 horas, mas foi prontamente reconhecido por Estados Unidos e Espanha –, além de diversas contendas de outras ordens. Após a morte de Chávez, Nicolás Maduro é eleito presidente. Desde então, o país foi classificado por Barack Obama enquanto uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos, e como um narco-Estado pelo think-tank liberal Center for Strategic and International Studies, pelo Financial Times e por procuradores federais dos Estados Unidos. Evo Morales e a Bolívia também foram vinculados ao tráfico de drogas, e acusados de integrar um triângulo constituído por Bolívia, Venezuela e Irã destinado a realizar tráfico de armas, drogas e promover intercâmbio militar.
No Brasil, é comum a vinculação entre militantes esquerdistas e o narcotráfico, e a grupos como o Hezbollah, também associado ao PCC. O Partido dos Trabalhadores já foi acusado de vínculo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – e estas, associadas ao narcotráfico – por José Serra, hoje eleitor de Lula. Em 2014, Felipe Moura Brasil, jornalista, seguidor do filósofo Olavo de Carvalho e entusiasta de primeira hora da candidatura de Bolsonaro à presidência, afirmava em seu blog na revista brasileira de maior tiragem à época que o Foro de São Paulo “era o maior inimigo do Brasil”, ressaltando que, além de partidos de esquerda, a articulação também contava em suas fileiras “várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos sequestros, como as Farc e o MIR chileno. […] Nunca se viu, no mundo, em escala tão gigantesca, uma convivência tão íntima, tão persistente, tão organizada e tão duradoura entre a política e o crime” – esta última frase atribuída ao seu guru, Olavo de Carvalho, de quem organizou o livro cujo nome é O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. A associação da luta por pautas populares e a criminalidade maculou também a imagem de Marielle Franco, acusada de ligação com o tráfico. Por fim, 2022 testemunhou uma nova explosão de associações entre o PT e o tráfico e a criminalidade, com Lula sendo acusado de “cupinxa” de traficantes por usar um boné com as letras “CPX” (versão abreviada de Complexo), declaração de voto de Marcola em Lula e até inserções na TV com estatísticas de votação de complexos penitenciários.
Além disso, no imaginário da extrema-direita, a ameaça esquerdista e comunista constitui um projeto transnacional. A figura do chamado Foro de São Paulo é um exemplo. Criado em 1990 a partir de um seminário internacional promovido pelo PT na cidade de São Paulo, o Foro é uma articulação entre partidos de esquerda, organizações acadêmicas e movimentos políticos latino-americanos que se dedica a “avançar com propostas de unidade de ação consensuais na luta anti-imperialista e popular”, “promover intercâmbios especializados em torno dos problemas econômicos, políticos, sociais e culturais”, e, “em contraposição com a proposta de integração sob domínio imperialista, [definir] as bases de um novo conceito de unidade e integração continental”. É bom lembrar que todos os governos de esquerda que venceram eleições na América do Sul entre 1998 e a segunda metade da década de 2010 eram de partidos ligados ao Foro. A articulação entre organizações e partidos de esquerda era desenhada, dessa forma, sobretudo enquanto criminosa, e, como tal, perigosa. Não cabe tolerá-los, mas persegui-los e, se possível, exterminá-los, perspectiva que encontra eco na política repressiva praticada pela direita brasileira durante o regime militar, e, curiosamente, também na política de segurança pública de guerra às drogas – e esta é uma narrativa que se estrutura desde fora do Brasil, é preciso frisar.
A migração venezuelana recente
Apesar de ter uma postura avessa às migrações internacionais, em especial àquelas de populações negras, indígenas e de países das franjas do capitalismo global, alguns fluxos migratórios tornaram-se dubiamente interessantes para o governo Bolsonaro. Foi o caso do refúgio venezuelano no Brasil. Como resposta ao crescimento da entrada de venezuelanos, o governo brasileiro deu início, em 2018, à Operação Acolhida, executada pelas Forças Armadas em parceria com uma miríade de organizações nacionais e internacionais – entre elas, o Acnur e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). A operação, apesar dos parceiros civis, é amplamente militarizada, polêmica e tem resultados controversos, arvorando-se em dois principais eixos: o de acolhimento de venezuelanos que cruzam a fronteira com o Brasil, e na sua decorrente interiorização “voluntária”, atuando para levar esses migrantes a outros estados como forma de desafogar a pressão sobre Roraima, por onde entram.
No início de 2020, a Operação adotou postura abertamente anticomunista, usando o lema “o socialismo exclui, o Brasil acolhe” – e aqui cabe uma ressalva semiótica: o par de oposição de socialismo é Brasil, que substitui capitalismo por corporificá-lo. Em 16 de janeiro daquele ano, Bolsonaro, ladeado por diversos ministros, como Sergio Moro e Onyx Lorenzoni (então ministro da Casa Civil, responsável pela coordenação da Operação), afirmou que o Brasil “continuará de portas abertas aos refugiados”, para arrematar dizendo “Brasil e Venezuela acima de tudo, Deus acima de todos!”. Onyx seguiu a mesma linha argumentativa do presidente, afirmando que o Brasil, “país livre”, tem a obrigação de acolher nacionais originários de uma nação “destroçada pelo socialismo”, reiterando que “o que a esquerda fez com a Venezuela, era o que ela queria fazer com o Brasil”. O release divulgado dizia que “o governo Bolsonaro traça estratégias para seguir lidando com as consequências do socialismo bolivariano”. No mesmo dia, o comando da operação em Pacaraima foi trocado.
Naquele mesmo mês, dezesseis dias após o anúncio feito pelo governo federal, a OIM, parceira na Operação Acolhida, firmou acordo com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), organização ligada ao Departamento de Estado dos Estados Unidos que, entre outras coisas, financiou o treinamento de policiais e militares brasileiros durante a ditadura militar. Essa mesma agência esteve envolvida no envio, em 2019, de ajuda humanitária à Venezuela, e relatório interno comprovou que funcionários da Usaid foram instruídos no sentido de que a operação visava “reforçar a credibilidade do governo provisório” de Juan Guaidó, líder da oposição venezuelana autoproclamado presidente da Venezuela e reconhecido enquanto tal pelo governo dos Estados Unidos em 2019. A Usaid também admite possuir acordo com o “presidente em exercício” para colaboração formal em programas de desenvolvimento dentro da Venezuela – desde 2017, foram destinados US$ 437 milhões pela agência para apoiar venezuelanos dentro do país e o “governo” de Juan Guaidó. Além disso, cerca de US$ 76 milhões foram direcionados para apoiar migrantes venezuelanos no Brasil.
Nesse ínterim, o governo brasileiro passou a reconhecer formal e coletivamente migrantes venezuelanos enquanto refugiados. O Brasil ratificou todas as convenções internacionais que regem a concessão de refúgio, como o Estatuto do Refugiado de 1951 e a Declaração de Cartagena de 1984, e o procedimento é regulamentado no país pela Lei nº 9.474/97. Além dos critérios previstos pelo Estatuto do Refugiado para concessão da proteção internacional – a saber, fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas –, o Brasil também estabelece a concessão do estatuto de refugiado àqueles que têm que deslocar-se de seus países de origem em razão de grave e generalizada violação dos direitos humanos. Em junho de 2019, já durante o governo Bolsonaro, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão colegiado responsável pelo julgamento das solicitações de refúgio no Brasil, reconheceu a situação de grave e generalizada violação dos direitos humanos na Venezuela, permitindo a aceleração do processo de concessão de refúgio exclusivamente para nacionais daquele país. Tal critério foi utilizado para concessão de refúgio para mais de 46 mil venezuelanos, tornando o Brasil o país que mais concedeu refúgio a venezuelanos em toda a América Latina, e não foi aplicado para conceder coletivamente tal benefício a nenhum outro grupo nacional.
Se são reconhecidos como refugiados aqueles que, devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, ou por graves e generalizadas violações dos direitos humanos, são forçados ao deslocamento migratório, é possível que grande parte dos venezuelanos não fossem elegíveis ao refúgio, a não ser que considerássemos “la dieta de Maduro” (como ficou conhecida a série de restrições alimentares que assolaram os venezuelanos em decorrência da crise e dos embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos àquele país) e outras privações infligidas à população enquanto graves violações dos direitos humanos – e, nesse caso, teríamos que justificar o porquê de isso ser considerado um critério de elegibilidade no caso dos venezuelanos e não no de outros grupos nacionais, como haitianos, senegaleses e democrático-congoleses. Mais: sabemos que a fome enquanto violação de um direito humano não é e nem nunca foi uma exclusividade de regimes socialistas – muito pelo contrário: é um mal que assola 33 milhões de brasileiros por causa de Bolsonaro, cujo regime é orgulhosa e radicalmente capitalista, e encontra analogia em muitos outros.
Assim, o caso das meninas venezuelanas de São Sebastião, Distrito Federal, é emblemático por diversos motivos. Primeiro, é preciso entender que Bolsonaro realiza a visita na intenção de instrumentalizá-las enquanto exemplo dos efeitos do totalitarismo – que, em sua semântica fascista, é sempre de esquerda – e do que não ser. Se em 2020 esse discurso cabia no contexto de sua guerra aos governadores, hoje ele cai como uma luva na disputa eleitoral, e sua atrofia moral é rapidamente substituída pela cobrança de posicionamento de Lula sobre o regime de Maduro enquanto pauta do dia. Em segundo lugar, a associação entre meninas e mulheres migrantes, majoritariamente não brancas, vindas de países governados pela esquerda, e a criminalidade e a degenerescência moral aciona todas as categorias de vinculação entre pautas populares, movimentos sociais, partidos e movimentos de esquerda e a criminalidade, como vimos acima. É bom lembrar que, na descrição bolsonarista, as meninas venezuelanas em situação de prostituição não são vítimas a serem protegidas, mas exemplos do que não se quer ser, ou do que se quer eliminar.
Por fim, é preciso frisar que o discurso eleitoral que instrumentaliza a migração oriunda da Venezuela tem sido construído desde 2019, e é propagandeado a partir do próprio comando da Operação Acolhida, usando a estrutura das Forças Armadas e do governo federal. Tal propaganda ideológica conta com a observação inerte e conivente de agências internacionais ligadas ao sistema ONU. A Operação, que já enviou imigrantes para vagas de trabalho escravo, hoje é mais uma estrutura da máquina do Estado que trabalha para reeleger Bolsonaro, e é o epicentro da estruturação simbólica do medo e do sentimento anticomunista. Em tempos de guerra semiótica, é preciso despir-se da inocência dos discursos fáceis e simplistas. As motivações de Bolsonaro e das Forças Armadas não são humanitárias ou democráticas, tampouco ele é aliado da causa migratória ou daqueles e daquelas perseguidas por regimes de exceção, como inocentemente creem alguns. Não se pode perder de vista seu único horizonte: a consolidação de um regime abertamente autoritário, violento e fascista.
*Alexandre Branco-Pereira é antropólogo e foi docente da Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (USFCar), do Promigras – Migração e Saúde (Unifesp) e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI.