A insurreição alemã contra o livre comércio
Ao se recusar a aprovar o Acordo Econômico e Comercial Global (AECG) entre o Canadá e a União Europeia, o Parlamento da Valônia, na Bélgica, atraiu para si a fúria dos dirigentes europeus e dos editorialistas da mídia comercial. Agora, esse tratado alimenta uma forte contestação popular, especialmente na Alemanha
Quem iria acreditar? Foi na Alemanha, terceiro país exportador do mundo, que se desenvolveu uma das mais fortes mobilizações europeias contra os acordos de livre-comércio entre a América do Norte e o Velho Continente: o Grande Mercado Transatlântico (GMT, mais conhecido por sua sigla em inglês Tafta), em fase de negociação, e o Acordo Econômico e Comercial Global (AECG, com frequência designado por seu acrônimo inglês Ceta), que entrou em fase de ratificação.1 Em 17 de setembro de 2016, manifestações organizadas em sete grandes cidades reuniram 320 mil participantes segundo os organizadores; 190 mil segundo a polícia. Em 10 de outubro de 2015, 250 mil manifestantes vindos de todo o país desfilaram em Berlim.
Polêmicas sobre o número de participantes à parte, essa mobilização contra a política comercial europeia constitui um dos maiores movimentos de protesto desde a reunificação. Vários estudos sugerem que ele traduz – ou induz a – um deslizamento profundo do julgamento popular realizado sobre esses acordos. Em fevereiro de 2014, os apoiadores do GMT representavam 55% da população (contra 25% de adversários); um ano depois, a proporção se equilibrou e, em seguida, se inverteu: em junho de 2016, três quartos de pessoas entrevistadas rejeitavam o tratado. Colocado mais tardiamente no centro do debate público, o AECG também desperta mais rejeição que adesão.2
A contestação agrega uma frente social tão ampla quanto heterogênea. Ali se acotovelam organizações de defesa do ambiente e dos consumidores, como o Greenpeace e o Foodwatch, assim como os contrários à globalização que integram a Associação para a Taxação das Transações Financeiras para a Ajuda aos Cidadãos (Attac), mas também a Confederação Alemã dos Sindicatos (DGB), associações e ainda o Conselho da Cultura – uma confederação que defende sobretudo os interesses de teatros, óperas, museus e orquestras sinfônicas. A União das Comunas Alemãs (DST), que congrega 3.400 cidades e localidades, exigia já em 2014 que “os serviços de base ligados às comunas, em particular os domínios ainda não privatizados, como o fornecimento de água e o esgotamento, o tratamento dos dejetos e os transportes públicos locais, os serviços sociais, assim como todos os serviços públicos do campo da cultura”, fossem explicitamente mantidos fora das negociações.
“Uma nova mentalidade isolacionista”
Numa resolução de seu sínodo, a Igreja Evangélica, que representa cerca da metade dos cristãos alemães, também exige transparência das negociações. Ela se opõe à flexibilização das normas sociais e ambientais, assim como à privatização dos serviços públicos. A Igreja Católica é mais reservada, mas advoga que os interesses dos países em desenvolvimento sejam levados em conta e recusa os tribunais de arbitragem privados.
Essas jurisdições especiais, que permitem aos investidores atacar Estados e coletividades locais, cristalizam a rejeição.3 A Associação dos Magistrados Alemães (DRB) tomou posição contra sua efetivação. Os juízes não protestam apenas contra os tribunais inicialmente previstos pelo GMT e pelo AECG, mas também contra a nova versão requentada para se opor à crítica, tal como o AECG prevê hoje: uma corte de arbitragem constituída de juízes profissionais e em consonância com uma corte de apelação. “Criar tribunais especiais reservados a grupos de pessoas passíveis de julgamento seria um erro”, declararam os magistrados em fevereiro de 2016.
O mundo político apresenta uma paisagem mais contrastante. Entre os representantes no Bundestag, os dois partidos de oposição, o partido de esquerda Die Linke e os Verdes, logo de saída contestaram os acordos. Muitos de seus membros se engajaram em iniciativas extraparlamentares, ações e comitês locais. O eco favorável encontrado pelo movimento forçou os grandes meios de comunicação, inclusive a televisão pública, a respeitar certo equilíbrio de tempo de fala – um pluralismo raramente observado no tratamento dos debates sociais. Nesse sentido, o movimento oferece um exemplo interessante do que a oposição extraparlamentar e uma forte mobilização podem realizar quando os meios de comunicação de massa difundem seus propósitos sem lhes deturpar o viés.
No lado contrário, encontramos os representantes dos interesses empresariais, a grande maioria dos economistas acadêmicos – na Alemanha mais ainda do que em outros lugares, majoritariamente neoliberais –, o governo federal, a União Cristã Democrata (CDU) e a União Cristã Social na Baviera (CSU). A Federação das Indústrias Alemãs (BDI) vê no GMT perspectivas de crescimento e declara em seu site que o acordo “criaria empregos, permitiria aumentos de salário e ofereceria melhores chances de carreira”. Desde então, a rejeição maciça suscitada pelos dois acordos deixou o patronato perplexo. “Não consigo entender por que, nos últimos tempos, uma nova mentalidade isolacionista se espalha cada vez neste país”, lamenta Ingo Kramer, membro da direção da Confederação das Associações Patronais. Seu colega Ulrich Grillo, presidente da BDI, enxerga nisso uma marca de antiamericanismo e julga que o debate está falseado pelos discursos geradores de ansiedade e simplificadores. Defensora há uma década de um acordo com os Estados Unidos, a chanceler Angela Merkel insiste nessa linha. Ela propunha ainda em setembro a retomada das negociações sobre o GMT, na época em ponto morto, e desejava “defender tudo que fosse passível de criar empregos. O acordo de livre-comércio faz parte disso”.
No meio desse enfrentamento, a posição do Partido Social-Democrata (SPD) não tem nada de claro nem legível. A oposição ao GMT desenvolveu-se rapidamente na base do partido, e algumas figuras proeminentes emitiram críticas, como Heiko Maas, ministro da Justiça, hostil aos tribunais de arbitragem privados. Nesse contexto, os sindicatos desempenham um papel mais importante na medida em que conservam relações privilegiadas com o SPD. A maioria dos funcionários – entre eles o presidente da DGB, Reiner Hoffmann – é integrante do partido. Ainda que a DGB e seus sindicatos-membros lembrem regularmente que não se opõem ao livre-comércio por princípio, eles exprimem a recusa em relação ao GMT e ao AECG em sua forma atual.
Ironia do acaso, é o presidente do SPD, Sigmar Gabriel, que, na qualidade de ministro da Economia da grande coalizão, dirige a política comercial do país. Vendo os debates internos, Gabriel e Hoffmann elaboraram em 2014 um documento que enumera as condições segundo as quais estariam prontos a aprovar um acordo: nada de flexibilização das normas, nada de medidas de desregulamentação constrangedoras, respeito às convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), manutenção das regras de cogestão alemãs.
Os adversários dos tratados pareciam ter levado a melhor. A ilusão rapidamente se dissipou. No Fórum Econômico Mundial de Davos em 2015, Gabriel os qualificou de “histéricos”. Diante de uma plateia composta de líderes empresariais e do embaixador dos Estados Unidos, ele defendia apaixonadamente o GMT, antes de estimar que se falava “muito das galinhas cloradas [que o tratado permitia que os Estados Unidos exportassem] e não o suficiente das repercussões geopolíticas”. Em 28 de agosto de 2016, no entanto, ele declarava com estrondo que as negociações do GMT tinham “de fato fracassado, mesmo que ninguém admitisse isso de verdade”. Apresentando-se como um pioneiro do comércio justo, o ministro tinha adotado uma posição de recuo: abandonar um GMT atolado e fazer dar certo o acordo com o Canadá.
Desde então, a direção do partido empenhou-se de todas as formas para impedir uma rejeição do AECG em suas fileiras. Em meados de setembro, Gabriel, decidido a desenvolver o texto já negociado, partiu rapidamente para o Canadá e arrancou do novo governo liberal de Justin Trudeau uma concessão simbolicamente forte: a substituição dos tribunais de arbitragem privados por um comitê que abrangia os juízes profissionais e oferecia a possibilidade de opor recurso – uma mudança que em nada modifica o caráter iníquo dessa jurisdição. “O AECG visa antes de tudo instituir entre os países mais desenvolvidos um procedimento de proteção dos investidores. Isso significa privilegiar o patronato introduzindo uma assimetria inaceitável em nosso sistema jurídico”, estima uma figura do movimento de oposição, Jürgen Maier, secretário-geral do fórum Ambiente e Desenvolvimento.
Nesse processo, vários pontos de atrito se tornaram objeto de anúncios tranquilizadores: protocolo adicional contra as empresas de fachada com domicílio em países terceiros; proteção dos serviços municipais e garantia das normas ambientais; e facilitação da “cooperação regulamentar” (um procedimento que, em sua forma inicial, tomava espaço do poder legislativo). Mas a tradução concreta desses anúncios demora, e os adversários não constatam nenhuma melhora concreta do acordo. “Só haverá progresso real quando se colocar um fim ao AECG e as negociações forem retomadas do zero”, declarava em setembro a presidente federal dos Verdes, Simone Peter.
A quilômetros desse estado de espírito, a presidência e o escritório do SPD aprovaram o compromisso com uma maioria esmagadora. Para impô-lo a uma base recalcitrante, eles convocaram em 19 de setembro uma convenção do partido – a mais alta instância de decisão entre dois congressos, composta de representantes eleitos cuja opinião não reflete necessariamente a dos simples militantes.4 Na presença da ministra do Comércio canadense, especialmente convidada para tranquilizar os representantes, os dois terços dessa assembleia aprovaram o novo texto.
Intervenção da Corte Federal de Justiça
O contexto político dessa demonstração de força pesou. Assim, o SPD acabou não escolhendo seu líder para as eleições legislativas de 2017. Uma derrota de Gabriel em relação ao AECG teria comprometido sua candidatura. Além disso, muitos sociais-democratas temiam ampliar por meio de uma recusa as crises que a União Europeia enfrenta. O “não” teria igualmente fragilizado a grande coalizão.
Esse debate desnuda a contradição do SPD: ele pretende defender os assalariados, mas adota decisões que vão sempre de encontro a seus interesses. Assim, a mais antiga social-democracia do mundo se encontra tomada pela dúvida e corroída por uma crise de identidade. Desde as reformas neoliberais conduzidas pela coalizão social-democrata-verde de Gerhard Schröder (1998-2005), sua base eleitoral sofre erosão. O partido que havia obtido 45% dos votos com Willy Brandt em 1972 vê essa pontuação dividida por dois anos nas intenções de voto.
Nem as manifestações hostis nem a mãozinha amigável do SPD conseguiram decidir de forma definitiva o destino do acordo euro-canadense. A União Europeia esperava colocá-lo em prática a título provisório antes do fim do ano, ou seja, antes de sua ratificação pelos Parlamentos nacionais. Mas, em 11 de outubro, em seguida à queixa coletiva feita por 190 mil cidadãos, a Corte Federal de Justiça se pronunciou. Se os magistrados de Karlsruhe ainda fincaram pé – isso pode levar ainda vários meses –, eles barraram disposições que podem limitar a aplicação provisória do tratado. O julgamento reafirma que a União Europeia deverá se limitar à colocação em prática de suas competências exclusivas, ou seja, principalmente os direitos aduaneiros. O AECG é de fato um acordo considerado “misto”: tudo que ultrapassa os direitos aduaneiros, aí incluídos os tribunais de arbitragem, a proteção ao trabalho ou a propriedade intelectual, necessita de uma ratificação pelos Parlamentos nacionais. A corte também determinou que um julgamento negativo profundo tornaria impossível qualquer ratificação pelo governo federal. Mesmo a aplicação provisória deveria, portanto, ser anulada!
Para o movimento de oposição, esse julgamento não representa de fato uma vitória, mas uma primeira batalha. Isso significa que não somente o Bundestag, mas também o Bundesrat (a câmara dos Länder) devem aprovar o acordo. Acontece que membros dos Verdes e do Die Linke, contrários ao AECG, fazem parte das coalizões de governo em doze das dezesseis Länder, os quais deveriam a priori se abster. O SPD e a CDU-CSU só dirigem quatro Länder, aos quais se junta a Baviera, dominada pela CSU. Nessas circunstâncias, é pouco provável que o acordo tenha sucesso.