A interpretação do artigo 142 e a República da Bruzundanga
Ao analisar o artigo 142 da Constituição Federal Brasileira, nota-se que só na Bruzundanga de Lima Barreto é que uma interpretação golpista do artigo seria minimamente possível
Lima Barreto escreveu um livro de sátiras chamado: Os Bruzundangas. As crônicas fazem incisa crítica à sociedade brasileira. Nesse país fictício impera o mau uso da coisa pública, o clientelismo, o coronelismo, o coleguismo entre outras mazelas conhecidas em terrae brasilis.
Além disso, a Constituição Federal, na República da bruzundanga, só é obedecida quando envolve o direito dos políticos, todavia, para a aplicação do estado do bem estar social – welfare state – quase nunca a Carta Magna é aplicada.
Nessa senda, ao analisar o artigo 142 da Constituição Federal Brasileira, nota-se que só na Bruzundanga de Lima Barreto é que uma interpretação golpista do artigo seria minimamente possível. Assusta a quantidade de “juristas” que, de forma incisiva e imediata, saíram para defender a possibilidade de as Forças Armadas serem o “Poder Moderador” da República e ainda permanecem nessa cruzada.
Diante desse cenário, há atualmente uma discussão acerca da possibilidade de uma PEC – projeto de emenda Constitucional – para deixar a redação do artigo 142 da CF/88 “mais clara”. Já o PSOL – Partido Socialismo e Liberdade – ajuizou a ADPF nº 1045 em que tem como pedido a declaração de inconstitucionalidade de interpretações golpistas do artigo 142 da CF/88 e que os parlamentares que continuem a defender tal interpretação não sejam acobertados pelo manto da imunidade Constitucional.
A proposta de mudança legislativa e a ação judicial são importantes e inteligentes. contudo, não resolverá o problema, uma vez que o cerne de tal interpretação golpista está na crise que assola o Direito – tanto uma crise de legalidade quanto uma crise de paradigma, além de uma crise educacional de formação jurídica – sendo assim, após resolvidos os problemas do artigo 142 da CF/88, a extrema direita, atualmente representada pelo bolsonarismo, irá encontrar outro artigo e eleger como ideário estético e funcional para uma interpretação golpista.
O bolsonarismo elegeu diversos símbolos para sua empreitada, por exemplo, a bandeira do Brasil que representa, para eles, o “verdadeiro” espírito Brasileiro nacionalista; no âmbito filosófico elegeu a figura de Olavo de Carvalho como autoridade para discussões que fundamentassem o posicionamento da extrema direita; já no meio social impulsionou a Disney e Miami como ideário de ascensão social e, no âmbito jurídico, propulsou o artigo 142 da CF/88 e alguns juristas de renome como ideário estético e funcional para um possível golpe.
O absurdo chega ao ponto que, o Ministro Gilmar Mendes, em entrevista, afirmou que foi procurado pelo então Comandante do exército que o questionou sobre a possibilidade de aplicação do artigo 142 da CF/88 e a possível utilização das Forças Armadas como “poder moderador”, quando então, com fina ironia, devolveu a questão ao Ministro de antanho e o indagou se estávamos sob a égide da “hermenêutica da baioneta?!.”[1]
O artigo 142 da Constituição Federal, assim dispõe:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Veja-se que o conceito de norma no pós-positivismo engloba o caso concreto ou, em outras palavras, a facticidade, logo, não é possível produzir norma sem os fatos, sendo assim, a ideia de que o intérprete constrói a seu bel prazer a norma, diante de voluntarismos, está equivocada, pois, dessa maneira, o direito aceitaria qualquer tipo de interpretação desde que tenha sido realizada pela autoridade competente.
O intérprete não tem tamanho poder – conforme as teorias realistas pregam – pois a norma é desnudada do dispositivo diante do caso concreto – e não existe anteriormente à facticidade – o que ressalta a necessidade do self-restraint dos juízes e a devida aplicação do direito, que reforça sua autonomia e afasta o seu viés degeneratório.
(ABBOUD, p. 26. 2009), amparado muito pelo conceito de norma de Friedrich Muller, nos ensina:
Desse modo, pode se asseverar que diante de um acesso hermenêutico ao direito não se pode mais confundir texto normativo com norma. O texto normativo é o programa da norma, representa o enunciado legal (lei, súmula vinculante, portaria, decreto), sua constituição é ante casum e sua existência abstrata. A norma, por sua vez, é produto de um complexo processo concretizador em que são envolvidos o programa normativo e o âmbito normativo. A norma somente existe diante da problematização de um caso concreto, seja real ou fictício. A norma não está contida na lei. Somente após a interpretação a norma é produzida, a norma é realizada na linguagem, diante da problematização, quando é contraposta aos fatos jurídicos e à controvérsia judicial que pretende solucionar.
Ora, se a norma é aplicada apenas diante do caso concreto e apenas com o uso da linguagem, cai por terra a ideia de que o direito possa ser aplicado por silogismo. Qualquer ato volitivo de criação da norma se utiliza da linguagem, pois, conforme Wittgenstein: “os limites do nosso mundo são os limites da minha linguagem”, isto é, seja qual for o limite do nosso mundo, ele só pode ser alcançado com a utilização da linguagem. Ultrapassamos, portanto, o referencial sujeito-objeto para nos situarmos no referencial sujeito-sujeito, pois, linguagem não é instrumento e sim a própria essência que depende o criador da norma.
As normas não são textos, ou simplesmente o conjunto deles, mas sim o sentido extraído da interpretação sistemática dos textos normativos. Daí chega-se à afirmação de que os dispositivos são os objetos de interpretação, ao passo que as normas são o resultado de sua interpretação.[2]
Os sentidos, assim, são reconstruídos pelo intérprete durante o processo de interpretação, mas não significa dizer que não há significado algum antes desse processo. Isso porque há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, de modo que resultam de conteúdos já existentes na comunicação linguística geral.[3]
Nesse mesmo sentido já defendeu o Professor Miguel Reale, para quem as condições estruturais preexistem ao processo de cognição, que possibilita que o sujeito intérprete algo anterior que lhe apresenta para ser interpretado (condição a priori intersubjetiva).[4]
O que leva o intérprete a desconsiderar os significados mínimos das palavras introduzidas pelo legislador é a teoria que ele – mesmo que inconsistente – adota. Assim, quando se assume que a interpretação é a criação de um significado, pressupõe-se que os termos ou enunciados objeto de interpretação não possuem nenhum significado preexistente à atividade interpretativa, motivo pelo qual resta aceitável a atribuição de qualquer significado.
O oráculo do Direito deve construir a norma não com voluntarismos, mas encontrar o sentido que consta nos dispositivos e desnudar a norma. Por óbvio que esse movimento necessita de um ato intelectivo do intérprete, contudo, constata-se aqui que consideramos que existe uma resposta correta para cada caso concreto, logo, o juiz não “cria”, ele desnuda o sentido – diante do caso concreto – que consta no enunciado.
Trata-se da perspectiva Dworkiana de direito como integridade, pois, a resposta correta não é metafísica e nem todas as pessoas irão concordar, contudo, deve existir uma racionalidade e hombridade intelectual dos juristas como um todo para saber que quando interpretamos algo devemos levar em consideração todo o ordenamento e sua principiologia. Diante desse cenário, podemos afirmar, de forma categórica, que nem todas as interpretações são válidas.
(ABBOUD, p. 459. 2021), mais uma vez, leciona:
Ronald Dworkin ensina que a partir da perspectiva do direito como integridade implica que toda interpretação judicial tenha por finalidade uma descrição coerente da ordem jurídica em seu conjunto. Isso ocorre porque, em uma democracia, toda interpretação do direito Constitucional deve considerar a própria democracia. Assim, por exemplo, as decisões que interpretam o devido processo legal e a isonomia, ao serem concretizadas, devem necessariamente levar em conta todo o restante da principiologia constitucional.
E em outro momento assevera (ABBOUD, p. 469. 2021):
É esse o pano de fundo necessário para se estruturar a resposta constitucionalmente adequada (não discricionária) no direito. Dworkin sustenta que, por mais complexa que seja uma disputa interpretativa, sempre é possível determinar qual das posições sustentadas responde melhor à questão jurídica discutida. Logo, existem, sim, interpretações melhores do que outras; e, dentre as melhores, uma se afigura como a melhor. Em última instância, isso significa que há uma resposta correta para os casos mais problemáticos.
Nessa trilha, ao qual nos filiamos, não se pode aduzir que qualquer interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, ou de qualquer outro artigo da carta magna, são válidos porque o direito é relativo ou porque toda interpretação é válida.
De fato, interpretar, por exemplo, o artigo 142 da CF, diante da perspectiva da integridade de Dworkin, nos leciona que uma intervenção federal afronta a própria Constituição, o direito e a democracia, logo, essa interpretação não é, de nenhuma maneira, válida.
Veja-se, portanto, que entender possível uma intervenção Constitucional das Forças Armadas é uma ideia paradoxal, pois o Direito não admite uma interpretação que ofende o próprio Direito, ou seja, essa exegese seria um suicídio do próprio Direito.
Em uma Constituição onde o Poder emana do povo e é regido por um Estado Democrático de Direito (artigo 1º da CF/88); onde os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo são independentes e harmônicos entre si (artigo 2º da CF/88); que tem como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária (Artigo 3º, I da CF/88); que encarta um rol extenso de direitos e garantias fundamentais (Artigo 5º e seus incisos da CF/88); onde arrola como princípios sensíveis a forma republicana, o sistema representativo, o regime democrático e os direitos da pessoa humana (Artigo 34, VII, “a” e “b”), não existe nenhuma possibilidade de aceitar uma “intervenção Constitucional”, pois, de forma exemplificativa, essa exegese ofende todos esses direitos e ainda muitos outros estatuídos na Carta Magna.
Vinicius Marinho Minhoto é advogado e procurador jurídico. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP/SP e Direito Administrativo pela PUC/SP, mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP.
Ricardo Oliveira Pereira é advogado, mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo.
REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. direito constitucional pós-moderno. São paulo: ed. Thomsom reuters Brasil, 2021.
[1] https://www.cartacapital.com.br/politica/gilmar-mendes-diz-ter-sido-questionado-por-villas-boas-sobre-papel-moderador-das-forcas-armadas/
[2] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2021. Pg.50.
[3] Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico- Investigações filosóficas, p. 263.
[4] REALE, Miguel. Cinco Temas do Culturalismo. São Paulo, Saraiva, 2000. p. 30.