A Itália redescobre a sua classe trabalhadora
O sindicalismo combativo renasce na Itália: apesar dos apelos da esquerda institucional para a aprovação de certos acordos trabalhistas, operários da Campânia e de Turim votaram contra a diminuição de horas de intervalo,a organização da escala semanal ao bel prazer dos patrões e a possibilidade da jornada de 10 horasSerge Quadruppani
Boa parte da Itália parece ter redescoberto a existência de uma classe trabalhadora combativa quando ocorreram os referendos sobre a flexibilização do trabalho e a redução de custos, impostos pela diretoria da fabricante de automóveis Fiat ao pessoal de duas unidades: Pomigliano d’Arco, próximo de Nápoles, em junho de 2010, e Mirafiori, em Turim, no último mês de janeiro.
Através desses acordos de empresas, arrancados mediante a promessa de investimentos, afirmava-se um projeto mais geral: reconstruir as relações industriais nascidas nos anos 1970 e 1980 com o propósito de criar um direito sindical limitado e uma maior disciplina do trabalho.
O inventor dessa estratégia de choque, Sergio Marchionne, ítalo-canadense residente na Suíça, soube jogar com maestria duas paixões italianas contraditórias e complementares: a tendência à autoflagelação e o patriotismo. O administrador-delegado da Fiat permitiu que este último sentimento se difundisse nas primeiras páginas dos veículos de imprensa quando seu grupo adquiriu, graças à garantia financeira do governo de Barack Obama, 20% e mais 25% da americana Chrysler, ameaçada de falência. As duas empresas poderiam se fundir até 2013.
Ademais, quando Marchionne declara que “a única zona no mundo onde o conjunto do sistema industrial e comercial do grupo Fiat perde dinheiro é a Itália1”, ele é ouvido com deferência pelos dirigentes políticos de ambos os lados, que se abstêm de interrogar a política geral do grupo, cuja maior parte dos veículos é produzida na Polônia, na Turquia e, sobretudo, no Brasil. Essa exaltação orquestrada redobrou quando, em 21 de abril de 2010, ele anunciou, juntamente com o herdeiro do império Agnelli, “o mais extraordinário plano industrial que nosso país já teve”: o projeto Fabbrica Italia. Além da duplicação da produção de veículos em cinco anos, eles prometem que o grupo realizará “70% de seus investimentos mundiais nas unidades italianas”.
Ao contrário dos projetos precedentes, este, que não foi negociado, apresenta-se como um business plan e não compromete em nada a empresa. No entanto, como bem lembra um manifesto de 132 economistas, “as prioridades da Fiat estão sempre mais orientadas para a dimensão financeira, à qual poderia ser sacrificado o futuro da produção de carros na Itália e, até mesmo, a propriedade das unidades fabris2”. De fato, entre 1970 e 2006, os ativos industriais da Fiat passaram de 72% a 30%, ao passo que os ativos financeiros passaram de 28% a 70%3. Se ignorarmos como a Fiat poderia duplicar suas vendas de veículos produzidos na Itália, todo esse estardalhaço parecerá ideal para estimular as cotações na bolsa.
É em decorrência de tais promessas que, sob a ameaça de fechamento das unidades, o administrador-delegado vai impor sucessivamente dois “acordos”. O primeiro visa a fábrica de Pomigliano. Nessa região de Campânia, considerada mafiosa e indolente, a diretoria, desde 2007, havia tentado criar a “Nova Pomigliano” graças a um estágio obrigatório de dois meses (sob vigilância de fiscais e com proibição de idas ao banheiro) destinado a formar mão de obra nos moldes da World Class Manufacturing, metodologia de organização do trabalho e aceleração de ritmos.
Uma campanha na imprensa, o envolvimento das famílias, envio de vídeos e mensagens SMS, bem como cartazes, revistas e sites na internet com mensagens orwellianas são instrumentos que dariam aos trabalhadores o sentimento de pertencer a uma comunidade de empresa. Essa política suscitou resistências em 10 de janeiro de 2008, por exemplo, um cortejo interno de 200 trabalhadores terminou com a demissão de sete deles.
Apesar dos apelos de outros sindicatos e de representantes eminentes da esquerda institucional para a aprovação dos “acordos”, o “não” contou com 38,8% dos votos na fábrica da Campânia e 45,9% na de Turim. Nesta última, os operários das linhas de produção, os primeiros afetados pela reorganização do trabalho, votaram majoritariamente pelo contra. Contra a diminuição de horas de pausa, a mudança do horário de almoço para o final do expediente, a possibilidade da semana de 48 horas, a organização da escala semanal ao bel prazer dos patrões, a possibilidade da jornada de dez horas, o não pagamento dos dois primeiros dias de licença-saúde, a supressão de fato do direito de greve e a exclusão dos sindicatos que não assinarem o acordo.4
Para atingir seus objetivos, Marchionne teve que criar uma nova sociedade, a Newco, que se desvinculou da confederação patronal italiana (Confindustria), o que lhe permitiu não observar os acordos coletivos nacionais. Essa estratégia, embora oficialmente desaprovada pela Confindustria, despertou o interesse de outros patrões.
Mas, desde 16 de outubro de 2010, uma manifestação nacional já mostrava o apoio de amplos setores da sociedade à resistência dos trabalhadores. O coletivo Uniti contro la Crisi constitui-se em torno da Fiom a Federação dos Operários Metalúrgicos, reunindo estudantes da Onda5, organizações de imigrantes, opositores à privatização do setor de água… Seus representantes estavam presentes na tribuna, em 27 de janeiro, bem como o de um coletivo de escritores proscritos das bibliotecas da região de Vêneto, por obra da Liga do Norte6. Na véspera, a edição local do L’Unità estampava: “Trabalhadores e escritores em greve”.
Embora os jornais berlusconianos conclamem a uma “marchionnização” da Itália, a “reeducação do país no desafio à competitividade global” não está garantida.
*Serge Quadruppani é escritor. Sua última obra publicada: La politique de la peur , Seuil, Paris, 2011.