A JBS e a sexta-feira 13 do agronegócio
Acidentes envolvendo mortos e feridos crescem a taxas altíssimas no setor que já é o campeão de acidentes no Brasil
Em mais um dia macabro para a imagem da mega-corporação JBS, o trabalhador Lizandro Alves de Souza de 39 anos, foi morto “pela esteira que transporta caixas no túnel de congelamento” na fábrica da JBS em Caxias do Sul, de acordo com relato do presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação do Rio Grande do Sul (FTIA-RS) para a Regional Latino-Americana da União Internacional dos Trabalhadores de Alimentação (Rel-UITA). De acordo com relatos de colegas de trabalho, Lizandro morreu enquanto tentava retirar uma caixa emperrada no túnel de congelamento da fábrica. No mesmo dia, foi registrada uma explosão na caldeira da unidade da JBS de Osasco, sem feridos registrados.
Ainda de acordo com a Rel-UITA, a unidade da JBS de Seberi, no Rio Grande do Sul, registrou um acidente grave com uma trabalhadora enquanto operava um equipamento de remoção de peles de suínos sem proteção. Em 2021, um trabalhador da JBS de Dourados morreu em um acidente que triturou seu corpo em uma máquina de moer carnes. Acidentes envolvendo mortos e feridos, longe de serem produto de qualquer mau-agouro da sexta-feira treze, crescem a taxas altíssimas no setor que já é o campeão de acidentes no Brasil.
Essa lista macabra de acidentes envolvendo trabalhadores de frigoríficos no Brasil, apesar de encabeçada pela JBS, envolve outras empresas. Há um mês, em 15 de agosto, um trabalhador na BRF morreu após ficar preso em uma câmara de refrigeração a 18 graus negativos. Em março, uma trabalhadora terceirizada foi encontrada morta no vestiário, após apresentar mal-súbito no frigorífico da Marfrig de Várzea Grande, no Mato Grosso.
Também têm se tornado cada vez mais comuns acidentes envolvendo o vazamento massivo de gás amônia em plantas de frigoríficos. O gás amônia é utilizado em tubulações para refrigeração por causa do seu baixo custo. No entanto, devido aos cortes nos programas de prevenção de acidentes e redução na manutenção de tubos e casas de máquinas, vimos os acidentes duplicarem: de 12 acidentes em 2022 para 23 em 2023, ou uma acidente a cada 2 semanas. Em concentrações acima de 10 partes por milhão, o gás amônia tem efeito tóxico no organismo humano e pode causar ferimentos nos olhos e no aparelho respiratório superior – e possivelmente a morte.
Este cenário preocupante é objeto de denúncia de dois relatórios recentemente publicados. O primeiro é um dossiê jurídico sobre a JBS publicado pela organização Mighty Earth com foco nas violações sociais e ambientais e fraudes cometidas pela corporação. Tornado público no início de setembro e produzido ao longo de uma investigação que durou 9 meses, o relatório foi escrito pela advogada Laura Ferris, ex-conselheira e assessora especial do Tesouro dos EUA, além de ex-procuradora do Departamento de Justiça dos EUA. O relatório aborda de forma ampla os temas: Desflorestamento da Amazônia; Trabalho Escravo; Trabalho Infantil e Violação dos Direitos dos Povos Indígenas; Corrupção; Fraude, Esquemas envolvendo fixação de preços e outros atos ilicitos.
O relatório da Mighty Earth foi publicado no contexto da luta da JBS por abrir seu capital na bolsa de valores de Nova Iorque. De acordo com Ferris, ‘a extensão e a gravidade da corrupção, das violações ambientais, abusos de direitos humanos e conduta anticompetitiva envolvendo a JBS são angustiantes. Esta Declaração de Fatos sobre a JBS narra a história profundamente preocupante da gigante da carne e o padrão de práticas comerciais conforme relatado por várias fontes, e serve como um aviso severo à SEC [Comissão de Valores Mobiliários dos EUA] e outras comissões sobre o tipo de conduta que provavelmente não apenas continuaria, mas se proliferaria caso a JBS obtivesse acesso a capital adicional por meio da Bolsa de Valores de Nova York’.
Em setembro do ano passado, um grupo com 16 organizações ambientais já havia redigido uma carta aberta à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos no qual compartilhavam suas preocupações e possíveis consequências do avanço da JBS no mercado de capitais dos EUA, dentre os quais a concentração de poder quase total sobre a corporação pela família Batista, riscos relativos à uma estrutura corporativa opaca, incapacidade de se adequar às legislações locais que restringem produtos ligados ao desmatamento e riscos financeiros – a JBS está envolvida em processos e disputas legais que juntas podem somar até 1.7 bilhões de dólares além de multas por corrupção no Brasil que podem chegar até 3.5 bilhões de dólares.
Como relatou à época a Repórter Brasil e de acordo com um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), “a JBS é a empresa mais exposta aos riscos de devastação na Amazônia Legal. As zonas de compras dos seus 24 frigoríficos na região contêm quase 10 milhões de hectares desmatados, embargados (proibidos para exploração pelas autoridades) ou sob risco de derrubada”.
À medida que se intensifica nos EUA e no mundo a oposição ao plano da JBS de listar suas ações na Bolsa de Valores de Nova York, a Mighty Earth declarou que a chamada dupla listagem se configuraria como uma das Ofertas Públicas Iniciais de maior de risco climático de todos os tempos: “Permitir que tal empresa expanda a sua influência sem controle não só representaria um perigo significativo para a floresta amazônica e alimentaria a crise climática, mas também poderia minar a integridade de mercados financeiros e representar riscos descomunais para os investidores.”. Já o advogado da Mighty Earth, Kevin Galbraith, afirmou que “À luz das evidências esmagadoramente contundentes apresentadas em nossa Declaração de Fatos, acreditamos que é fundamental que a SEC tome medidas decisivas contra a JBS. Instamos a SEC a conduzir uma investigação completa sobre os supostos “títulos vinculados à sustentabilidade” fraudulentos da JBS e a impedir que esta enorme empresa de carne seja listada na Bolsa de Valores de Nova York”. Assim, a Mighty Earth soa o alarme sobre o impacto descomunal da JBS no clima, meio ambiente, pessoas e animais não-humanos.
O segundo relatório em questão, ‘The Rapid Response – Cattle Report’, publicado ontem e produzido em conjunto pela AidEnvironment, Mighty Earth e Repórter Brasil, expõe o papel dos desmatamento com agrotóxicos no Pantanal e liga as empresas JBS, Marfrig e Minerva:
“Como parte de uma investigação mais ampla do programa de monitoramento de desmatamento Rapid Response da Mighty Earth, descobrimos que 27 frigoríficos da JBS que forneciam produtos de carne bovina para os principais varejistas Carrefour, Casino/GPA, Grupo Mateus e supermercados Sendas/Assaí no Brasil estavam ligados a quase 470.000 hectares de desmatamento e conversão em pastos na Amazônia e no Cerrado entre 2009 e 2023, por meio de cadeias de suprimentos diretas e indiretas. Incluindo os dados de nove frigoríficos da Marfrig e da Minerva, descobrimos que a área total destruída nesse período foi de mais de 550.000 hectares” – declara o relatório.
Um dos casos investigados envolveu o uso de agente laranja para desmatamento de mais de 80.000 hectares – uma área do tamanho da cidade de Amsterdã – na Fazenda Soberana, no Mato Grosso. De acordo com investigação da Greenpeace Brasil, a fazenda contou com empréstimos do Banco do Brasil que chegaram a 10 milhões de reais.
A pesquisa ainda foi capaz de rastrear produtos de origem bovina pelo aplicativo Do Pasto ao Prato, através do qual mapeou cerca de 1.500 produtos vendidos em 120 lojas das redes de supermercados Carrefour, Pão de Açúcar, Grupo Mateus e Senda. Em seguida, utilizando alertas de desmatamento em tempo real, monitoramento por satélite e “Guias de Trânsito Animal” sobre o movimento de gado de fazendas para 36 frigoríficos, a pesquisa foi capaz de analisar as ligações com o desmatamento.
No caso do Carrefour, o relatório aponta que o varejista obteve mais da metade (56%) dos suprimentos de carne bovina de frigoríficos da JBS, o que significa que o gigante varejista francês ainda está potencialmente ligado a práticas arriscadas de fornecimento de carne bovina, apesar de ter feito algum progresso ao bloquear 177 fazendas desonestas na Amazônia no ano passado e, pela primeira vez no mundo para um varejista, estabelecer uma Plataforma de Transparência Florestal.
A Mighty Earth aponta ainda para uma série de medidas a serem tomadas diante dos problemas denunciados, tais como investigar as alegações por parte das empresas e suspender fornecedores envolvidos em desmatamento; divulgar o volume e origem do gado por parte dos frigoríficos com destaque para as fazendas envolvidas em programas de Desmatamento e Conversão Zero (ZDC); e reportar publicamente todos os supostos casos de desmatamento ou violações de direitos humanos.
O relatório demanda que Carrefour, Casino/GPA, Grupo Mateus e Sendai/Assaí encerrem todos os relacionamentos comerciais diretos ou indiretos com frigoríficos como a JBS, Marfrig e Minerva envolvidos em desmatamento ou conversão de ecossistemas para pastos. E também solicita que varejistas divulguem imediatamente o volume e a origem de produtos que contêm carne bovina – incluindo detalhes dos frigoríficos, listas de fornecedores diretos e indiretos de fazendas e a proporção de produtos de carne bovina provenientes de uma cadeia de suprimentos de produtores verificados com Zero Desmatamento e Conversão.
Esta série de violações colocam lado a lado dois modelos civilizatórios: de um lado, o agronegócio devastador dos ecossistemas e profundamente arraigado em arranjos de poder e finanças públicas que conduzem o conjunto da sociedade brasileira ao abismo. De outro, o modo de viver arraigado na luta por territórios da vida em trama multi-espécies, como preconizam os povos da terra, indígenas, quilombolas e camponeses, que Manuela Carneiro da Cunha chamou de Povos da Megadiversidade, hoje no fio da navalha das lutas por um outro projeto de país e aos quais são delegados grande parte do risco no enfrentamento à barbárie do agronegócio.
Enfim, como disse recentemente o professor Luiz Marques em entrevista ao MST, em meio a uma profunda reflexão sobre nossa a oportunidade decisiva para enfrentar as mudanças climáticas e seus efeitos catastróficos: o agronegócio é o principal inimigo do Brasil.
Allan de Campos Silva é Geógrafo, membro do DATALUTA – Banco de Dados das Lutas por Espaços e Território e pesquisador de Pós-Doutorado na Universidade Estadual Paulista (UNESP).