A justiça restaurativa de El Salvador
Após 17 anos do fim da guerra civil salvadorenha, os agentes do Estado que violentaram a população durante o conflito seguem impunes, beneficiados pela lei de autoanistia. Para cicatrizar essas feridas abertas, entidades de direitos humanos convocaram um Tribunal de Justiça Restaurativa
“O que despoja a vítima é o silêncio”
Jon Sobrino
Em março de 2009, na Capela dos Mártires da Universidade Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), em São Salvador, foi instalado o primeiro Tribunal Internacional de Justiça Restaurativa para El Salvador. O local é o mesmo onde, há duas décadas, seis jesuítas foram assassinados por militares.
Após 17 anos do fim do conflito armado que dividiu o país, continuam presentes na sociedade salvadorenha as mesmas causas que constituíram o pano de fundo da guerra civil: a exclusão social e econômica e a falta de participação e representação política efetiva de grande parte da população. Contudo, o cenário parece sensibilizar a maioria da população, que acaba de eleger e dar posse ao primeiro presidente de esquerda, o jornalista Maurício Funes.
O momento era, portanto, propício para a instauração do Tribunal de Justiça Restaurativa. Sim, é fato que, em 1992, logo depois dos acordos de paz, El Salvador aceitou a convocação de uma “Comissão da Verdade”. Mas, poucos dias após a apresentação do informe final e das recomendações do grupo, o Parlamento aprovou, em 20 de março de 1993, uma lei de auto-anistia para todos os agentes do Estado que houvessem cometido violações de direitos humanos antes ou durante o conflito armado.
Assim, esgotado o principal instrumento do processo de transição, com as instituições manifestando evidente falta de vontade política para efetuar a reparação integral das vítimas do conflito, entidades de direitos humanos, entre elas o Instituto de Direitos Humanos da UCA, decidiram convocar um Tribunal de Justiça Restaurativa.1 Da justiça restaurativa tomou-se a ideia de colocar a vítima no centro do processo de reparação. Dar-lhe papel de protagonismo no processo de uma busca efetiva e ampla pelo ressarcimento aos civis violentados, e sem o qual não se passa da repressão política e da guerra para a democracia. Ao início do Tribunal, o jesuíta Jon Sobrino justificou a iniciativa, concluindo com a frase trazida em epígrafe: “O que despoja a vítima é o silêncio”. Um dos objetivos específicos da iniciativa era “contribuir para o processo de cicatrização das feridas e para a construção de um novo tecido social por meio da revelação de uma realidade conhecida pela maioria da população, mas não acatada unanimemente”.
Torturas e execuções
Assim, começou-se a trabalhar com a ideia de uma verdade conhecida, mas não divulgada o suficiente. Os juízes conheceram casos específicos de torturas, desaparições forçadas e execuções extrajudiciais, além de dois massacres, entre as centenas que as forças de segurança de El Salvador infligiram à população civil desde a década de 1970, nos tempos da repressão política, e de 1981 a 1992, período da guerra civil.
As vítimas diretas e indiretas foram representadas por advogados de direitos humanos. Em defesa do Estado compareceu a Procuradoria de Direitos Humanos. Os sucessivos governos de El Salvador sustentaram, no plano nacional e internacional que, no período do conflito armado “a condição de violência aberta e generalizada no país gerou um clima propício à violação sistemática dos direitos humanos e liberdades fundamentais”. Segundo eles, um confronto que respondia à lógica da guerra fria, onde El Salvador teria sido elevado à categoria de fronteira ideológica entre os grandes blocos políticos que pretendiam tornar-se hegemônicos. O Estado salvadorenho tentava, assim, aparecer diante da comunidade internacional como vítima do comunismo – história que soa bem familiar para nós brasileiros. Com isso, pretendia afastar a ideia-força de que condições domésticas de ordem estrutural – exclusão social, marginalidade econômica, fraude eleitoral e repressão – foram as razões determinantes da violência insurgente no país.
Para ilustrar a situação em números concretos, durante o conflito morreram aproximadamente 80 mil pessoas, mais de 8 mil desapareceram de modo involuntário ou forçado e cerca de 1,5 milhão foram forçadas a emigrar. Mesmo com dados tão alarmantes, o Estado negava sistematicamente a prática de qualquer tipo de violência. A tortura era entendida como ato de defesa destinado à obtenção de informações, principalmente quando justificada pela guerra.
Como já tinha acontecido durante o funcionamento da Comissão da Verdade, os testemunhos colhidos, o relatório pericial que se manifestou sobre as consequências das violações de direitos humanos, os fatos agora tidos como certos e notórios, os documentos apresentados e, fundamentalmente, a palavra das vítimas – algumas diretas, outras indiretas – desmontaram a tese por anos defendida pelos governos de El Salvador. A prova se fortaleceu no sentido de que as violações foram sistemáticas, massivas, cometidas por agentes do Estado ou por eles toleradas, com acobertamento e aceitação oficiais, e não fatos isolados, excessos e esporádicos episódios de abuso de poder por indivíduos não identificados, como até há pouco tempo sustentava a versão oficial.
Há fatos notórios que sensibilizaram, à época, tanto a sociedade civil salvadorenha como a opinião internacional e que constituem o registro dessa política de Estado. A sentença do Tribunal lembrou que já “em 1980 ocorreram acontecimentos que comoveram a sociedade salvadorenha e o mundo: em fevereiro, esquadrões da morte assassinaram o procurador geral da República; em março, pessoas do círculo do prefeito Roberto D’Aubuisson planejaram a execução do arcebispo monsenhor Oscar Arnulfo Romero; em novembro, uma operação combinada das forças de segurança executou os integrantes da Frente Democrática Revolucionária (FDR); na semana seguinte, a Guarda Nacional executou quatro religiosas da Ordem Maryknoll. Paralelamente, foram levadas a cabo ações de ‘terra arrasada’, com o apoio do governo dos Estados Unidos de Ronald Reagan”.
Anos mais tarde, monsenhor Oscar Romero foi efetivamente assassinado, durante a celebração de uma missa, por militares fardados. Agentes militares executaram friamente seis jesuítas no campus da Universidade Centroamericana. Inúmeros massacres, alguns de centenas de pessoas, foram cometidos por forças militares contra populações civis desarmadas e não beligerantes.
Direito à verdade
Esta verdade, então rememorada perante o Tribunal de Justiça Restaurativa, levou à condenação do Estado salvadorenho. Afirmou-se que o direito à verdade é reconhecido no Sistema Interamericano de Direitos Humanos como um princípio elementar de direitos humanos, que tem origem no direito à proteção judicial e de buscar e obter informação. São titulares deste direito tanto as vítimas diretas quanto as indiretas, bem como a sociedade em geral, que deve ter acesso a toda informação essencial para o desenvolvimento do sistema democrático. Assim, em se tratando de crimes contra a humanidade, a busca pelos fatos e as consequências implicadas em conhecê-los não podem ser obstadas, nem pela anistia nem pela prescrição.
O Tribunal decidiu que os crimes ante ele relatados “têm características de crimes contra a humanidade. Esses crimes estão previstos como princípios do Direito Internacional, reconhecidos no artigo 6º do Estatuto do Tribunal de Nuremberg e nas sentenças do Tribunal proferidas entre 20 de novembro de 1945 e 1º de agosto de 1946. Foram qualificados como crimes contra a humanidade os atos desumanos cometidos contra a população civil, perseguições por motivos políticos, assassinato, extermínio e deportação, dentre outros. Essa definição de crimes contra a humanidade foi acolhida pela Assembleia Geral da ONU em 11 de dezembro de 1946 (Resolução nº 95)”.
Em outras palavras, crimes que degradam de forma brutal, massiva e sistemática o ser humano, sua dignidade e os direitos mais fundamentais que lhe são inerentes, afetam os pilares da sociedade organizada, ameaçam a civilização e exigem punição efetiva e reparação integral. Como El Salvador é parte da Carta das Nações Unidas, na época da Resolução nº 95 o Estado estava comprometido com “o respeito às obrigações decorrentes dos tratados de outras fontes do Direito Internacional”.
O Tribunal, em sua sentença, faz referência à normativa internacional e à jurisprudência de cortes internacionais, notadamente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já considerou crime contra a humanidade a prática de atos desumanos tais como homicídio, tortura, execuções sumárias e extralegais ou arbitrárias cometidas dentro de uma prática sistemática derivada de um sistema político baseado no terror e na perseguição. E, presente a qualificação de crimes contra a humanidade, as condutas são imprescritíveis, sendo inválidas quaisquer normas de autoanistia.2
Na fixação dos parâmetros da condenação, o Tribunal seguiu a orientação da ONU, determinada em seu Relatório da Terceira Comissão, de 19 de abril de 2005, que adota os princípios e diretrizes básicas sobre o direito das vítimas de graves violações das normas internacionais de direitos humanos. O direito à reparação integral é composto não só pelo pagamento de indenização, como também pela verificação dos fatos e divulgação da verdade; pelo direito de buscar os parentes desaparecidos, inclusive crianças sequestradas; localizar os despojos das pessoas mortas, identificá-las e enterrá-las; e assim também com o restabelecimento da dignidade das vítimas, com pedidos oficiais de perdão, além da obrigatoriedade de prestar homenagens e corrigir a história oficial, especialmente por meio de programas de educação básica. Dentro da reparação econômica individual foi incluída uma parcela de indenização pela perda do direito de traçar livremente seu projeto de vida. Declarou-se responsabilidade do Estado de El Salvador a reabilitação integral das comunidades e povos devastados pelos massacres examinados, dotando-os de serviços básicos. Tudo com a finalidade de garantir que não se repitam os mesmos fatos, razão pela qual esses programas devem ser estendidos às Forças Armadas e Academia de Polícia.
A aquisição, pelo Estado, dos terrenos em que ocorreram os massacres e onde ainda jazem despojos não identificados de vítimas, para que se tornem locais sacros, foi outra medida apontada como obrigatória. Da mesma forma, colocou-se a necessidade da criação da Fundação para a Verdade, com a participação da sociedade civil, para a retomada das investigações e punição dos culpados pelas atrocidades vividas nos anos de repressão e guerra.
Porém, o Tribunal Internacional de Justiça Restaurativa para El Salvador reconheceu estar provido “apenas” de força moral. Claro, é esse o mesmo elemento que fortalece as iniciativas destinadas à proteção e promoção dos direitos humanos, desde a Declaração Universal até visitas de relatores internacionais e missões de observação. Isso não é fraqueza, constitui, sim, a sua força. Para quem quiser sentir a emoção dos relatos das testemunhas, que tiveram papel central nas sessões do Tribunal, recomendo a leitura integral da sentença.3 O Tribunal atuou fundado nos princípios de solidariedade, no direito à verdade e na história das vítimas, e um dos seus objetivos foi dar visibilidade a essa história. Realizado na antevéspera de um novo governo, as orientações nele traçadas servirão de parâmetro sobre como proceder com respeito às vítimas de graves violações de direitos humanos, de acordo com os princípios internacionais vigentes e aceitos pelo patamar atual da nossa civilização.
E no Brasil…
É inevitável comparar a situação descrita em El Salvador com a do Brasil, em aspectos como o tratamento dado às vítimas e aos agentes da repressão. Aqui, diferente de lá, houve reparação econômica, várias tentativas de contar a história como ela se passou (o projeto Brasil Nunca Mais, os sucessivos dossiês de mortos e desaparecidos políticos, o livro O direito à memória e à verdade, o trabalho da Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos e o da Comissão de Anistia). Mas, a resistência de vários setores do Estado, principalmente das Forças Armadas, em revelar as informações de que dispõem e a suposta destruição de arquivos oficiais, sem nenhuma punição para quem assim procedeu, faz crescer a necessidade de uma Comissão da Verdade e da Justiça que apure a história como ela aconteceu, com direito de acesso a todas as informações, autonomia de recursos e capacidade de convocação de testemunhas e agentes da repressão.
O Exército brasileiro prepara sua própria missão ao Araguaia, para tentar ali resgatar os corpos dos desaparecidos no conflito após prisões, torturas ou confrontos, por ação dos próprios militares. Dessa forma, procede sem qualquer participação dos familiares das vítimas ou consulta à Comissão Especial da Lei 9.140/95 ou à Secretaria Especial de Direitos Humanos, que já haviam realizado missões anteriores na área sem os mesmos recursos. De sua parte, o Supremo Tribunal Federal tem sob análise o caso de um coronel uruguaio refugiado no Brasil e cuja extradição é pedida pelos governos da Argentina e do Uruguai. O militar é acusado de sequestro, homicídio e desaparecimento forçado de opositores durante o regime militar uruguaio. Também pende de decisão no STF entender se a lei de anistia de 1979 beneficiou ou não torturadores. Essa deliberação gerará efeitos, mesmo sem considerar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, à vista dos crimes permanentes praticados, como sequestros e outros. Na situação de El Salvador, sua própria Suprema Corte limitou a lei de auto-anistia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu-a como inexistente. Penso que o Brasil faria bem em prestar mais atenção à forma como lida com seu passado, mirando-se nos exemplos internacionais e na normativa e na jurisprudência de órgãos que ajudou a constituir.
*Belisário dos Santos Jr. é advogado; secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, de 1995 a 2000; membro da Comissão Internacional de Juristas e integrante da Comissão Especial do Estado Brasileiro para Mortos e Desaparecidos Políticos.