A lei do “sempre menos”
Não mudamos uma política que está perdendo. Nem a derrota nas eleições departamentais, nem a ascensão da extrema direita, nem o crescimento do emprego acalmam os ardores liberais do presidente François Hollande e de seu primeiro-ministro, Manuel Valls. Prova maior: o projeto de lei do ministro da Economia, E. MacronMartine Bulard
Cópias do código civil em protesto contra lei Macron, em Paris
m sequer um dia de respiro para a Grécia à beira da asfixia e dois anos de prazo para a França, que já tinha obtido duas prorrogações na aplicação das normas de Bruxelas. Esse é o veredito da Comissão Europeia, que parece se mostrar, mais uma vez, firme com os fracos e frouxa com os fortes. Mas as aparências enganam. Ainda que os níveis de endividamento e austeridade não se comparem e as “exigências” dos tecnocratas de Bruxelas não tenham a mesma amplitude, a chantagem é idêntica: é preciso suprimir tudo o que for obstáculo para o enriquecimento dos mais ricos e para o controle dos acionistas sobre as empresas. É inclusive o que poderia ter levado os dirigentes que se dizem de esquerda, Alexis Tsipras e François Hollande, a se apoiar para afrouxar o cinto, como esperava o primeiro. Qual o quê!
Paris escolheu ganhar a indulgência de Bruxelas, dando novas garantias. O projeto de lei “Pelo crescimento, a atividade e a igualdade das oportunidades econômicas”, concebido pelo ministro da Economia e das Finanças, Emmanuel Macron, foi feito sob medida em vista desse único objetivo. Em tramitação no Parlamento francês até o fechamento desta edição (28 de maio), o projeto trata de tudo: liberalização das linhas de ônibus, aumento do trabalho aos domingos e de noite, limitação do papel dos prud’hommes[tribunais compostos por quatro juízes, que não saíram da escola de magistratura e são eleitos meio a meio por trabalhadores e empregadores – N.T.], enfraquecimento do Código do Trabalho, desregulamentação da profissão dos tabeliões, privatização da indústria de armamentos e dos aeroportos, flexibilização das normas ambientais…
Esse amontoado de itens deveria dizer respeito aos ministérios do Trabalho, da Justiça, dos Transportes, da Habitação, da Ecologia, entre outros, mas ficou do começo ao fim nas mãos de Macron – para reafirmar o poder que o novo queridinho do presidente da República tem sobre todo o resto do governo e a força da economia sobre qualquer outra consideração.
Em todo caso, o projeto suscitou entusiasmo do outro lado do Reno. “É uma boa coisa que essa lei tenha sido adotada […] Prova de uma boa capacidade de ação” do governo francês, clamou a chanceler alemã Angela Merkel.1 Mesma satisfação do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker,2 no microfone da rádio Europe 1: “É uma iniciativa que convém festejar”. E acrescentou, como uma ordem: “Eu gostaria que o esforço em matéria de reformas estruturais fosse mais longe”. Já Pierre Moscovici, que presidia as decisões orçamentárias da França um ano atrás, saudou o “passo na boa direção” para imediatamente depois fustigar a falta de ambição reformadora do governo e ameaçar com “a possibilidade de sanções”.3 No baile dos hipócritas, o ex-ministro é o rei da valsa.
Membro de um governo socialista, Macron gosta de repetir que sua lei ataca a “renda” dos tabeliões e farmacêuticos, notórios eleitores de direita e fáceis de acusar, mesmo que alguns, principalmente no campo, não correspondam a essa imagem. Mais vale apontar essas categorias do que a “renda” dos acionistas, que permanece no mais alto nível desde a crise. Seria, no entanto, injusto não reconhecer uma tentativa de luta contra fraudes e alguns progressos: melhor proteção dos locatários com baixa renda e uma pessoa de mais de 75 anos sob sua responsabilidade, possibilidade de fazer o exame das leis de trânsito nos locais dos colégios (o que deve diminuir, um pouco, a espera), exibição obrigatória dos níveis de aprovação no exame de carta de motorista para as autoescolas e aumento salarial de 30% das horas trabalhadas aos domingos nos comércios de alimentos com mais de 400 metros quadrados. Algumas medidas esparsas em um oceano de recuos sociais.
Ainda que o projeto pareça um balaio de gato, não se pode dizer que ele não apresenta uma grande coerência ideológica, que podemos resumir em uma fórmula: “sempre menos”. Menos Estado, menos proteção social, menos direitos sindicais, menos regras para as empresas, menos controle público. É impossível detalhar aqui todas as medidas. Reteremos alguns exemplos significativos, reagrupando-os em cinco categorias: o tempo de trabalho, os direitos sociais e sindicais, as privatizações, as desregulamentações e a centralização tecnocrática.
1. Menos direitos coletivos, mais acordos individuais
Pela primeira vez desde 1806, um empregador e um assalariado poderão assinar uma convenção amigável dentro do Código Civil, sem referência ao do trabalho. No entanto, este último, por mais imperfeito que seja, limita a arbitrariedade dos patrões e o desequilíbrio das forças entre um empregador que “oferece” um emprego e um empregado que precisa ganhar a vida.
Foi necessária a vigilância do inspetor do trabalho Gérard Filoche para detectar o truque de mágica de Macron.4 Formalmente, o ministro se contentou em suprimir um pequeno parágrafo no artigo 2.064 do Código Civil. Mas essa simples canetada muda tudo. O parágrafo excluído determinava: “Nenhuma convenção pode ser concluída com o objetivo de resolver as diferenças que surjam por ocasião de qualquer contrato de trabalho submetido às disposições do Código do Trabalho entre os empregadores, ou seus representantes, e os assalariados que eles empregam”. Com o projeto de lei, esse obstáculo é retirado. Basta que um empregador que deseje, por exemplo, reduzir o pagamento das horas extras assine uma convenção com um trabalhador “voluntário” para que isso se aplique sem possibilidade de recurso.
Dessa forma, encaminhamo-nos para uma justiça ao estilo norte-americano, na qual nenhum código específico do trabalho se aplica em nível nacional e as relações patrão-empregado são avaliadas de acordo com o procedimento civil. Os conflitos são regulados em 95% dos casos entre advogados, antes do processo. Nem é preciso ser mal-intencionado para imaginar a disparidade de meios entre empregador e assalariados. Na França, são os juízes prud’hommes (cujo acesso é gratuito) que examinam os casos.
Logicamente, a Lei Macron se ocupa de ir engolindo seus poderes. É verdade que o texto traz um status protetor ao “defensor sindical”, aquele que acompanha o trabalhador. Mas ele impõe aos conselheiros “obrigações” reforçadas – como “se abster de qualquer ação ou comportamento público incompatível com sua função” – e sanções pesadas.5
Em nome da diminuição dos prazos de julgamento, a lei facilita o recurso às sessões em formação restrita (um juiz trabalhador e um empregador, em vez de dois de cada). Trata-se de um primeiro passo em direção a uma justiça mais expeditiva, mesmo que menos justa. Para enfrentar os prazos, que são efetivamente insuportáveis (11,9 meses em média, com picos de dois anos, até mais), seria melhor aumentar os meios dos conselhos.
Não apenas o governo rejeitou essa possibilidade, como também a eleição de 15 mil conselheiros prud’hommesfoi suspensa. Ela deveria ter acontecido em dezembro de 2013 se Hollande não a tivesse suprimido. Como explicação, foi invocada a grande abstenção (74% dos trabalhadores e 68% dos empregadores em 2008). Nesse ritmo, logo poderemos suprimir as eleições legislativas parciais…: a do departamento de Doubs, em 1º de fevereiro, teve uma abstenção de 61%. O argumento já tinha sido mencionado para suprimir a eleição para os conselhos de administração da segurança social depois de 1983. Essas votações sociais, no entanto, eram as únicas em que todos os trabalhadores e desempregados – franceses e imigrantes – tinham direito de voto.
O enfraquecimento da democracia social é acompanhado por uma redução das sanções para os empregadores que violam a lei. Agora uma lista de condenações tabeladas (“uma referência”) será estabelecida. Macron gostaria que ela fosse obrigatória. Ela é apenas indicativa. Mas, como os prazos dos julgamentos diminuíram, é provável que ela se instale nos costumes dos tribunais. O patrão saberá com antecedência quanto vai lhe custar desobedecer às leis sociais… Se as sanções forem inferiores ao lucro esperado, vai acontecer exatamente o que ocorre atualmente com as municipalidades: elas preferem pagar as multas a construir conjuntos habitacionais. Extremamente simbólica, a pena de prisão prevista (nunca aplicada) em caso de entrave às missões dos representantes dos funcionários foi excluída. Ela foi substituída por uma multa de no máximo 7,5 mil euros. Sempre o mesmo princípio: quem tem dinheiro pode se emancipar da lei.
Outras medidas foram instauradas para reduzir as obrigações patronais em caso de supressão de empregos. Os inspetores do trabalho não vão mais verificar se o empregador consultou os eleitos dos funcionários para as demissões de dois a nove trabalhadores; as empresas que se declararem em dificuldades serão beneficiadas com procedimentos simplificados para demitir: em um grupo, bastará que a empresa-mãe organize a insolubilidade de sua filial para se livrar (ou quase) de qualquer obrigação; em caso de “plano social”, a obrigação de reclassificação se limitará apenas ao nível da empresa, e não mais à escala do grupo.
Em seu desejo de retirar até os menores obstáculos para as decisões patronais, Macron chegou a elaborar este artigo kafkiano: o julgamento de um tribunal administrativo que tenha recusado uma demissão imotivada “não modifica a validade da demissão [e] não abre a possibilidade de uma indenização por parte do empregador”. O trabalhador injustamente colocado para fora não será reintegrado nem indenizado!
Quanto aos trabalhadores terceirizados de outros países,6 o escândalo está longe de acabar. Claro, o inspetor do trabalho mantém o direito de controlar as empresas recorrentes, de constatar eventuais faltas (salário inferior ao mínimo, ausência de descanso semanal, ultrapassagem da duração diária de trabalho etc.). Para qualquer sanção, porém, ele deverá se contentar em “intimar por escrito o empregador a interromper essa situação em um prazo fixado por decreto pelo Conselho de Estado”. O suficiente para fazer salivar os mercadores de mão de obra…
Uma filosofia impregna essas mudanças: mais vale um enfrentamento patrões-empregados do que acordos coletivos; mais valem decisões que venham de cima do que a democracia social; mais vale o Código Civil do que o direito trabalhista… Desde a Libertação, nenhum governo até hoje tinha injetado tantas poções liberais no corpo social.
2. Trabalhar mais sem ganhar mais, inclusive ganhando menos
Não menos do que trinta novas disposições sobre o trabalho serão adotadas. O projeto de lei cria “zonas turísticas internacionais”, onde as lojas poderão abrir todos os domingos e todos os dias até a meia-noite. Mesmo regime para os comércios instalados “nas empresas das grandes estações”. Sinal do autoritarismo ambiente: nenhum prefeito pode se opor a isso, apenas o governo pode decidir a respeito. Ninguém hoje é capaz de dizer quantos espaços serão então abertos, ao lado dos cerca de quarenta atuais.
O ministro promete criação de empregos (até 30 mil), sem apresentar nenhuma prova. E com razão. A maioria dos estudos demonstra o contrário.7 A razão é muito simples: o que é gasto hoje não pode ser gasto amanhã. Alguns economistas antecipam até mesmo o desaparecimento acelerado dos pequenos comércios.
Quanto ao “turismo chinês”, que escolheria Londres em vez de Paris por não poder comprar perfume aos domingos nas Galerias Lafayette, como repete insistentemente Laurent Fabius, ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento Internacional, é uma fantasia. Aconselhamos o ministro a ler os estudos de seus próprios serviços. Ele aprenderia neles que a França é o destino mais importante para os turistas chineses na Europa e que seu número duplicou entre 2009 e 2013.8 A organização do comércio não parece ter incomodado muito.
A essas aberturas permanentes nas zonas reservadas se acrescentam os doze domingos ao ano a critério dos prefeitos e delegados (contra cinco anteriormente). Atualmente, cerca de três assalariados em dez (29%) trabalham aos domingos (ocasional ou regularmente) contra dois a cada dez em 1990. À parte a vontade de impor a ideologia do “consumo exagerado” em um país que, no entanto, sofre cruelmente com a falta de poder de compra, nada justifica tal questionamento do repouso dominical.
Macron garante que apenas os “trabalhadores voluntários” seriam solicitados. Quem pode acreditar numa história dessas? Nenhum trabalhador pode resistir a uma solicitação insistente de seu patrão. Apenas a pressão do poder de compra é suficiente para convencer os mais reticentes, já que o comércio e a grande distribuição oferecem salários iniciais muito baixos. Nesse setor, metade dos trabalhadores em período integral (frequentemente com horários irregulares) ganha menos de 1.387 euros líquidos por mês (contra 1.730 euros para a metade dos trabalhadores em geral). Muitos (um quarto) são obrigados a aceitar um trabalho de meio período, às vezes menos, principalmente as mulheres, que formam os grandes contingentes de mão de obra.
A esperança de obter mais horas tem o risco, no entanto, de se chocar contra a realidade. Com efeito, a lei não prevê nenhuma contrapartida. Ela se remete a um “acordo coletivo [ou] territorial” cujos contornos permanecem vagos ou à “decisão unilateral do empregador” depois de uma consulta aos trabalhadores. Até o momento nas zonas existentes, na ausência do acordo, o empregador devia aplicar o Código do Trabalho e dobrar a remuneração. Um caso, é verdade, que se tornou minoritário, de tanto que os acordos mútuos ou no nível da empresa proliferaram. Amanhã a regra não irá nem sequer existir: nenhuma referência ao Código é explícita no projeto de lei.9 Em um contexto de chantagem no emprego, o menos social dos casos corre o risco de se tornar a regra.
Ocorre o mesmo para o trabalho noturno, que se tornou, graças a Macron, “trabalho de final do dia” (das 21 horas à meia-noite). Apenas um acordo entre patrão e empregados, nas mesmas condições do trabalho aos domingos, fixará as “contrapartidas para compensar os encargos induzidos pelas despesas de vigilância”. É possível ser mais impreciso?
Por sabe-se lá qual milagre, as horas trabalhadas nos comércios de alimentos de mais de 400 metros quadrados escaparam à imprecisão reinante: elas terão um aumento de 30%. É melhor do que a convenção coletiva, que prevê um aumento de 20% quando o trabalho aos domingos é habitual, mas claramente abaixo dos 100% previstos quando é ocasional.
Não apenas as condições de vida dos trabalhadores vão se degradar, como o patronato também terá conseguido tirar o trabalho de domingo do sistema de derrogações para instalá-lo como norma.
3. Joias de família à venda
Não se diz mais “privatização”, mas “passar para o setor privado”, ou ainda “operações sobre o capital das empresas de participação pública”. É incontestavelmente mais fino…
Em princípio, o Parlamento deve discutir as modalidades de venda das empresas públicas. Macron levantou uma lista de empresas a serem privatizadas e reclamou, se podemos dizer assim, plenos poderes. Assim, “a maioria do capital da empresa Groupement industriel des armements terrestres [Grupo industrial dos armamentos terrestres] (GIAT) e suas filiais” vai passar para o setor privado sem negociação. Fabricar e vender armas (a França ocupa o terceiro lugar mundial no setor) não é algo agradável. Mas, enquanto esperamos o desarmamento mundial, Paris se priva de um instrumento de soberania e de política industrial (o que devemos fabricar?), de diplomacia (a quem vendemos as armas?), de recursos (o grupo vive de encomendas públicas) e de empregos. Já a venda em andamento de uma de suas filiais, a Nexter, líder nos materiais de combate, para a empresa alemã Krauss-Maffei Wegmann (KMW) suscita debates entre Berlim e Paris sobre o destino das futuras exportações.10
Na lista de Macron aparece também a venda dos aeroportos de Lyon e da Côte d’Azur (Nice), cuja “transferência para o setor privado da maioria do capital” foi autorizada. Assim, o patrimônio do Estado desaparece a olhos vistos: em 2013, a equipe de Hollande vendeu uma parte do capital das empresas EADS (3,7%), Safran (7,8%) e Aeroportos de Paris (9,5%); em 2014, GDF-Suez (3,1%) e Orange (1,9%). Isso permitiu acumular mais de 5 bilhões de euros. Sem esquecer a venda da Alstom para a General Electric.
Outra inovação do ministro: a autorização dada aos “centros hospitalares universitários [CHU] para se abrir para participações e criar filiais”. Empresas privadas poderão “valorizar” os frutos das pesquisas públicas. Mais original: eles poderão instalar estabelecimentos nas ricas capitais do estrangeiro (como o Museu do Louvre em Abu Dhabi – Emirados Árabes Unidos), onde os professores e os médicos mais renomados poderão dar consultas ou operar alguns dias por mês. A cereja do bolo: a criação de empresas intermediárias para trazer para os CHU de grande renome os doentes afortunados, assim como no hospital Ambroise Paré, em Paris, que, no ano passado, privatizou todo um andar para acolher um emir do Golfo. Os especialistas chamam isso de “turismo médico”. O comum dos mortais, por sua vez, deverá esperar que esses turistas diferenciados sejam tratados ou que o especialista volte de seu equipamento no estrangeiro para poder obter algum cuidado.
Nesse mesmo embalo, o projeto de lei ratifica a decisão de 20 de agosto de 2014 que decreta que “as sociedades anônimas nas quais o Estado detém uma participação estão submetidas ao Código do Comércio”. Como elas não dependem mais da lei de democratização do setor, o número de representantes assalariados nos conselhos de administração é reduzido. Como disse o ministro: “É preciso dar espaço suficiente para os representantes do Estado e para os administradores independentes”.11 O papel dos administradores assalariados – que têm pelo menos o mérito de impedir a entrada dos gestionários – é marginalizado, enquanto cresce o da Agência de Participações do Estado, que por sua vez é dirigida por Régis Turini, ex-responsável pelas fusões-aquisições da Vivendi, e por Astrid Milsan, ex-responsável pelas fusões-aquisições do HSBC… A paridade homem/mulher é respeitada, mas, do ponto de vista da origem social, a diversidade é menor…
Enquanto isso, para garantir que a companhia ferroviária SNCF não saia da linha, o projeto quer gravar a ferro e fogo as condições nas quais ela pode investir para desenvolver ou modernizar sua infraestrutura. Nenhum critério de utilidade nem de serviço ao público. O investimento dependerá apenas da relação “endividamento/margem operacional”, em outras palavras, do lucro esperado. Durante esse tempo, as linhas de ônibus poderão se desenvolver em grande escala, chegando até a entrar em concorrência com as ferrovias (e agravar a poluição).
4. Desregulamentação em todos os níveis
Impossível levantar uma lista de todas as desregulamentações inventadas. Além do transporte, os comentaristas falaram muito dos advogados e dos tabeliões, cujas condições de exercício são liberalizadas. Menos popularizada, a flexibilização das normas para a construção, principalmente nas zonas turísticas. Com o título de “facilitar os projetos”, o projeto prevê também toda uma série de relaxamentos dos controles para a proteção do meio ambiente e de derrogações para o Código de Prevenção de Riscos, para a construção de certas habitações.
No capítulo dos presentes de todo tipo, o projeto de lei Macron prevê uma redução da fiscalização e das cotizações sobre a distribuição gratuita de ações que beneficia os altos funcionários. Esse cheque para os ricos deve subir para 300 milhões de euros num ano cheio, segundo os serviços de Bercy, e para 900 milhões de euros, segundo a maioria dos especialistas. Acrescentemos uma redução das retiradas no Plano de Previdência Coletiva (Perco), espécie de fundo de aposentadoria privada que não decolou bem. O governo quer lhe dar um empurrãozinho financeiro e… vai privatizá-lo para preencher o buraco ligado às menores entradas fiscais.
5. A democracia pisoteada
A partir de agora, o recurso sistemático ao governo por decreto é endossado, desprezando os direitos do Parlamento. Isso aconteceu no caso das privatizações. Na área ambiental, o projeto autoriza o governo a “ter o poder de decisão sobre todas as medidas que dizem respeito à lei” para “acelerar a instrução e a decisão relativas aos projetos de construção” e reduzir “os prazos de entrega das decisões tomadas”… O ministro garante que isso não vai “atentar contra os princípios fundamentais do Código do Meio Ambiente”. Mas quem pode garantir, a partir do momento em que os eleitos são excluídos?
A tentação autoritária é também clara na área do direito do trabalho. Assim, o governo “está autorizado a decretar […] as medidas que se referem à lei e que modificam o Código de Processo Penal, o Código Rural e da Pesca Marítima, o Código dos Transportes e o Código do Trabalho”. E enumera os objetivos, entre os quais: “coordenar os modos de sanção em matéria de saúde e de segurança no trabalho, e revisar a escala das penas”. À vista de suas convicções e de seus atos, há pouca esperança de que Macron busque maior rigor. Outro engajamento: “revogar as disposições que tenham se tornado sem objeto e garantir a coerência redacional no Código do Trabalho, e entre este e os outros códigos”. A harmonização em andamento com o Código de Processo Civil deixa planar a dúvida sobre a “coerência”.
No total, o governo obteve a possibilidade de legislar 23 vezes por decreto, sobre assuntos que estão longe de ser pouco importantes. Com algumas exceções, essa negação da democracia foi aceita pelos deputados socialistas, cuja maioria oscila entre seguidores e “mudos” [muets du sérail, no original: assim eram chamados os deputados no Segundo Império francês, eleitos para aprovar as decisões do imperador – N.T.].
O projeto de lei está sendo analisado no Senado que, desde as eleições de final de 2014, se situa à direita, então, é pouco provável que as mudanças caminhem no sentido do progresso social. O presidente do Senado, Gérard Larcher, preveniu que lutaria para tornar “a lei mais coerente” (ele também): recuo dos limites sociais; nova flexibilização da lei sobre as 35 horas semanais de trabalho; questionamento da Lei Hamon sobre a informação dos trabalhadores em caso de venda de uma empresa…
O ministro das Finanças se disse aberto a qualquer modificação. Para completar, Bruxelas já está pedindo mais. Comentando o projeto de lei Macron quando de sua audição no Senado, o vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, não escondeu: “Esse projeto é bem-visto pela Comissão […] O trabalho aos domingos, a mobilidade, a reforma dos prud’hommesou das profissões jurídicas regulamentadas: todos esses assuntos são importantes, mas isso é apenas um começo: existem duzentas profissões regulamentadas na França”.12 Cabe ao governo francês enfrentar essa missão. Ele vai fazê-lo bem, com ainda mais vigor porque isso não se choca francamente contra suas convicções profundas. Valls viajou para Pequim para “gabar-se da França pró-business”, que “reforma o mercado do trabalho e dá mais liberdade para sua economia” (30 jan. 2015). Em Las Vegas, diante de empresários norte-americanos, Macron se comprometeu que “as empresas [poderão] contornar as regras de trabalho rígidas e negociar diretamente com os empregados”, como contou avidamente o Wall Street Journal(8 mar. 2015). Ao menos são promessas que serão mantidas.
Nessas condições, não devemos nos espantar se os franceses, de tanto sofrer, acabarem com birra das urnas socialistas, isso quando não se deixarem seduzir pela extrema direita: o Front National teve 25% das vozes no primeiro turno da eleição departamental de 22 de março de 2015 – na precedente, em 2011, ele totalizou 15,1% e, em 2008… 4,8%. A experiência prova que as posturas e os discursos moralizadores com emoção na voz agravam o caso. Mais valeria respeitar os compromissos feitos diante dos cidadãos. E, no caso dos deputados da esquerda governamental, utilizar suas prerrogativas para resistir e forjar solidariedades com outros eleitos (gregos, por exemplo).
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).