A língua galega gera desconforto no congresso espanhol

A votação sobre o pedido da Espanha para que o basco, o catalão e o galego fossem reconhecidos como línguas oficiais na União Europeia (UE) estava prevista para o dia 19 de setembro de 2023. Os países membros resolveram adiá-la. Ainda que não tenha agradado aos líderes independentistas das regiões autônomas, não houve veto, apenas uma prorrogação para mais conversas no bloco europeu. 

Na Galiza, nesse mesmo dia, 19 de setembro, houve muita comemoração, já que ocorrera a primeira fala no parlamento espanhol que não fosse em castelhano. As três línguas cooficiais basco, catalão e galego foram usadas pela primeira vez no plenário. Quando o deputado José Ramon Besteiro, do Partido Socialista (PSOE), iniciou suas falas em galego, 33 deputados do partido de extrema-direita espanhol VOX abandonaram o plenário. O Partido Popular (PP) e o VOX opõem-se ao uso de outras línguas além do castelhano, pois defendem esta ser a língua comum do Estado espanhol, ignorando as línguas cooficiais das Comunidades Autônomas.

Entretanto, essa comemoração é um assunto ainda controverso, na Galiza. No meu texto anterior aqui no Le Monde Diplomatique, “O que o Brasil pode ganhar com a oficialização da língua galega na União Europeia?”, fiz uma introdução sobre o galego para a realidade brasileira que não tem contato nem muito conhecimento sobre as questões da Galiza. Neste segundo texto, aprofundarei um pouco mais a discussão sobre esse embate linguístico.  

Reintegracionismo e autonomismo

A controvérsia dá-se por conta dos posicionamentos ideológicos em relação à língua da Galiza. O grupo que defende a reintegração da língua galega com o português é chamado de reintegracionista, logo, o galego e o português são variantes de uma mesma língua e não faria sentido separá-las institucionalmente. Há um outro grupo que não nega a origem comum do galego e português, porém, considera as duas línguas independentes; são chamados de autonomistas. Claro que, entre esses dois grupos, há opiniões “que ficam no meio do caminho”, visões com diferentes matizes. 

Assim, os reintegracionistas (que representam a menor parte da população galega) não ficaram tão contentes com a possível oficialização do galego como língua independente na União Europeia, além de alguns de seus representantes terem criticado o galego falado por seus deputados no parlamento europeu, alegando que suas falas estivessem mais próximas de um castrapo (forma pejorativa de se referir ao galego castelhanizado). Na outra ponta, os autonomistas e grupos moderados comemoraram a data.  

O galego é a origem da cultura galego-portuguesa, pois era a língua do Reino da Galiza, que, no Século IX, se estendia de Coimbra ao sul e até Navarra ao leste. A língua era falada por toda a extensão do reino galego.  

Mesmo com a independência do Reino de Portugal no século XII, a língua permaneceu a mesma nos dois lados do rio Minho (uma fronteira natural entre a Galiza e Portugal). Essa unidade foi política até o século XIII, com a proclamação da língua portuguesa como oficial do Reino português.  

Mesmo com a opressão do castelhano a partir do século XIII, a língua galega permaneceu sendo falada na Galiza. Nesses 8 séculos, o português desenvolveu-se livremente e o galego foi subjugado ao castelhano. Com isso, suas evoluções foram diferentes mesmo mantendo a unidade linguística. Este é o ponto defendido pelos reintegracionistas: ainda que a língua tenha variado, o galego e o português possuem a mesma estrutura linguística e alto nível de compreensão mútua. Esse argumento dos reintegracionistas é válido, pois é justificável filologicamente. A unidade linguística, de fato, mantém-se. A sintaxe é praticamente a mesma e o léxico não se perdeu muito, até porque o castelhano também é uma língua muito próxima do português.  

Portanto, o pilar linguístico se sustenta, o que não acontece com os pilares social e político. Em resumo, o poder político adotou esse distanciamento da língua portuguesa, dificultando até sua circulação na Galiza, transformando-a em língua estrangeira e de pouco contato. Sabe-se que existe o português, que é uma língua próxima, e só isso. Com efeito, perde-se o interesse em conhecê-la, aprendê-la e utilizá-la. Assim, como ocorre no Brasil em relação ao galego. Se não se conhece, não se fala sobre. 

Digo aprendê-la, porque, socialmente, a língua galega é ensinada com a ortografia castelhana e de maneira isolada da lusofonia. Esse afastamento do galego deixa-o subjugado às restrições espanholas, ocasionando a substituição linguística. A cada ano, mais falantes vão deixando de falar o galego para falarem o castelhano. Segundo os reintegracionistas, essa perda de falantes seria revertida na reintegração, aumentando o prestígio da língua e, consequentemente, de utentes. Eis a preocupação do grupo com a oficialidade da língua galega na UE: uma vez que a Europa reconheça o galego como diferente do português, isso poderá afastar ainda mais esse processo natural de reintegração. 

No entanto, é necessário haver língua para que o processo ocorra. A língua vem perdendo falantes porque foi duramente massacrada durante a ditadura franquista, sendo proibida, perseguida e humilhada frente ao castelhano. Há pessoas que ainda hoje não conseguem falar galego em público e não transmitiram a língua para seus filhos. Não basta forçar uma unificação do dia para a noite. Até porque essa unificação esbarraria em dois problemas: o galeguismo e Portugal. 

Portugal e o orgulho galego

A Galiza nunca teve uma língua para chamar de sua. Embora o galego fosse falado pela população, não havia o status de língua da região, pois o reino foi anexado ainda pela Coroa de Castela e a língua de governo sempre foi o castelhano. As primeiras gramáticas galegas surgiram apenas no século XIX, e mesmo assim, escritas na língua do opressor. A ortografia galega nos poemas do ressurgimento, no século XIX, tinha como base a castelhana porque era a conhecida pelos poetas, por isso acabou sendo usada como referência para as regras morfológicas atuais.  

No século XX, enfim, oficializou-se a língua galega. Foram 7 séculos depois do português ser oficializado em Portugal. Agora que a Galiza tem sua língua oficializada que começa a se desenvolver pouco a pouco com suas próprias pernas, um grupo decide integrá-la ao português, com seu sistema lusófono, e quiçá até adaptar o nome da língua. Os galegos querem ser galegos, não espanhóis, nem portugueses. Desse modo, fica compreensível a comemoração dos autonomistas ao ouvir a sua língua no parlamento. 

A questão de Portugal é alheia a isso tudo. Do mesmo modo que a Espanha criou narrativas para diminuir a importância histórica galega, Portugal também o fez, separando-se dela, criando a sua identidade no povo lusitano (um grupo pré-romano que vivia ao sul dos galaicos) e defendendo que a língua portuguesa não necessariamente teria uma origem comum com o galego e nem um desenvolvimento parecido. Dessa forma, dificilmente, Portugal mudaria o nome da língua ou aceitaria variações próprias do galego em seu sistema linguístico já estabelecido.  

O que o reintegracionismo almeja é a integração instantânea da língua primeira à outra, que se desenvolveu independentemente em outro lugar. Essa integração poderia ocorrer de maneira gradual, mas não de forma imposta, abrindo mão das variedades galegas de fala e escrita.   

A atual geração galega viu a língua proibida ganhar o status de oficial. Esse é um ponto muito sensível, pois é mais social do que linguístico. Falar de políticas linguísticas, de certo modo, é olhar tanto para a filologia como para as pessoas que falam essa língua; afinal, a língua primeira de um ser humano é o maior traço de sua identidade. Tirá-la é uma violência simbólica enorme. 

Quem quiser falar português na Galiza, que fale. Será bem compreendido e ajudará na manutenção da língua galega. Nesse período de transição para a integração (que pode durar décadas), o português pode ser uma terceira língua oficial na Galiza ou ter o seu uso constante por sua população. A imposição de uma outra norma (que já ocorre com o castelhano) é o que seria um problema. Poderia até gerar mais afastamento dos galegos.  

Projeção do galego é a sua salvação

O ponto mais importante agora é comemorar que a língua galega está ganhando espaço não só no parlamento espanhol como também no europeu. O governo galego de direita continua reproduzindo a opressão espanhola. Há um decreto de 20 de maio de 2010 em que o ensino de Matemática, Física e Química deve ser ministrado em língua castelhana nas escolas. É proibido ensinar essas disciplinas em galego até hoje. O galego ganhando espaço na Espanha e na Europa, ganha força também para romper essas imposições políticas e ideológicas.  

 As iniciativas, muitas vezes, não partem do governo galego para a recuperação da língua. São poucos políticos interessados nessa seara. A população, influenciada pela propaganda política, ainda vota na direita galega, como o PP, que defende interesses de Madrid, oprimindo o galego (o decreto de 2010 foi assinado por Alberto Núñez Feijóo, ex-presidente da Xunta da Galiza pelo PP). 

O próprio povo acaba, muitas vezes, não conhecendo iniciativas como as Escolas Semente – uma cooperativa sem fins lucrativos para defender os direitos linguísticos das crianças e da língua galega, que conta com escolas infantis e ensino primário (esta última em algumas unidades) pelas principais cidades da Galiza.  

A aproximação com o português é premente para a sobrevivência do galego, ele precisa fazer parte do dia a dia das pessoas da Galiza. Muito do léxico e das construções sintáticas do português favorecem ao fortalecimento da língua ao norte do Minho. Não é uma “canetada” que trará um prestígio instantâneo à língua. A norma é uma questão filológica; os falantes, uma questão de realidade.  

As diferenças entre o galego e o português que permanecem (muito mais na escrita do que na fala) não vão atrapalhar negociações entre a Galiza e os países lusófonos. A língua não é um impeditivo quando se tem a boa vontade de estabelecer laços comerciais. O que falta à Galiza é um governo de fato progressista para tirar os galegos e galegas das garras da opressão linguística e ideológica.  

Victor Hugo da Silva Vasconcellos é doutorando em estudos linguísticos pela Universidade da Coruña e também doutorando em letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Além de pesquisador, é professor particular de língua portuguesa e linguística.