A máquina de punir
A utopia europeia se transforma numa máquina de punirSerge Halimi
A utopia europeia se transforma numa máquina de punir. À medida que o funcionamento desta se aguça, instala-se o sentimento de que as elites intercambiáveis se aproveitam de cada crise para endurecer suas políticas de austeridade e impor sua quimera federal.1 Tal objetivo suscita a adesão dos conselhos de administração e das salas de redação. Mas, mesmo acrescentando a esse pequeno grupo os rentistas alemães, alguns nomes de fachada de Luxemburgo e a maioria dos dirigentes socialistas franceses, não se aumenta muito o peso popular do atual “projeto europeu”.
A União Europeia não para de afrontar os Estados que não tenham como preocupação prioritária reduzir seu déficit orçamentário, inclusive quando o desemprego aumenta. Como eles se submetem em geral sem reclamar, ela lhes impõe logo um programa de retificação que comporta objetivos numéricos específicos até nos décimos, juntamente com um calendário de execução. Por outro lado, quando um número crescente de pacientes europeus deve renunciar a cuidados médicos por falta de recursos, quando a mortalidade infantil aumenta e a malária reaparece, como na Grécia, os governos nacionais não precisam temer os comentários da Comissão de Bruxelas. Extremamente rigorosos quando se trata de déficits e endividamento, os “critérios de convergência” não existem em matéria de emprego, educação e saúde. No entanto, as coisas estão ligadas: amputar despesas públicas significa quase sempre reduzir nos hospitais o número de médicos e racionar o acesso à saúde.
Mais do que “Bruxelas”, saída habitual de todos os descontentamentos, duas forças políticas promoveram a metamorfose dos dogmas monetaristas em servidão voluntária. Há décadas, socialistas e liberais dividem o poder e os cargos no Parlamento Europeu, na Comissão e na maioria das capitais do Velho Continente.2 Ultraliberal e partidário da guerra do Iraque, José Manuel Barroso foi, inclusive, reeleito presidente da Comissão Europeia há cinco anos, a pedido unânime dos 27 chefes de Estado e de governo da União Europeia, incluindo os socialistas, mesmo todos eles reconhecendo então a mediocridade espantosa de seu balanço.
Rivalizam neste momento para suceder a ele um social-democrata alemão, Martin Schulz, e um democrata cristão de Luxemburgo, Jean-Claude Juncker. Um debate televisivo os “contrastou” no dia 9 de abril passado. Qual dos dois estima que “o rigor é necessário para reconquistar a confiança”? E qual replicou que “a disciplina orçamentária é inevitável”? Até o ponto em que o primeiro, para quem as “reformas” impiedosas de seu camarada Gerhard Schröder constituem “exatamente o modelo” a ser seguido, deixa escapar: “Eu não sei o que nos distingue”. Certamente não é a vontade de fechar a caserna econômica europeia.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).