A memória apagada da Alemanha Oriental
Ao buscar uma identidade nacional, os alemães passam por uma obsessão em recuperar o passado judeu e o Holocausto, ao mesmo tempo em que apagam com ferocidade o que existia ao leste do Muro de Berlim. Esse esquecimento proposital concerne tanto à política e à cultura quanto à sua infraestrutura industrial e científica
Em maio deste ano, o Parlamento alemão encerrou um concurso para escolher um monumento nacional que simbolizasse “a unidade e a liberdade”. A iniciativa foi um fracasso total: nenhuma das mais de 500 propostas apresentadas por artistas e arquitetos convenceu. “Essa dificuldade em encontrar um símbolo unificador é um problema histórico da Alemanha”, avalia Enzo Traverso, professor da Universidade Livre de Berlim. O historiador evoca “um grande país, de uma grande cultura, que teve um grande papel na história, mas que não tem mito positivo e sempre teve de se definir negativamente”. E lamenta: “Quando a Alemanha se definiu positivamente, ela o fez em um espaço supranacional. Encontramos essa busca de uma identidade que não seja etnocultural na noção de patriotismo constitucional1”.
Traverso se diz chocado pelo “contraste perceptível entre uma obsessão em recuperar o passado judeu alemão e uma vontade feroz de apagar a Alemanha Oriental (República Democrática Alemã – RDA)”. Ele acrescenta que essa clivagem na memória da sociedade alemã “exprime-se visualmente no coração de Berlim, em dois espaços: o Memorial do Holocausto – enorme, maciço, indicando que a Alemanha não quer esquecer o genocídio – e o imenso vazio do antigo Palácio da República da RDA”. De um lado, preenche-se um lapso de memória – a recusa do Holocausto. Do outro, cria-se outro, apagando ou simplesmente demolindo o que ocorreu após 1945.
Teria havido, nos 20 últimos anos, uma espécie de “Guerra Fria da memória”? Ou isso se inscreve em um movimento mais amplo e um costume, bem mais antigo, de deliberadamente “esquecer” épocas anteriores? Para a historiadora Régine Robin, há nesse país uma tradição de “damnatio memoriae”2, mas sua influência varia. “No momento em que a Alemanha ataca o Palácio da República, ela manda restaurar o estádio nazista dos Jogos Olímpicos para a Copa do Mundo de futebol. E isso parece não incomodar”, observa a autora canadense. “Os postes e candelabros criados por Speer, o arquiteto de Adolf Hitler3, continuam intactos, assim como a maioria dos edifícios nazistas não atingidos pelas bombas, enquanto os prédios construídos pela RDA, mesmo aqueles da Alexanderplatz, são demolidos sistematicamente. Há um processo de tornar ilegítima a RDA. O desejo é que esse seja um parêntese na história da Alemanha, uma vergonha semelhante à do Terceiro Reich. Hino, bandeira, emblemas, heróis, nomes de rua, edifícios, manuais escolares, cursos universitários, tudo deve desaparecer.”
Acabaremos nos perguntando por que o Muro de Berlim foi erguido, esquecendo que o povo que se rebelou há 20 anos sonhava com algo mais do que Coca-Cola e supermercados.
Para 17 milhões de alemães uma vida se desenrolou por trás do Muro. E isso não se apaga com um estalar de dedos, principalmente quando o que lhes foi apresentado como alternativa fracassa bem debaixo de seus olhos. “Ninguém aspira voltar à RDA, mas a maioria ainda tem, duas décadas mais tarde, uma avaliação positiva dela, como revelam pesquisas sobre a persistência da ‘nostalgia do Leste’”, afirma Renate Köcher, diretora do Instituto Allensbach. De fato, 63% desses avaliam que as diferenças o Leste e o Oeste são maiores que os pontos comuns4.
Os arquitetos já começam a protestar contra essa perda das lembranças palpáveis nos territórios da antiga República Democrática. É o caso de Philipp Oswald, diretor da Fundação Bauhaus de Dessau, que se insurgiu contra os projetos de reconstrução – em estilo medieval – do centro de Berlim, entre o Spree e a Alexanderplatz. O lugar abriga a famosa estátua de Karl Marx e Friedrich Engels, vestígio insuportável para alguns espíritos obtusos.
Louvação aos “vencedores”
Por ocasião do 60° aniversário da Constituição da República Federal da Alemanha (RFA), uma exposição apresentada de maio a junho deste ano no Martin Gropius Bau, museu de artes decorativas, foi qualificada por parte da imprensa especializada como “arte dos vencedores”5: qualquer criação pictórica ou escultural vinda da ex-RDA foi pura e simplesmente abandonada. A revisão atingiu o auge com a seleção das obras do pintor Wolfgang Mattheuer: foram expostas apenas criações posteriores a 1989. Com isso, os curadores deram a entender que ele só se tornou um “verdadeiro” artista após a queda do Muro, quando na verdade ele já o era muito antes disso. As 60 obras pretendiam ser uma ilustração do artigo 5.3 da Constituição, segundo o qual “a arte é livre”. A lição de moral estava dada: sob uma ditadura, não pode haver criação artística.
Para o escritor Christoph Hein, que declinou publicamente o convite para a vernissage, a exposição simboliza o estado real da “pseudounificação alemã”. Questionado sobre a dificuldade que os alemães têm para encontrar um símbolo de unidade, Christoph Hein inflama-se: “Símbolos de unidade há aos montes! Essa exposição é um. A pobreza na Alemanha é outro, magnífico! A divisão desigual de salários, empregos, aposentadorias – veja quantos símbolos estupendos!”
Poderíamos prolongar essa lista sem dificuldade, dando exemplos bem concretos. O novo filme de Thomas Heise, Material 6, reúne imagens rodadas do fim dos anos 1980 na RDA até meados de 2008 na Alemanha. Ele poderia se chamar O que resta. “O que resta ocupa minha cabeça. Essas imagens continuam em movimento. O material é inacabado. Ele é constituído do que guardei. Minha imagem.” É também uma tentativa de fazer o balanço desses últimos 20 anos. Uma maneira de dizer que a história não é feita apenas de um antes e um depois, mas comporta também um na frente e um atrás, altos e baixos, visível e oculto. Rica em documentos originais, essa obra não é construída como um documentário, acompanhado de comentário explicativo. Seu idealizador deixa as imagens se chocarem em uma montagem fragmentada. Cabe ao espectador ler as entre
linhas. Praticamente todos os trechos evocam momentos de fala direta, instantes esquecidos – por exemplo, as conversas entre prisioneiros e guardas a respeito de uma anistia, ou entre militantes do Partido Comunista da Alemanha Oriental e seus dirigentes.
Heise quer contestar “o que há de podre” na narrativa desses eventos. Ele lembra, por exemplo, que quando os manifestantes gritavam “nós somos um povo”, eles estavam se dirigindo não aos alemães ocidentais, como depois tentaram nos fazer crer, mas aos policiais que cercavam os protestos na RDA. “É essa realidade que se quer apagar, esse momento em que os cidadãos passaram a falar de si mesmos. Não querem que essa lembrança permaneça. Rememoramos a queda do Muro, mas não o fato de que um povo declarou-se soberano frente ao poder, nem como, depois disso, não houve reunificação, mas anexação, restabelecimento da ordem pela destruição das utopias. A República Federal não podia permitir a existência de um povo soberano em parte da Alemanha ou não teria sobrevivido. O Muro foi aberto para impedir que a revolução se realizasse.”
A ação de apagar não concerne apenas à política, à cultura, aos símbolos, mas a toda infraestrutura industrial, técnica e científica dessa parte da Alemanha. A cólera do economista Edgar Most ainda não passou: ele critica até hoje o chanceler Helmut Kohl por ter conscientemente tomado decisões com motivações eleitorais. “Fixar uma taxa de câmbio de 1 marco ocidental para 2 marcos orientais acima de 4 mil marcos era uma decisão economicamente absurda, que arruinou os fundamentos da economia nessa parte da Alemanha”.
Most ostenta orgulhosamente sua origem e seu forte sotaque da Turíngia. Ele acaba de publicar uma autobiografia intitulada Cinquenta anos a serviço do capital. “Mas em dois mundos diferentes”, esclarece. Most foi vice-presidente do Banco do Estado da RDA, antes de fundar o primeiro banco privado da Alemanha Oriental e acabar nos andares mais altos do Deutsche Bank, em Berlim. “No período da RDA, pratiquei uma política monetária e de crédito com dinheiro que pertencia ao Estado. No centro das decisões estavam, pela ordem, as seguintes questões: em que elas servem ao Estado, à sociedade? Elas são úteis às empresas, ao trabalho? E só em terceiro lugar: em que elas servem ao banco? Com o capital privado, há uma completa inversão de valores”. Embora pense que a RDA viveu acima de seus meios, o banqueiro protesta contra a ideia de que ela estava insolvente no fim dos anos 1980. A França, segundo ele, mostrava-se pronta a conceder crédito.
Christian Wegerdt ainda não escreveu sua autobiografia, mas deveria tentar. Engenheiro especializado em física dos materiais, ele nos narra sua transformação de dirigente de empresa socialista em “empreendedor” capitalista, território desconhecido para ele. Nós o encontramos em Dresden, na sede de sua empresa, a IMA Dresde, especializada na análise de materiais. Seus 160 funcionários, basicamente engenheiros, trabalham para clientes da aeronáutica (Airbus), indústria automobilística, ferroviária, eólica e médica. Mas o ambiente econômico da Saxônia não está dos mais favoráveis. A região, uma das industrializadas do país, com ênfase em exportação, sofreu duramente os golpes da crise.
A trajetória de nosso interlocutor começa com estudos no campo da metalurgia. Rapidamente ele se tornou diretor científico e técnico, e depois diretor de pesquisas, em um combinat (grande empresa estatal) da indústria mineira e siderúrgica, diretamente sob a tutela do Ministério da Economia. Na RDA, podia-se recusar ser vice-ministro uma vez, mas não duas. Wegerdt aprendeu isso na marra. Ele viu como uma sanção à sua transferência, no fim dos anos 1980, para um instituto científico e técnico de 900 pessoas, especializado em fenômenos de corrosão. Veio a queda do Muro. O que fazer? “Percorri toda a Alemanha e ninguém nos queria. A Treuhand7 foi categórica: ou privatização, ou liquidação, com data limite para 1992. Em quatro, decidimos recomprar a empresa.” E com sucesso.
A arrogância dos alemães ocidentais o marcou: “achavam que nós não sabíamos fazer contas nem comer com garfo e faca”. Para ele, o curto período em que a questão dos direitos cívicos esteve no centro dos debates “foi atropelado por decisões vindas do exterior, trazidas pela ideologia da concorrência, da corrida pela superação, em parte com uma mentalidade de ocupante, em parte com boas intenções, mas com um infinito de insolência e arrogância estúpida”.
Em 2001, numa conferência cujo manuscrito ele nos forneceu, o empresário achava “simplesmente imoral ver como, pouco a pouco, os rendimentos do capital tornam-se maiores que os do trabalho”.
Ajudado por seu filho, Elmar Faber instalou em Leipzig a editora Faber e Faber. Ele concluiu seus estudos em um período de esplendor, no qual espíritos tão brilhantes quanto Ernst Bloch e Hans Mayer, para citar só os mais conhecidos, lecionavam na Universidade de Leipzig. E não parece disposto a aceitar que se lhe seja retirada essa herança. Outrora Faber trabalhava na mais prestigiada editora da RDA, a Aufbau Verlag, de Bertold Brecht e de Thomas Mann, e teve que coordenar sua privatização. Faber narra detalhes desse processo: “Fui chamado à Treuhand. Faltava um papel em minha pasta. Na direção de pessoal, apresentaram-me um documento intitulado ‘Declaração’. Eu devia assinar o seguinte texto: ‘Declaro nunca ter trabalhado para a Stasi8’. Respondi que não ia assinar, mas que poderia fornecer uma declaração. Então assinei o seguinte texto: ‘Declaro nunca ter assinado nada para garantir minha posição, nem no antigo sistema, nem no novo.’ Isso foi de manhã, às 10h30. Às 13h30, fui colocado porta à fora.”
Faber conheceu momentos de cólera nesse período agitado que se seguiu à queda do Muro: “Não foi uma época poética. Toneladas de livros foram descartadas. Não apenas os dos melhores autores da RDA, mas também edições de Heinrich Mann, Leon Feuchtwanger, Arnold Zweig, Anna Seghers. Era preciso abrir espaço nas prateleiras para livros de culinária, auto-ajuda de todo gênero e guias turísticos”.O assassinato do primeiro dirigente da Treuhand Anstalt em 1991 marcou uma virada. Detlev Rohwedder pensava ser possível preservar uma parte do potencial industrial da antiga RDA, em particular a editora Aufbau Verlag. Faber continua: “Após a morte trágica de Detlev Rohwedder, assistimos ao triunfo da estupidez. Por
exemplo, um belo dia o chefe de pessoal da Treuhand concluiu de suas brilhantes meditações que nossa editora jamais tinha publicado nada além de Marx e Engels9. Eis o tipo de imbecilidade com o qual fomos confrontados.”
Segundo o editor de Leipzig, instalou-se um processo de “a-historicização”: “Quiseram que fosse esquecida a razão pela qual queríamos outra Alemanha.” Para ele, isso explicaria por que não surge nenhuma luz nos debates atuais, que reescrevem a história começando pelo fim. “Se os dirigentes tornam-se mais estúpidos que os dirigidos, chegamos à catástrofe”, conclui citando o italiano Antonio Gramsci.
O Deutsches Hygiene Museum de Dresden não é a priori o lugar onde se espera encontrar uma exposição sobre o trabalho. A noção de trabalho, aliás, não é fácil de precisar, sobretudo se considerarmos que ela contém, mas não recobre inteiramente a de emprego. Definindo por hipótese o trabalho como uma transformação humanamente motivada do mundo, a mostra abre novas pistas, deixando ao visitante uma extraordinária liberdade de criticar às proposições que lhe são feitas. Intitulada “Arbeit Sinn und Sorge”, relaciona o trabalho à noção de sentido (sinn) e de preocupação (sorge), que significa também cuidado,do modo como Bernard Stiegler utiliza a palavra no catálogo da exposição10.
No sorge alemão, a dimensão da preocupação, do medo e da inquietude introduz uma conotação mais negativa. Mas a dimensão do cuidado, ligada à ideia de atenção sobre si e sobre os outros, também está presente. “Para nós, era importante retomar no título da exposição uma dimensão positiva. A questão é a do objeto do cuidado. Qual a amplitude desse objeto? Uma dimensão estritamente individual, ou podemos ir além? Em que medida podemos desenvolver sentimentos por alguma coisa que transcenda a dimensão individual?”, explica Daniel Tyradellis, filósofo e curador da exposição.
O que aconteceu com o trabalho após a queda do Muro? No plano estatístico, a taxa de desemprego subiu de modo galopante, embora tenham se desenvolvido formas de trabalho parcial. Simultaneamente, o sentimento de satisfação no trabalho aumentava na parte oriental, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, os sofrimentos psíquicos intensificavam-se11. Para o sociólogo Wolfgang Engler, reitor da Escola Superior de Teatro Ernst Busch de Berlim, “isso só aparentemente é um paradoxo, se dissermos que no Oeste o trabalho precedia o salário, enquanto no Leste o salário precedia o trabalho”. Ele também acha que as pessoas “rejeitaram um sistema da RDA que consideravam que, disfarçado de pleno emprego, desprezava seu desejo de realizar alguma coisa”.
A algumas centenas de metros do museu, um prédio novinho em folha, inteiramente transparente, é o último lançamento da Volkswagen. Uma catedral à glória do Deus automóvel. Cada comprador de um modelo Phaetonpode assistir diretamente à montagem e o acabamento de seu próprio carro. No filme de apresentação, a Volkswagen exibe a ambição de igualar-se às construções barrocas de Dresden, e celebra o automóvel como uma obra de Richard Wagner! O lugar é apresentado como um espaço cultural, de exposição de pintura, desfiles de moda, seções de ópera. Mas operários continuam trabalhando ali. Ainda que possamos vê-los movendo-se na cadeia de montagem automatizada como se estivessem servindo o chá, o termo manufatura é abusivo.
Assim como a Porsche, Opel, Mercedes, a Volkswagen – da qual o Qatar acaba de comprar 17% –, faz parte dessas “utopias” ocidentais, particularmente alemãs, que se reduzem a pó. “A antiga Alemanha Federal sempre ligou de forma estreita democracia e progresso econômico em torno de grandes empresas. Pensava-se que isso seria eternamente indissociável”, analisa Engler. “O desafio econômico com o qual somos confrontados e o desaparecimento de alguns faróis da consciência coletiva colocam nossa democracia à prova.”
E ela resistirá? Essa inquietude sobre o futuro anima muitos de nossos interlocutores. Interrogado sobre o que mais faz falta quando pensa na desaparecida RDA, o escritor de Dresden Ingo Schulze declara: “É a evidência com a qual questionávamos o status quo. Nós nos definíamos através de nossa representação do devir. Quando hoje se fala em devir, é mais com o temor de uma deterioração de nossa situação atual. Temos de reaprender que podemos mudar as coisas12.”
*Bernard Umbrecht é jornalista.