A memória da democracia em coma: a disputa do tempo presente
Em 2018 a memória viva da democracia ficou nas cordas. Uma construção de sentidos que nunca terminou de decolar na democracia brasileira, desde 1988. Neste ano existiram dois eventos que colocam os sentidos da democracia e sua memória no precipício. O primeiro evento, o assassinato da lutadora pela democracia e seus valores, Marielle Franco. O segundo, a prisão arbitrária do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e com ele, a democracia ficou no cárcere. Neste pequeno artigo refletiremos a partir de dois conceitos, ditadura e democracia, o tempo presente e os sentidos da memória democrática num Brasil na beira do autoritarismo.
A estrada
A possibilidade de se instalar uma ditadura (ou autoritarismo) numa determinada sociedade está baseada na memória que essa comunidade tem sobre os eventos passados. Os sentidos do passado e sua memória se tornam objeto de lutas políticas e sociais. A memória não é o passado, senão a maneira como os sujeitos constroem um sentido do passado, um passado que se atualiza em seu enlace com o presente e também com um futuro desejado no ato de rememorar, esquecer e silenciar[1]. O passado já passou, é determinado, não pode mudar-se. O que muda é o sentido desse passado, sujeito a reinterpretações, ancoradas na intencionalidade e nas expectativas olhando o futuro.
Apesar dos enormes esforços dos familiares, vítimas, organizações e movimentos de direitos humanos, a memória sobre o passado recente ainda está em plena disputa. As últimas eleições mostraram que a memória sobre a ditadura ainda falta ser ressignificada, reconstruída, com valores democráticos e plurais.
No contexto atual, de radicalização do conservadorismo, pareceria que as fronteiras entre democracia e ditadura (ou autoritarismo) foram se desfazendo numa velocidade que nos tomou de surpresa. Mas longe está de ser surpresa. A memória da ditadura é um campo em disputa, e da mesma forma a democracia. E novos processos históricos, novas conjunturas e cenários sociais e políticos não podem deixar de produzir modificações nos marcos interpretativos para a compreensão da experiência passada e para construir expectativas. Neste sentido, o percurso de 2018 nos mostra quanto o novo contexto pode incidir e ressignificar ou aprofundar certo tipo de memória coletiva. Por um lado, as manifestações pró-ditadura indicam a ausência de imaginação democrática, por outro, fazem soar os alarmes de estarmos a passos agigantados atravessando a fronteira da democracia, ingressando num regime que na América Latina já conhecemos e rejeitamos.
Um exemplo, se por um lado o conceito de ditadura no Brasil pareceria ter significados bons e supostamente necessários como disciplina e ordem; pelo outro, o conceito de democracia pareceria ser um sistema que só traz problemas, aumentado a discórdia e a divisão social. Assim, a partir destes dois conceitos, entenderemos o pulso da memória presente. E quando pensamos o contexto presente, falamos das possibilidades que temos de repensar a memória do passado. Como um conto de Jorge Luis Borges, a memória tem todos os tempos, os que existiram, os que existirão e o que estamos vivendo. O encontro dos tempos. No Brasil esse encontro, na verdade, se trata de um desencontro construído.
A democracia na prisão
Numa democracia as eleições são necessárias, mas não suficientes. Num processo de exceção desde o golpe de 2016, se foi reconfigurando a relação Estado-Sociedade e os sentidos da democracia. Neste processo, a produção industrial de anomalias para encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desafiou a inteligência, mesmo dos mais céticos. Uma escolha seletiva e não estendida a outros candidatos na mesma situação, um sinal da arbitrariedade institucional. Mesmo assim, o governo fez de contas que as instituições funcionavam normalmente. Foram constantemente alterando as regras do jogo segundo a resistência que os setores progressistas conseguiram estabelecer. A única regra do jogo que se manteve neste processo foi a utilização do aparelho do Estado para obter um resultado aceitável para uma elite pequena e precária. E nesta trajetória, os três poderes do Estado foram coniventes e participantes ativos. Talvez o judiciário tenha seus méritos para levar o destaque, materializado no Supremo Tribunal Federal e na nomeação de Sergio Moro como super Ministro de Justiça e Segurança Pública.
As eleições de 2018 foram anômalas por vários motivos, pelas excepcionalidades, pelas mudanças de regras, pela ausência de debate, pelas tentativas institucionais do tribunal eleitoral para evitar que o candidato Haddad falasse que era o candidato escolhido por Lula, pelas declarações militares de tutela e pelos símbolos que foram trazidos à sociedade. Nas eleições, a preocupação com a estética democrática foi o único que ficou em pé. Mas seu conteúdo tinha evaporado fazia tempo. Talvez, Rodrigo Maia tenha sido mais direto sobre o tipo de não democracia existente: “Não há espaço orçamentário para atender a sociedade”[2]. Óbvio, numa democracia a sociedade não está no primeiro lugar de atenção.
Uma característica presente neste processo de reconfigurar os sentidos da memória da democracia foi a participação ativa do âmbito militar no cenário político, violentando os sentidos da constituição. Não foram poucos os militares na ativa (ou reserva) que declararam sobre as eleições. Mas a particularidade foi que se posicionaram como garantidores das eleições, mesmo ameaçando a democracia. O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, deixou claro que os militares não aceitavam a candidatura Lula: “O pior cenário é termos alguém sub judice, afrontando tanto a Constituição quanto a Lei da Ficha Limpa, tirando a legitimidade, dificultando a estabilidade e a governabilidade do futuro governo e dividindo ainda mais a sociedade brasileira. A Lei da Ficha Limpa se aplica a todos”[3]. Em setembro deste ano, o general Hamilton Mourão, e então candidato a vice-presidente de Bolsonaro, declarou em entrevista que, na hipótese de anarquia, pode haver ‘autogolpe’ do presidente com apoio das Forças Armadas[4]. Com o resultado das eleições conhecidos por todos, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Sérgio Etchegoyen indicou que os militares receberam com alívio a eleição de Bolsonaro[5]. Claro, o norte já tinha sido estabelecido anteriormente, portanto o resultado não foi uma surpresa. É só lembrar o início de abril deste ano, quando o general de exército da reserva Luiz Gonzaga Schroeder Lessa afirmou em entrevista que, se o Supremo Tribunal Federal deixar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva solto, e permitir que Lula se candidate e se eleja presidente, não restará outra alternativa além da intervenção militar: “Se acontecer tanta rasteira e mudança da lei, aí eu não tenho dúvida de que só restará o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem. Mas não creio que chegaremos lá.”[6]. Assim, a democracia perdia o voto como elemento decisivo para alcançar o poder e agora precisava fundamentalmente ser coincidente com os desejos de um setor da sociedade. Enfim, 2018 foi um longo atentado contra a democracia e sua memória viva, sintetizada no processo eleitoral estético e anômalo.
O assassinato dos valores democráticos
O assassinato da Marielle Franco sem lugar a dúvidas foi o mais lamentável evento do ano. Ela simbolizava o que melhor tem a democracia. Seu assassinato, no tempo presente, nos coloca ante o debate sobre quais são os sentidos da democracia. O que é aceitável? A violência do assassinato da Marielle e seus símbolos foi proporcional ao ódio à democracia de alguns setores da sociedade. Assim, existe no Brasil uma memória presente que a democracia não é boa o suficiente para recuperar uma suposta ordem que nunca existiu. Porque nunca se incorporou a totalidade de seus habitantes, pelo contrário, os marginalizou e os violentou. Em menos de 24hs do assassinato já existiam nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens histórias fraudadas sobre a Marielle, de sua memória. O segundo passo do assassinato, primeiro tiramos o corpo, depois seus símbolos. Neste processo, apesar da justiça ter agido cancelando diferentes sites e vídeos, a sociedade disputava sua memória viva[7]. A partir do movimento das mulheres, o mais importante existente atualmente, num mar de força e afeto, se foi construindo uma memória com valores democráticos sobre a Marielle. Sobre o Brasil. Porque que tipo de memória a gente constrói, fala da memória e de nós simultaneamente. Esse movimento coletivo, popular, nacional, foi um sopro de democracia num país que está órfão dela.
Em pleno processo de exaltação e adoração aos símbolos da ditadura, numa demonstração tanto de força, de inoperância e de conivência (nunca foi fiscalizada[8]), a intervenção federal no Rio de Janeiro exibia os resultados de seu acionar: aumento de violência, morte e impunidade[9], a impossibilidade de revelar a morte da vereadora e os demais corpos frios que as armas silenciaram. Neste processo de aceitação da impunidade pelo respeito à força da disciplina, violência e masculinidade, a naturalização da construção de uma memória negadora se foi consolidando. Talvez o evento mais simbólico e onde se encontram disputando os sentidos da ditadura e da democracia tenha ocorrido no Rio de Janeiro. Três candidatos quebraram a placa que homenageava a Marielle em praça pública, exaltados pela violência, destruindo os sentidos da democracia[10]. Eram candidatos, pessoas que precisam do outro para alcançar o poder. Nesse evento, a construção de um tipo da memória foi se consolidando. Existiram atos e manifestações a favor dos sentidos da democracia, em homenagem a Marielle. Mas a memória viva da violência e o medo eclipsaram os valores democráticos. E pareceria que o que resta da democracia está em coma, em palavras do ministro Raul Jungmann, existe um complô que tem impedido que se venha à tona os mandantes e os executores do assassinato da vereadora, existindo interesses que envolvem agentes públicos, milícias, políticos, entre outros poderosos[11]. Toda uma imagem do momento atual.
A memória em disputa
Neste processo, não foram poucas personalidades que tentaram borrar a fronteira dos sentidos da ditadura com a os valores democráticos, como se se tratasse de conceitos semelhantes e intercambiáveis. O presidente do STF, Diaz Toffoli, numa demonstração de fidelidade à falta de caráter, fez sua colaboração para confundir institucionalmente os sentidos da ditadura ao denominar o golpe de 1964 como movimento. Claro, a estrada já estava construída, é só lembrar, como vimos, algumas declarações emitidas por figuras do mundo militar. Na mesma linha da desonestidade, para o novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, o golpe militar de 31 de março de 1964 “é uma data para lembrar e comemorar”[12]. Com o mesmo espírito, o próximo comandante do exército, o general Edson Leal Pujol, avalia que o período da ditadura militar no Brasil é tratado com preconceito e desinformação. Salientando que o tempo vai limpar as diferenças de opinião[13].Para consolidar a estrada da confusão, do tipo de memória a ser alcançada, outorgando ao conceito ditadura novos sentidos, o presidente eleito declarou que o brasileiro “não sabe” o que é ditadura porque não houve ditadura no Brasil[14].
O interessante deste processo de construção da memória é que as personalidades que estão sendo indicadas para diferentes ministérios têm em comum sua luta contra o marxismo, ou seja, a real ditadura nas palavras deles. Uma característica que se apresenta em outros processos no plano internacional. É um passo fundamental para reconfigurar os sentidos da democracia, autoritarismo e ditadura. Mas simultaneamente ao acusar os militantes da esquerda, se erosiona os valores democráticos do respeito às ideias diferentes e do diverso. Um combo letal que aniquila a democracia e reinterpreta os sentidos do autoritarismo. O que eles vão fazer é ser rígidos e disciplinados, mas não ditadura. Para isso talvez tenham que passar por cima dos valores democráticos. Mas tudo isso não os torna em ditadores. Assim, a memória viva está sendo alterada em favor de valores contrários aos democráticos. E com esses movimentos se restringe as formas e possibilidades de repensar e construir uma memória do passado recente com valores democráticos. Como vamos pensar sobre a última ditadura, se no presente a entendemos como um passo firme para defender a democracia?
A sombra do horizonte
A prisão de Lula da Silva foi e é um ataque frontal ao sistema democrático, à representação popular, às eleições, aniquilando as regras de jogo. As formas da democracia, sua estética, ficaram na prisão com o ex-presidente. O assassinato de Marielle foi e continua sendo o esvaziamento dos sentidos da democracia, seu conteúdo, sua luta, a justiça social, a defesa de valores sem os quais nada tem sentido. Os dois eventos nos falam muito dos alcances reais da memória viva dos valores da democracia, e da disputa histórica que o conceito ditadura conseguiu consolidar num Brasil desmemoriado artificialmente.
Na disputa da construção da memória e dos seus símbolos hoje a democracia e a ditadura são conceitos que estão sendo distorcidos. No relato atual, a firmeza necessária para salvar a democracia faz da ditadura um momento inevitável, que só homens com firmeza podem levar pra frente. Nesta lógica perversa e desonesta, se abre espaço para uma compreensão distorcida e artificial dos significados da ditadura, que simultaneamente reduz os valores democráticos a detalhes que podem esperar. Neste tempo presente a democracia aparece reduzida, menor.
Existe uma constante na construção da memória no tempo presente. Os valores democráticos são defendidos atualmente de baixo para cima. Nas ruas, nos movimentos, nos partidos, em igrejas, nas mesas dos botecos e até em torcidas organizadas, entre outros. Pelo contrário, os valores autoritários, ditatoriais, são fomentados em geral de cima para baixo, utilizando a potência do aparelho do Estado para penetrar na sociedade. Mas as ruas não são deles. É nas ruas que a democracia vive. Mesmo que esteja em desenvolvimento uma arquitetura jurídica autoritária que criminaliza as ruas. Hoje a luta deve ser física não só virtual.
É o momento crucial para construir e defender uma memória coletiva com valores democráticos e que garantam direitos e oportunidades para o futuro. Estamos num processo contraditório, com velocidades múltiplas, de vozes divergentes e de eventos antagônicos. Não podemos abrir mão da democracia, e para isso precisamos lutar pela memória. E isso é uma atividade do presente. Talvez na luta estabelecida pelo debate sobre escola sem partido possamos enxergar diretamente o projeto do tipo de memória que está em disputa com um longo alcance.
Estamos anestesiados pela morte, pelo medo e pela violência, mas nossa humanidade está viva, e não podemos soltar o nosso humanismo e sua solidariedade. Eu sou o que o outro é. A memória que está sendo construída aniquila a diversidade, a solidariedade, tão presente no âmbito popular, tão ausente numa elite precária, racista e colonizada. O movimento autoritário é um processo internacional ocidental, xenófobo com características fascistas. A vida é luta, e a democracia e seus valores precisam ser defendidos todos os dias, em cada canto, em cada espaço, em cada país. Sem ela, a noite pode ser longa.
*Andrés del Río é doutor em Ciência Politica pelo IEAP-UERJ, e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense UFF
[1] del Rio, Andrés. O pulso da memória da Ditadura: o conflito presente. Justificando, carta capital, Brasil. Terça-feira, 26 de setembro de 2017. Disponível: https://bit.ly/2Qs2g5g
[2] Rodrigo Maia: “Não há espaço orçamentário para atender a sociedade”. Metrópolis, Brasil. 19 de novembro de 2018. Disponível: https://bit.ly/2AqWUxo
[3]CHEFE DO EXÉRCITO REVELA QUE MILITARES NÃO ACEITAM LULA CANDIDATO. Brasil 247, Brasil. 9 de setembro 2018. Disponível: https://bit.ly/2AqjUMV
[4]General Mourão admite que, na hipótese de anarquia, pode haver ‘autogolpe’ do presidente com apoio das Forças Armadas. G1, Brasil. 8 de setembro 2018. Disponível: https://glo.bo/2MXQnDl
[5]Militares recebem com alívio eleição de Bolsonaro. Terra, Brasil. 29 de out 2018. Disponível: https://bit.ly/2AtsjPB
[6]Supremo pode ser ‘indutor’ de violência, diz general da reserva. Estadão, Brasil. 3 de abril de 2018. Disponível: https://bit.ly/2TQ87jW
[7] Justiça manda YouTube retirar 16 vídeos que difamam memória de Marielle. Sexta-feira, 23 de março de 2018. Disponível: https://bit.ly/2zrSzKm
[8] Intervenção no Rio segue sem fiscalização do Congresso. DW, Brasil. 16 de nov 2018. Disponível: https://bit.ly/2KE1eOn
[9] Observatório da intervenção. Disponível: https://bit.ly/2LeVCcR
[10] Candidatos do partido de Bolsonaro quebram placa que homenageava Marielle no Rio. EM, Brasil. 3 de out 2018. Disponível: https://bit.ly/2LeVCcR
[11] Complô que impede esclarecimento de assassinato de Marielle Franco envolveria policiais, milicianos e políticos. O Globo, Brasil. 22 de nov 2018. Disponível: https://glo.bo/2TBxXIo
[12]Para novo ministro da Educação, golpe de 1964 deve ser comemorado. Exame, Brasil. 23 de nov 2018. Disponível: https://abr.ai/2RjMgzt
[13] Há preconceito na análise do período militar no Brasil, diz futuro comandante do Exército. Folha de São Paulo, Brasil. 23 de nov 2018. Disponível: https://bit.ly/2Qctz3F
[14] Bolsonaro: brasileiro “não sabe” o que é ditadura porque não houve ditadura no Brasil. Jornal do Brasil, Brasil. 19 de nov 2018. Disponível: https://bit.ly/2RnQSF6