A MP n. 746 no contexto de privatização da educação regional e global
É possível encontrar na MP n. 746/2016 semelhança com o projeto da ditadura empresarial-militar, notadamente no intento de formação profissional no ensino médio, na formação simplificada do magistério e na descaracterização das ciências sociais, naquele contexto ressignificadas como Educação Moral e Cívica
Aeducação é um direito humano fundamental, reafirmado em uma ampla gama de instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos, bem como nas legislações nacionais de todos os países da América Latina. Nessas normas, a responsabilidade do Estado de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos, entre eles a educação, é colocada de forma inequívoca.
O reconhecimento do Estado como responsável pelo direito à educação implica a garantia de sua universalização e gratuidade, assim como a garantia de seu acesso, disponibilidade e qualidade para todos e todas, de forma igualitária e sem discriminação, e conduz à centralidade do fortalecimento dos sistemas públicos de educação. Esse fortalecimento requer como condições inegociáveis a valorização dos sujeitos da comunidade educativa – em especial trabalhadores da educação e estudantes –, a gestão democrática e o controle público sobre as políticas, de forma que a população possa participar ativamente dos processos de tomada de decisão e monitoramento dessas políticas, e um financiamento público para a educação pública que seja condizente com a plena garantia do direito.
De fato, tanto os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODSs) – entre os quais figura o ODS 4, sobre o direito à educação –, quanto o Marco de Ação da Educação 2030, ambos adotados em 2015 por mais de cem Estados, afirmam a centralidade de todas as dimensões supracitadas, sendo, portanto, instrumentos-chave para a promoção do direito à educação e para o fortalecimento dos sistemas públicos de educação.
No entanto, a problemática da privatização e da desvalorização do setor público que a ela se articula aflige não apenas a América Latina, mas se insere num contexto global mais amplo. É possível observar uma crescente presença de lógicas mercantis e edu-negócios no campo educativo privado e público, fomentando indústrias e negócios que visam fundamentalmente à extração de lucro e ao alinhamento da educação a lógicas economicistas e reducionistas, a serviço do mercado de trabalho.
Já a legislação educativa na América Latina, ao mesmo tempo que afirma a educação como direito humano fundamental e o Estado como garantidor dos direitos, faculta, em maior ou menor grau, a transferência de competências relativas à oferta da educação pública para o setor privado. É o caso, por exemplo, da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, México e República Dominicana. Alguns países chegam a alentar tal participação, como é o caso de Chile, Guatemala, Honduras, Paraguai e Peru. Neste último, a lei geral de educação afirma que “as empresas contribuem ao desenho da educação nacional”.
Para além das legislações, vários países da América Latina transferem recursos públicos para o setor privado, como ocorre no Chile, Equador, Argentina, Brasil, Colômbia e Honduras. Um caso paradigmático são os chamados Colégios em Concessão na Colômbia, que hoje chegam a setenta no país e têm recebido críticas do setor acadêmico e de ativistas por ocasionarem segregação no interior do sistema educativo e uma notável piora nas condições de trabalho docente. Outras práticas comuns de privatização na América Latina incluem a compra de vagas nas escolas privadas por meio de fundos públicos, como ocorre no Chile, e a compra de serviços privados pelo setor público, envolvendo grandes grupos empresariais. O conjunto de produtos adquiridos pelos diferentes níveis de governo inclui materiais educativos e a formação de docentes, além de tecnologias educativas e de gestão, serviços de transporte, uniformes, merenda escolar, entre outros. Na Guatemala, Argentina, Honduras, Brasil, Bolívia, Colômbia, Chile e México observa-se o crescimento dessa modalidade.
Também cada vez mais comuns são as práticas que promovem os paradigmas do setor privado empresarial na educação pública, como é o caso da “gestão por resultados”: as escolas são pressionadas a alcançar bons resultados em provas estandardizadas, alimentando a construção de rankings, que por sua vez determinarão a distribuição de recursos e a seleção de estudantes. Essa prática afeta não apenas alunos, mas também professores e a carreira docente, uma vez que a manutenção do contrato docente ou sua remuneração dependem diretamente de seu desempenho em avaliações, como ocorre na Colômbia e no México, suscitando impactos muito negativos, tais como o empobrecimento do ensino, o desenvolvimento de condutas individualistas, a perda de autonomia pedagógica e uma submissão profunda ao conteúdo e ao sentido da educação imbuídos nas provas, as quais são em sua maioria definidas em âmbito internacional, sem participação social.
A Medida Provisória (MP) n. 746, imposta pelo governo Temer, que reformula o ensino médio da educação brasileira, inscreve-se plenamente nesse contexto amplo de privatização da educação que ocorre na América Latina e no mundo. Em primeiro lugar, porque toma como base, e ao mesmo tempo aprofunda, o desmonte da educação pública e a apropriação de recursos públicos por setores privados em prol do lucro e de uma orientação político-pedagógica da educação alinhada com os interesses de mercado. A medida provisória é imposta num contexto em que tramita a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 241 no Congresso Nacional, a qual quer congelar recursos para a educação (e outros setores sociais) nos próximos vinte anos.
A MP está articulada fundamentalmente com esse corte de recursos para a educação pública. De fato, a medida provisória compromete o governo federal a repassar recursos aos estados apenas durante os primeiros quatro anos, desresponsabilizando-se depois (e contradizendo o espírito do Plano Nacional de Educação). Além disso, diante da precarização das redes de educação pública que resultará de um processo de desenvestimento na educação caso a PEC seja aprovada, abre-se caminho para alianças público-privadas, como já vem ocorrendo em diversos estados do país, por meio de parcerias com organizações sociais (OSs), empresas ou com o Sistema S, por exemplo. A PEC e a MP, junto com a demanda de matrículas no ensino médio, serão indutoras de privatização. Vale lembrar que em junho o Brasil ingressou nas negociações do tratado de livre-comércio mais agressivo que se conhece, o Tisa (Trade in Service Agreement), o qual promove uma radical liberalização e privatização de serviços, entre os quais a educação.
Em segundo lugar, a MP do ensino médio se inscreve num cenário de privatização regional e internacional porque orienta o sentido da educação a interesses privados e de mercado, modificando seu conteúdo, estratificando ainda mais a sociedade brasileira e inibindo a promoção de pensamento crítico que possa levar a mudanças estruturais do status quo. O que dizer da desobrigatoriedade de Filosofia, Sociologia, Artes, Música e Educação Física? O que dizer de deixar obrigatórias apenas Português, Matemática e Inglês, como manda o figurino da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio de suas provas estandardizadas, pobres e empobrecedoras, ética e metodologicamente questionáveis? O que dizer da orientação que levará a ampliar as desigualdades no país, destinando um percurso pedagógico a jovens de menor ingresso (que deverão atender às demandas de setores empresariais com mão de obra barata) e outro a jovens de maior ingresso (elitizando ainda mais as universidades públicas)?
Finalmente, a MP n. 746 sintoniza com processos regionais e globais de privatização porque afronta a gestão democrática e a valorização dos sujeitos da comunidade educativa. A medida provisória promove uma reforma estrutural sem nenhum debate público, atendendo a interesses privados e comerciais, os quais têm acesso a círculos de poder político de modo privativo, sem passar por processos ou instâncias institucionalizadas e legítimas de tomada de decisão. De fato, a MP (e a PEC n. 241) dá as costas ao Plano Nacional de Educação, esse sim ampla e longamente debatido, dono de uma profunda legitimidade, em radical contraste com a natureza do atual governo. A privatização da educação, da saúde e, no limite, da própria política implica o fechamento do espaço público e a eliminação do sentido público das políticas. E mais: não somente docentes e estudantes não foram ouvidos com relação à reforma do ensino médio (ou à PEC n. 241), mas são crescentemente criminalizados pela polícia – e, portanto, pelo Estado – com desmedida truculência e violência.
Além disso, a MP dá um passo a mais na desvalorização docente, jogando por terra os processos de formação ao afirmar o “notório saber” como elemento suficiente para ensinar. A desconstrução da profissão docente é diretamente proporcional à tentativa de reduzir o sentido político-pedagógico da educação a processos mecânicos de não pensar e não questionar. Nesse paradigma, há quem lucre muito com cursos de “notório saber” aligerados e padronizados, mecanizados, pressupondo educadores reprodutores de conteúdos e estudantes consumidores de educação bancária. Cursos para adquirir “notório saber” são também uma forma de baratear o processo de (não) formação docente, lembrando que o setor privado já vem predominando nesse campo.
Nesse cenário de terra-que-se-quer-arrasar, é a mobilização social que nos dá esperança, em especial a dos e das estudantes que vêm resistindo e devolvendo o sentido público da educação, por meio de suas ocupações, reflexões, demandas e lutas. E é sempre bom lembrar que, dada a crescente tendência à privatização da educação mundo afora, os comitês internacionais de direitos humanos têm crescentemente se manifestado a favor da educação pública. Nos últimos dois anos, o Comitê da ONU para os Direitos da Criança, o Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Comitê da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres e a Comissão Africana de Direitos Humanos e de Pessoas emitiram pareceres contra a privatização da educação em vinte países, entre os quais Brasil, Chile, Haiti e outros da Ásia e da África.
Camilla Croso é coordenadora geral da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) e presidenta da Campanha Mundial pela Educação (CME).