A ordem em perigo e a brecha à esquerda
Mudanças sugeridas na organização da produção e da sociedade não são frutos de uma outra correlação de forças entre o capital e o trabalho. São resultado, sobretudo, do medo do que podem fazer frações médias e trabalhadoras atomizadas, insatisfeitas, inseguras, ressentidas e que, em boa medida, têm apelado para o autoritarismo de direita como única alternativa concebível
Não é de hoje que a esquerda não tem um projeto claro e convincente de sociedade. E a ausência de um horizonte político capaz de contagiar as massas explica muitas coisas.
Por um lado, a incapacidade das forças progressistas de se aproveitarem da crise persistente do capitalismo, e da sua gestão liberal-democrática. A única alternativa disponível à ordem em decomposição parece ser um populismo de direita que, embora perca seguidas eleições, dá poucos sinais de que será um fenômeno passageiro, como se gostaria.
Por outro, ajuda a entender a sucessão de ondas de protestos sem bandeiras e objetivos definidos. Revoltas populares que, à imagem da sua última expressão colombiana, mesmo depois de terem alcançado suas reivindicações originais permanecem nas ruas e nas praças. Como se as pessoas não soubessem exatamente pelo que se manifestam, como se estivessem buscando uma transformação sem que tivessem definido a sua forma.
Em meio a isso tudo, a pandemia de Covid-19 surgiu como tragédia, mas também como “oportunidade”. Com a depressão da oferta e da demanda, e diante de um mercado incapaz de coordenar a produção e garantir a vida, caberia ao Estado retomar o protagonismo perdido em décadas de hegemonia liberal. Se a organização dos trabalhadores e seus instrumentos partidários já não conseguiam de conter a expansão das desigualdades, podíamos agora contar com a crise gerada pelo vírus para retomar algum tipo de política redistributiva.
Infelizmente, não foi bem o que aconteceu – pelo menos, não de forma imediata. A pandemia abriu espaço para movimentos ambíguos e se mostrou insuficiente para a recuperação de um projeto vigoroso de esquerda. A impressão que logo se difundiu foi de que ela desempenharia um papel parecido ao da crise financeira de 2008: um breve interregno capaz de perturbar, mas não de interromper o domínio do dogma neoliberal. Não tardaria para que, com o aguardado processo de vacinação, tudo voltasse ao velho normal.
Até que o governo Biden resolvesse mostrar a que veio. A figura mais associada ao establishment que os americanos poderiam ter eleito, em 2020, tem feito o que ninguém poderia esperar dele. Depois de frustrar a onda de otimismo que se acumulava desde 2016, com o crescimento de um campo liderado por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, Joe Biden encarna a imagem perfeita da ordem rompendo com algumas de suas bases para buscar sua salvação.
Trilhões de dólares para planos de desenvolvimento e criação de empregos. Incremento da tributação sobre a renda do capital e o patrimônio dos mais ricos. Quebra das patentes de vacinas contra a Covid. Defesa pública da organização sindical. São essas algumas das medidas tomadas até aqui pelo governo cujo principal trunfo era retomar a previsibilidade política depois dos caóticos anos Trump.
É muito cedo para esperar uma ruptura consequente com o espírito neoliberal. As forças do trabalho parecem pouco informar o ensaio ecológico e desenvolvimentista de Biden e sequer temos muitos sinais de tempos alvissareiros à frente. Em Madri, a direita acaba de derrotar, de maneira estrondosa, todas as faces da esquerda: a herdeira do que restou da socialdemocracia; a verde; e aquela renovada por um Podemos que viu seu principal quadro abandonar a política. À frente do campo conservador, desponta uma liderança feminina de ar jovial e que abriu as portas de seu governo à xenofobia mais escancarada da extrema-direita.
Mas os primeiros meses de Biden na presidência norte-americana traduzem algo nada trivial. Parte das elites reconheceram o tamanho do buraco que cavaram. Há anos, documentos do Fórum Econômico Mundial manifestam preocupação com índices crescentes de desigualdade. Bilionários ao redor do planeta transformam suas casas em bunkers – ou bunkers em suas casas – temendo uma iminente rebelião popular e os estragos da crise climática. A despeito da natureza catastrófica de seu governo, Trump quase foi reeleito.
Sem correções de rota, a ordem caminha a passos largos para a decomposição e alguma coisa deveria ser feita para impedi-la. Mudanças sugeridas na organização da produção e da sociedade não são frutos de uma outra correlação de forças entre o capital e o trabalho. São resultado, sobretudo, do medo do que podem fazer frações médias e trabalhadoras atomizadas, insatisfeitas, inseguras, ressentidas e que, em boa medida, têm apelado para o autoritarismo de direita como única alternativa concebível. É o populismo reacionário, e não a esquerda, que tem empurrado o centro liberal – ou o establishment, para políticas de corte redistributivo.
No Brasil, o cenário é mais complexo. A figura de Lula tem despertado o incômodo de certas alas da esquerda. Por mais amplo que seja o consenso quanto à prioridade de tirar Bolsonaro do governo, um pé do campo progressista ainda permanece muito atrás ao ver o ex-presidente reunindo-se com Sarney e cortejando toda sorte de banqueiro. Uma desconfiança justificada pelas contradições de um esforço de acomodação que inviabilizou qualquer resistência social à derrubada de Dilma. Ao lembrar, com nostalgia, dos governos petistas, ademais, é fácil lamentar o avanço demasiadamente tímido em determinados direitos e reformas.
Contudo, a resistência à tentativa de reprodução da conciliação lulista parece se concentrar mais na rejeição puritana à sua imagem corrompida e conservadora do que nas suas fragilidades. Com todos os seus limites, o lulismo foi a maior experiência de redistribuição e bem-estar de nossa curta história republicana. Sua interpretação crítica não deve perder isso de vista.
Os Estados Unidos de Biden, e a disposição das elites de conversar com Lula, sugerem que, embora não se saiba exatamente do que se trata, alguma coisa diferente da razão neoliberal ganha alguma musculatura. Menos pela organização dos trabalhadores e mais pela consciência burguesa da natureza insustentável da ordem – se ela não mudar, o capitalismo como o conhecemos hoje, e sua gestão liberal-democrática, não se sustentam, como revela a resiliente popularidade de Jair Bolsonaro.
Ironicamente, a extrema-direita pode estar ajudando a conformar um novo horizonte ao qual a esquerda pode se agarrar. Esse horizonte é menos pautado em clivagens morais e na corrida hedonista de indivíduos, em perpétua busca de auto expressão. Pode haver um novo cenário, mais atrelado a uma política que atenda às necessidades e aspirações de frações populares, que têm cedido à tentação insurgente do campo mais radical e reacionário do espectro político-ideológico.
A história não obedece às nossas expectativas e, tampouco, aos esquemas bem-acabados, que nos têm ajudado a identificar-nos com determinados grupos, e a dar sentido a vidas marcadas pelo desânimo com os modelos disponíveis de sociedade. Por mais paradoxal que possa parecer, é a busca das classes dominantes pela preservação da ordem, em resposta à ascensão neofascista, que pode oferecer uma saída para o imobilismo progressista. Esforços como aqueles liderados por Biden e Lula podem salvar o capitalismo dos capitalistas. De brinde, podem dar à esquerda o esboço e as condições de um novo mundo com o qual sonhar.
Philippe Scerb é doutorando em Ciência Política pela USP.