A Otan na engrenagem Líbia
Em abril de 2011, um mês após os primeiros bombardeios, a operação anti-Kadafi na Líbia – sucessivamente franco-britânica, depois norte-americana e finalmente endossada pela Otan – estagnou-se diante da resistência do regime e do amadorismo da insurreição
O regime de Trípoli, atacado pelos caças norte-americanos e europeus, mostrou-se mais combativo que o previsto pelos estrategistas ocidentais. Sobretudo franceses, britânicos e norte-americanos decidiram, diante da urgência, contornar seus compromissos com alguns dos regimes mais tumultuados dos últimos meses e enviar um sinal tardio aos atores dessa “primavera árabe”, cuja chegada não foi nem sequer percebida.
Esses novos justiceiros internacionais, que no entanto tinham retomado quase com normalidade os negócios com um Muamar Kadafi aparentemente moderado – ou, em todo caso, amordaçado e transformado em uma caricatura de si mesmo –, escolheram acompanhar o levante ao lado da parte mobilizada da população líbia, principalmente a do Leste, província de Cirenaica, tradicional bastião da oposição. Eles contavam com essa oportunidade para livrar-se de uma vez de Kadafi, célebre por seus caprichos e por sua tendência a perturbar o cenário internacional. Desde o início de seu reinado, em 1969, ele não poupou os regimes ocidentais nem os outros regimes árabes.
Apesar da chuva de mísseis e bombas, o “sistema Kadafi” não caiu como uma fruta madura. De frente para o mar, os terminais petroleiros do Leste, situados a quase mil quilômetros de Trípoli, permaneceram em disputa entre os beligerantes; com os bombardeios ocidentais, os rebeldes – engajados desde o fim de março na conquista do Oeste e no sonho de entrar triunfantes na capital do país – refluíram em direção a seu reduto de origem, o Leste, e ressuscitaram o espectro de uma divisão do país. Benghazi, a capital e velha terra dos opositores ao ditador, receou novamente o desembarque das tropas fiéis ao regime, em particular as unidades de combatentes chadianos, sudaneses e tuaregues (da Nigéria ou do Mali) temidos pela população local.
No início de abril, o almirante Mike Mullen, chefe do Estado-maior das forças armadas norte-americanas, havia reconhecido que as forças de ataque do ditador “tinham sido reduzidas em apenas 20% ou 25%” e seu Exército “não estava em situação crítica”, apesar de ter sido alvo de duzentos mísseis de longo alcance Tomahawk da parte dos Estados Unidos e uma dúzia de Scalp franceses. No momento da entrada em cena da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – colocada por Washington na cabeça da operação “Protetor unificado”, sua primeira incursão no continente africano –, o duo franco-britânico quis conservar a “pilotagem política” da intervenção pela intermediação de um “grupo de contato” com objetivos vagos. Esse grupo evocava a possibilidade de fornecer armas aos insurgentes, único meio de acelerar a queda do regime de Kadafi e evitar o prolongamento do levante – uma obsessão em matéria de intervenção multinacional, pois a longevidade não é necessariamente vista como sinal de êxito: a Finul (Força Interina das Nações Unidas no Líbano) está no Líbano desde 1978; a K-For, em Kosovo desde 1999; a Fias (Força Internacional de Assistência e Segurança) está no Afeganistão desde 2002; a Onuci (Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim), desde 2004…
Desilusões da intervenção
O tempo das desilusões chegou rapidamente ao seio de uma coalizão pouco unificada como essa, montada pelas circunstâncias, a toque de caixa, com aval mais ou menos forçado da ONU, da Liga Árabe, da União Africana – as duas últimas afastadas em seguida. A coordenação militar da operação foi trocada de mãos três vezes em apenas um mês e terminou com apenas seis Estados-membros da Otan (dos 28) – os que aceitaram participar de incursões militares logo em seguida à criação de uma zona de exclusão aérea. O conflito na Líbia “é longo e complicado, e porque é complicado, é longo”, portanto, “corre o risco de durar”, opinava Gérard Longuet, o ministro da Defesa francês, em meados de abril.1 A propósito do custo dessa guerra, e com uma solicitude repentina em relação aos povos sofredores do planeta, o mesmo Longuet lançou o seguinte comentário churchilliano: “Ela custará muito menos do que a desonra de ver um povo massacrado”.2
Diante dessas desilusões, o debate sobre a finalidade e a legitimidade da intervenção foi retomado: a resolução 1.973 do Conselho de Segurança da ONU, aprovada em 17 de março de 2011 graças à abstenção da Rússia e da China (pois também foram coniventes com a decisão, uma vez que a Rússia tem poder de veto), autorizava “todas as medidas necessárias para proteger os civis e as zonas ocupadas por civis sob ameaça de ataque […], exceto ocupação estrangeira sob qualquer forma e em qualquer parte do território líbio”. A resolução não previa tropas no solo nem fornecimento de armas aos rebeldes, e tinha como único objetivo eliminar o ditador líbio – aspecto que gerou uma série de comentários desencontrados do trio que encabeça a coalizão anti-Kadafi (França, Reino Unido e Estados Unidos).
Em nota publicada no dia 15 de abril em diversos jornais, os dirigentes desses três países – David Cameron, Nicolas Sarkozy e Barack Obama – afirmaram novamente que era “impossível imaginar um futuro para a Líbia com Kadafi”, considerado ilegítimo. “Os três dizem algo muito importante. É um sinal enviado a todos os líbios, tanto os da oposição como os a favor do regime: não haverá futuro para a Líbia com Kadafi no poder, e que cada ator social assuma sua parcela de responsabilidade. O objetivo desse comentário é claro: visa pressionar a população a tirá-lo do poder”,3comentou Longuet. E para alcançar a meta seria necessário – militarmente falando – “fortalecer os alvos” com outras medidas além da proteção das populações civis inocentes, projeto inicial da operação.
Assim surgiu a ideia de uma nova resolução, mais explícita. Ou simplesmente de atropelar a outra: “Acredito que, se três grandes países dizem a mesma coisa, é importante para as Nações Unidas…”,4 sussurrou ainda Longuet, retomando na surdina o comportamento unilateral de George W. Bush. Em função das incertezas sobre os “objetivos da guerra”, dos riscos de prolongamento do conflito e das acusações de ingerência feitas pela Rússia, China, Brasil e pela maior parte dos países africanos, os “coalizados” se viram obrigados a tomar medidas – paralelamente a seus desencontros – com vistas a uma eventual solução política do conflito.
Excluídas as possibilidades de aliciamento esperado (ou suscitado) de gente próxima ao ditador, ou da deserção de parte do Exército, o fornecimento de armas aos rebeldes, passível de ajudá-los a recriar uma relação de forças favorável, figurava no início de abril como a principal “técnica” para acelerar a derrota do regime. A medida parecia, de certa forma, uma alternativa ao envio de tropas ao solo (vetado pela resolução) – o que teria um efeito desastroso na África e no mundo islâmico sobretudo se os soldados fossem apenas ocidentais. De qualquer maneira, esse envio não havia sido solicitado (pelo menos não oficialmente) pelos insurgentes e foi considerado muito perigoso pelas tropas estrangeiras.
Os Estados Unidos, contudo, “não excluíam” eventuais fornecimentos de armas, segundo pronunciamento do presidente Obama, que teria assinado um decreto confidencial para autorizar operações secretas da Agência Central de Inteligência (CIA) na Líbia para apoiar os insurgentes. Os Estados Unidos são especialistas no tema (África, América Latina), e evidentemente o Pentágono estudou distintas modalidades práticas de um eventual fornecimento de equipamento. Vias de acesso não faltam, em particular pelo Egito.
A eficácia do comando da operação, assegurada inteiramente à Otan depois da pressão anglo-americana, também pode ser questionada. Os altos responsáveis dos Estados Unidos e da Otan – em geral os mesmos – evocavam a penúria dos meios de luta, especialmente de munição, após quatro semanas de conflito, o que trouxe à luz os limites do Reino Unido, da França e dos outros países europeus de manter a longo prazo uma operação militar relativamente modesta, da qual participam apenas seis dos 28 membros da organização transatlântica.
Mudanças de comando
Os Estados Unidos se abstiveram do papel de dirigente, desempenhado durante a primeira semana de bombardeios, e decidiram passar os ataques às mãos dos europeus por razões de política interna. Porém, não se desligaram totalmente da operação: continuaram a participar com o fornecimento de provisões, comunicações, vigilância e interceptações – apoio sem o qual, afirmaram eles, os aviões de outros países da Otan não poderiam ter operado. Também decidiram enviar aviões não tripulados armados. O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em entrevista para o Financial Times em 19 de abril, avaliou que a Otan não precisava dos Estados Unidos na Líbia, pois Washington era, segundo ele, mais útil em outros cenários de operação, como o Paquistão, o Afeganistão, o Irã, o Egito ou a Coreia do Norte.
A França, que não queria a Otan na direção da operação por ser um organismo “muito ocidental”, assumiu o posto para em seguida (meados de abril) declarar que “não podia desempenhar seu papel de forma satisfatória”, passando a figurar no binômio da direção franco-britânica. As autoridades francesas preconizaram a intensificação dos bombardeios aéreos, inclusive sobre os centros de decisão militar e sobre os depósitos logísticos poupados até então – “para que não seja necessário equipar militarmente os insurgentes”, argumentou Longuet.
No mesmo momento, o general Carter Ham, chefe do Comando Americano pela África (Africom), reconheceu um “impasse” no cenário líbio. Os insurgentes demandavam cada vez mais, pediam um apoio mais eficaz, armas e o desembarque das tropas da Otan, enquanto os aviões da coalizão multiplicavam “equívocos” desmoralizantes, como o bombardeio da única frota de blindados dos combatentes rebeldes.
Foi para sair desse impasse que em 20 de abril, ignorando a famosa resolução 1.973, o Eliseu – o primeiro, desde 10 de março, a reconhecer o Conselho Nacional de Transição (CNT) e a declarar publicamente Kadafi como alvo da operação – prometeu reforço aéreo aos rebeldes, anunciou o envio de conselheiros militares para atuar ao lado deles (ao mesmo tempo que Reino Unido e Itália) e considerou até mesmo uma visita oficial do presidente Sarkozy a Benghazi, onde ele seria acolhido como herói…
Assim se deu, por pequenas e grandes reviravoltas, sucessivos escorregões semânticos, múltiplos ajustes em relação ao direito, à diplomacia e à realidade, essa que parece ser mais uma expedição punitiva ocidental. O mais chocante, nesse caso, é a fúria francesa contra um Kadafi que, há pouco tempo, não significava nada além de venda de caças Rafale. E essa gestação da intervenção no ventre de um humanitarismo nos termos de Kouchner e sobretudo de Bernard-Henri Lévy (o intelectual socializante que teria levado a adesão de Sarkozy, ele mesmo em busca de uma boa causa… e de uma boa guerra). E esse nascimento na fonte batismal da ONU, com a íntima colaboração de Ban Ki-Moon, um secretário-geral a serviço de potências do mundo liberal ocidental. E o fato de confiar numa Otan cada vez mais “sem fronteiras”, que sempre ganha o distintivo de braço armado da “comunidade internacional”, em detrimento de uma União Europeia ainda impotente em matéria de defesa.