A política do extermínio
É preciso formular uma nova política de segurança pública e dar-lhe novo arcabouço institucional, uma nova forma de organização que facilite superar resistências e permita uma ação integrada e cidadã das forças de segurança pública.
Os “Coronéis Barbonos” estão à frente de um movimento de renovação da polícia. Eles são coronéis da Polícia Militar do RJ e estão indignados com o que se passa na Corporação. Eles denunciam que a PM “(…) leva às comunidades carentes o terror de uma política de segurança sem os requisitos mínimos de inteligência, alicerçada unicamente no belicismo descabido, (…) impondo às demais camadas da sociedade o medo, a desconfiança e o luto pelos muitos filhos sacrificados em razão do despreparo e da pressão funcional e emocional a que são submetidos os profissionais de segurança”1.
Impor o medo, impor a desconfiança na sociedade, impor o terror aos mais pobres. Esse tem sido o papel da polícia, especialmente da Polícia Militar. Uma corporação desse tipo, com estrutura hierárquica e vertical, não mata 1.330 pessoas em 2007 no Rio de Janeiro, de 3 a 4 pessoas por dia, sem a concordância de seu comando.
Talvez seja mais preciso dizer que essas mortes ocorrem por ordem de seu comando. O Governo do Estado e o Comando da Polícia Militar estão lançando os militares numa guerra urbana. Trata-se de uma política de extermínio. A política de extermínio traz uma concepção de limpeza social.
Eliminando-se os “bandidos” promove-se o bem para a comunidade. Ela é a expressão de um projeto político de grupos que se arrogam o direito e o poder de selecionar camadas da sociedade a ser eliminadas, expulsas ou circunscritas. A política de confronto, que promove execuções sumárias por parte da polícia, está presente, em maior ou menor grau, em todos os estados da Federação. Mas só em certos territórios onde se concentram as camadas pobres da população2.
Há momentos em que essa política assume todos os seus contornos com extrema nitidez. E São Paulo ilustra essa política de extermínio. Foi assim em 2006, quando o PCC desafiou a polícia paulista. Em uma semana, de 12 a 20 de maio, o Conselho Regional de Medicina identificou 493 corpos de pessoas assassinadas à bala.
Uma polícia desprestigiada, mal remunerada, sem equipamento, sem preparo, orientada para o confronto, induzida à corrupção. A responsabilidade por este estado de coisas não é da polícia. E é preciso reconhecer e valorizar os policiais que protegem e respeitam a vida e a dignidade humana.
A responsabilidade é dos governos dos estados que, quando não apoiam, nada fazem para inibir essa política de confronto. É do governo federal, que aceita e faz vistas grossas para uma realidade absurda: em 2006 foram assassinadas 35 mil pessoas no Brasil.
Ainda não superamos todas as heranças da ditadura. A falta de controle republicano e democrático sobre a Polícia Militar, sua impunidade, é uma delas. O fato de seus integrantes poderem ser julgados apenas por seus pares, pela Justiça Militar, tem lhes assegurado licença para matar. Hannah Arendt fala que as forças policiais totalitárias nunca tiveram por tarefa descobrir crimes, mas estar à disposição para eliminar as categorias indesejáveis3.
É este pensamento totalitário, compartilhado por segmentos da sociedade, que legitima uma política de extermínio. Faz parte do processo de democratização em curso a disputa por uma nova concepção de cidadania e de segurança pública.
É preciso formular uma nova política de segurança pública e dar-lhe novo arcabouço institucional, uma nova forma de organização que facilite superar resistências e permita uma ação integrada e cidadã das forças de segurança pública.
A tentativa de unificação começou ainda no regime militar, nos anos 1970, quando Petrônio Portela ocupava o Ministério da Justiça. Mas todas as vezes que se pensou em unificação das polícias civil e militar, se esbarrou na pressão de representantes de classes, de oficiais militares e delegados, no interesse corporativista dos oficiais. Eles não aceitam perder o grau de autoridade que possuem, bem como as vantagens inerentes às suas patentes militares.
Em 2005 foi apresentada ao Congresso, pelo senador Tasso Jereissati, uma proposta de emenda constitucional – a PEC 21/05 – que prevê a transferência, para o governo dos estados, da decisão de criar ou reformular suas polícias. Uma de suas propostas é fundir os efetivos das duas polícias, a civil e a militar, criando uma única nova corporação. E dotá-la constitucionalmente de recursos para a implementação de suas políticas.
Em março de 2007, quando da discussão da PEC 21/05 na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, oficiais ligados à Associação dos Oficiais Militares Estaduais do Brasil (AmeBrasil), à Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme) e ao Conselho Nacional dos Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (CNCG) manifestaram-se contra a desconstitucionalização das polícias e a favor da posição do relator da matéria, Romeu Tuma. A pressão dos oficiais militares surtiu efeito e, em 28/03/2007, em reunião ordinária da Comissão de Constituição e Justiça, a matéria foi retirada de pauta.
Mas, se os oficiais se manifestam contra, existe grande simpatia pela proposta no “baixo clero” da Polícia Militar. De acordo com o presidente da Associação dos Militares Auxiliares e Especialistas (Amae), tenente Melquisedec Nascimento, mais de 90% dos soldados, cabos, sargentos, subtenentes, tenentes e capitães PM do país são favoráveis a mudanças profundas na estrutura e concepção do papel da polícia.
O confronto recente, em frente ao Palácio do Governo do Estado de São Paulo, entre policiais civis e militares, evidenciou mais uma vez a necessidade de uma nova organização das forças de segurança pública e trouxe de volta a proposta de junção da Polícia Civil e Polícia Militar.
A PEC 21/05, se aprovada, traz avanços no controle democrático e na desmilitarização da polícia. Melhor aparelhadas, mais capacitadas, as forças de segurança pública estarão em melhores condições para implementar uma política.
Mas a questão é justamente essa: qual política de segurança pública?
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.