A potência da ação coletiva
Os novos atores sociais e políticos aprendem, com suas próprias experiências e com a de outros movimentos sociais, a recusar o lugar subalterno que as instituições da sociedade lhes destinaram, e que em muitos casos são herança colonial.
Agora, com a sucessão de crises que enfrentamos, fala-se muito na necessidade de mudar. Mudar o mundo. Mudar as nossas sociedades. Mudar o modelo de desenvolvimento. Já há certo consenso de que chegamos ao limite. Ir além é arriscar a própria sobrevivência.
Essa percepção dos riscos não impede que a lógica do modelo neoliberal se reproduza até o limite da própria destruição de seus agentes, como estamos assistindo com os maiores bancos e seguradoras do mundo, com empresas como a General Motors. Uma surpreendente onda de estatizações por parte de governos que pregavam o Estado mínimo tenta garantir o funcionamento do mercado, e trilhões de dólares saem dos bolsos dos contribuintes para reforço de capital dessas grandes empresas. Se houvesse essa disponibilidade para combater a pobreza e garantir o bem-estar de todos os seres humanos, o mundo seria outro. Nunca ficou tão evidente o papel atual do Estado, que garante e financia o grande capital.
A sociedade em que vivemos é a resolutiva de conflitos. Os que ganharam impõem seu padrão de sociabilidade: a competição, o individualismo, a destruição do concorrente, a expansão predatória e sem limites, o domínio do território. Se o modelo neoliberal enfrenta cada vez maiores críticas e resistências, também é verdade que as mudanças necessárias são de tal magnitude que implicam rupturas, demandam verdadeiras mutações nas formas de ver o mundo, de produzir conhecimento, de atuar em sociedade. E a pergunta que se coloca é: quem serão os atores capazes de tamanha proeza?
Não podemos mais pensar nos termos clássicos do marxismo, que em sua análise histórica do final do século XIX e início do século XX, soube interpretar o conflito social entre o capital e o trabalho a partir da mobilização do proletariado. Hoje os atores são múltiplos e a polarização de interesses se dá de variadas formas. Um líder desses movimentos indígenas de El Alto nos diz: “Nós não temos fábricas, não podemos fazer greve, mas podemos bloquear as estradas com pedras e exigir nossos direitos”.
A privatização da água em Cochabamba, na Bolívia, sua transformação em mercadoria e o aumento abusivo dos seus preços, entraram em choque com uma cultura milenar onde a água, considerada um bem público, era como o ar, um elemento da natureza para ser cuidado e desfrutado por todos. A população da cidade se mobilizou e expulsou, em 2002, a multinacional que havia conquistado a concessão. A “guerra da água” traz, com sua vitória, novo alento para um amplo conjunto de movimentos sociais, dentro e fora da Bolívia.
Os pequenos agricultores, os trabalhadores e os pequenos empresários da Costa Rica sabem que sua existência corre perigo se for assinado o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos. E, por isso, se articularam nacionalmente e produziram as maiores mobilizações sociais que o país já assistiu, garantindo um referendum, que perderam por muito pouco, em 2007.
Em 2006, o governo do Equador rompeu o contrato que concedia à empresa norte-americana Occidental Petroleum Corporation o direito de extração de petróleo no país. Os movimentos sociais equatorianos pressionaram por essa rescisão com anos de protestos e grandes levantes populares no início de 2006. Sindicatos de petroleiros, professores, conselhos de engenheiros e geólogos, organizações indígenas, campesinas e estudantis, congregados na Frente Patriótica pela Soberania Petrolífera, espalharam sua campanha por quase todo o território nacional.
Em 2006, na Argentina, moradores de Gualeguaychú, com o apoio de comunidades vizinhas, realizam um bloqueio de 45 dias sobre a ponte internacional General San Martín, que liga a Argentina ao Uruguai, em manifestação contra a instalação de fábricas de papel no Uruguai. Em 1º de maio, a ponte foi novamente fechada por cerca de 100 mil moradores da região e membros de organizações sociais e ambientais.
Os novos atores sociais e políticos aprendem, com suas próprias experiências e com a de outros movimentos sociais, a recusar o lugar subalterno que as instituições da sociedade lhes destinaram, e que em muitos casos são herança colonial. Há uma transformação da subjetividade, a mobilização de energias que antes estavam paralisadas, sob controle. Essas mobilizações sociais afirmam a potência da ação coletiva.
Não há, porém, mobilizações sociais que surjam do nada. Elas vêm se construindo há décadas, pela formação de redes e fóruns de entidades, confederações de organizações territoriais, uma múltipla variedade de formas de organização em defesa da cidadania, em defesa de direitos.
Ainda que pouco divulgadas, essas mobilizações sociais se disseminam por todo o continente. No Equador e na Bolívia elas garantiram novas Constituições. Uma verdadeira refundação do Estado. Mas serão esses movimentos sociais capazes de conquistar as maiorias e assegurar as mudanças que todos aspiramos?
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.