A prova de fogo da ética no Kosovo
Comportando-se como a polícia dos Bálcãs, a Otan falava em “libertar” o Kosovo com uma “guerra de valores”. Mas não sem manipulação e mentira, aproveitando a docilidade dos enviados especiais da mídia ocidental…
Pouco após a chegada das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a Pristina, em junho de 1999, Kathy Sheridan, do Irish Times, foi de carro até Vucitrn, uma sinistra cidadezinha dominada pelas forças de segurança sérvias. Chegando lá, viu um corpo isolado estendido numa rua e muitos oficiais do Ministério do Interior da Sérvia, mais conhecido pela sigla MUP. Retornando às pressas para Pristina, ela declarou a um repórter de rádio da British Broadcasting Corporation (BBC) que tinha visto um corpo em Vucitrn, mas que a área estava “cheia de policiais sérvios”. Poucos minutos depois, a BBC transmitia uma reportagem afirmando que uma enviada especial irlandesa havia encontrado Vucitrn “coberta de cadáveres”.
Uma hora depois encontrei Keith Graves, da rede SkyTV, na porta do Grand Hotel, em Pristina, perguntando a um oficial britânico como ele achava que seria possível enviar uma equipe de televisão a Vucitrn para filmar esses mortos todos. Já estava anoitecendo, e Graves, repórter com recursos e realista, preferiu deixar a viagem para o dia seguinte. Foi então que soube a verdade: a BBC havia simplesmente falsificado as declarações de Kathy. A jornalista irlandesa conseguiu da rádio britânica a promessa de poder explicar no ar o que realmente tinha visto. Qual não foi sua surpresa e sua cólera ao constatar que o programa acabou sendo cancelado. Comentário de Graves: “O verdadeiro problema, agora, é que o público só quer histórias de atrocidades”. E foi isso mesmo que os jornalistas lhe ofereceram por dias e dias.
Não que fosse difícil encontrar montes de cadáveres. Mesmo antes de as forças da Otan penetrarem nas aldeias ao norte de Pec, eu cruzei, na estrada principal que leva a Pristina – cheia de caminhões destruídos, animais mortos e casas em chamas –, com pessoas querendo mostrar corpos de entes queridos. Era na aldeia de Coska, e relâmpagos iluminavam um céu sombrio quando entramos no vilarejo em ruínas. Mais de trinta homens haviam sido executados pela polícia especial sérvia, contavam. E mostravam fragmentos de esqueletos carbonizados, colunas vertebrais, dedos, uma aliança. Encontramos até a viúva dessa aliança. Seu dono e outros albaneses separados das esposas tinham sido fuzilados e queimados pelos sérvios, em três casas vazias.
Eu sabia como essa história seria contada. Os sérvios cometeram atos terríveis – o que é perfeitamente verdadeiro – em sua implacável perseguição contra a população albanesa do Kosovo. Durante todo o confronto, a Otan não cansou de afirmar que eles massacravam essa pobre gente, e agora todo mundo podia ver as evidências. Assim – mais uma vez eu adivinhara a lógica que seria desenvolvida –, justificava-se o bombardeio aéreo da Iugoslávia e, mais amplamente, a guerra cruel lançada em março pela Otan. A organização tinha “libertado” o Kosovo ao fim de uma “guerra de valores” – e aqui utilizo deliberadamente a expressão do primeiro-
-ministro britânico Tony Blair. E maldito seja todo aquele que sugerir que esse conflito sem sentido jamais deveria ter ocorrido.
Desde o início, a maior parte de nossos colegas jornalistas comportou-se como um rebanho durante os boletins diários da Otan. Eles nem sequer se atreveram a questionar o porta-voz da organização, Jamie Shea, sobre a alegada destruição do Terceiro Exército iugoslavo; sobre a nomeação de Agim Cecu, um dos responsáveis pela “limpeza étnica” de Krajina pelo Exército croata, como comandante do Exército de Libertação do Kosovo (KLA); sobre o fato de que as condições aceitas enfim pela Otan para “encerrar” a guerra eram claramente menos duras que os termos de paz que a organização quis impor à Sérvia em Rambouillet. Mesmo quando se soube que a extraordinária vitória sobre o Exército iugoslavo significou para este apenas a perda de treze tanques, retirando-se do Kosovo com seu equipamento praticamente intacto, os jornalistas, na sede da Otan, permaneceram calados como carneirinhos.
Os enviados especiais da imprensa escrita, rádio e televisão eram obrigados a bancar os papagaios dos generais da Otan e secretários de Estado? Próximo do fim dos bombardeios – notemos de passagem que a maioria dos repórteres utilizou a expressão “campanha aérea”, como se Migs sérvios rasgassem os céus diariamente para combater os aviões da Otan –, Shea permitiu-se dizer que o hospital de Sudurlica havia sido atacado porque era na verdade um quartel. Declaração absolutamente falsa. Nós visitamos o hospital, vimos os miseráveis restos dos mortos, entre eles os de uma jovem poeta de 19 anos: nenhum de meus colegas interrogou a Otan sobre essa mentira.
Da mesma forma, pouquíssimos jornalistas contestaram, de um ponto de vista moral, o bombardeio da sede de televisão sérvia em Belgrado. Cerca de dois dias antes do evento, a sede da Cable News Network (CNN), em Atlanta, avisou seus enviados especiais que o prédio estava na mira. Foram dadas instruções para retirar dali seus equipamentos, o que foi feito. Foi então que o ministro da Informação sérvio, Aleksandar Vucic (próximo a Slobodan Milosevic, portanto, um alvo para a Otan), recebeu um convite para apresentar-se no local, de manhã cedo, a fim de participar do programa do famoso apresentador da CNN Larry King – pediram até que chegasse meia hora mais cedo para a maquiagem. Vucic diz que se atrasou. A CNN afirma ter cancelado o compromisso doze horas antes. Se ele tivesse cumprido o combinado, estaria lá quando os mísseis atingiram o local, matando, entre outros, a maquiadora. Para a CNN, tudo não passou de uma coincidência. Esperemos que sim.
De boca fechada
Em compensação, a recusa dos meios de comunicação em investigar as condições de paz impostas aos sérvios pela Otan em Paris, em meados de março de 1999, não é por acaso. Nos termos do acordo conhecido como de Rambouillet, Belgrado devia aceitar que as forças da Otan pudessem deslocar-se por toda a Iugoslávia, incluindo a capital, e que os kosovares (90% albaneses) tivessem a oportunidade de decidir seu futuro num prazo de três anos. O que para os sérvios parecia mais rendição do que paz: não apenas se pisoteava a soberania iugoslava, mas ganhava corpo a futura independência do Kosovo.
Os iugoslavos recusaram-se a assinar. E a Otan começou a guerra. Então os sérvios empreenderam uma brutal “limpeza étnica” que atingiu pelo menos metade da população albanesa da província. Quando os bombardeios começaram a arrastar-se, ao fim de cinco ou seis semanas, muitos colegas passaram a martelar a linha da Otan: ela estava lutando “para que os refugiados pudessem retornar ao lar”. Nenhum jornalista explicou que a maior parte desses refugiados estava precisamente em casa quando irrompeu a guerra – e que os sérvios tinham avisado (a frase é do general Nebojsa Pavkovic) que iriam “acertar as contas” com os albaneses se a Otan atacasse a Iugoslávia. Além disso, o general Westley Clark, comandante supremo da Otan, reconheceu que a tragédia épica dos refugiados era “totalmente previsível” – mas nenhum jornalista perguntou por que ele não dividiu essa informação conosco, na época.
Chegou o momento em que os sérvios assinaram a paz com a Otan, a União Europeia e os russos. Descobriu-se então que as forças da organização só haviam agido no Kosovo – elas não tinham nenhuma liberdade de circulação no resto da Sérvia – e que o “mecanismo” que permitiria a independência do Kosovo tinha misteriosamente desaparecido. Tantos elementos importantes, fundamentais, mais uma vez ignorados pela imprensa, rádio e televisão.
Outro fato significativo: norte-americanos e britânicos eram de longe menos propensos a contestar a autoridade – o que é o dever de um jornalista de um país democrático em tempos de guerra – do que os franceses. Enquanto Les Guignols, no canal francês Canal +, faziam uma sátira virulenta das coletivas de imprensa de Shea – por duas noites seguidas, o boneco que o representava apareceu desculpando-se porque um míssil atingiu um ônibus, depois expressou vibrantes lamentos porque um Mig 29 havia sido derrubado –, os anglo-saxões ficaram até o fim de boca fechada.
Dever patriótico de jornalista
Quando fui a Bruxelas para, num dos boletins diários, fazer uma pergunta sobre o uso de munição de urânio empobrecido, aparentemente responsável por muitos casos de câncer no Iraque, um general admitiu que a Otan tinha mesmo utilizado esse material – confissão transmitida ao vivo. Mas, quando a CNN trabalhou as imagens para posterior transmissão, minha pergunta e a resposta do general foram misteriosamente cortadas.
E o secretário de imprensa de Tony Blair, Alastair Campbell, deu sermões diante do Royal United Services Institute, em Londres, sobre a maneira como os jornalistas tinham sido usados pela “máquina de mentir sérvia” – ignorando, é claro, seus dóceis colegas dominados pelas “missas” da Otan. E insistiu no velho tema, já gasto de tão usado que foi durante toda a guerra: se a Otan matou inocentes, foi por acidente, já os sérvios as matavam de propósito.
Esse argumento infantil levanta duas questões. Primeiro, o ataque aliado contra a Iugoslávia tornou-se tão imoral que no fim era quase impossível acreditar que uma artilharia aérea que bombardeou repetidamente hospitais, pontes, um trem, dois ônibus, uma ponte urbana em dia de mercado e inúmeras casas, além das casernas e refinarias, não quisesse deliberadamente atingir alvos civis, com a intenção de colocar a Sérvia de joelhos.
Mas havia também a mentira de que os sérvios teriam cometido atrocidades voluntárias mesmo se a Otan não tivesse entrado em guerra. Em resumo, o compromisso total em favor da organização era o dever patriótico de cada jornalista. Os sérvios realmente eram culpados de estupros, execuções em massa e crueldades contra civis kosovares. Mas a natureza da paz que concluiu a guerra sugere que ela poderia, e deveria, ter sido evitada.
E se as vítimas sérvias foram mortas por acidente, isso torna sua morte menos dolorosa, mais aceitável? Ser decapitado por uma bomba de fragmentação da Otan ou por uma granada sérvia autopropulsionada: há uma grande diferença? Os sérvios, é verdade, carregam na consciência crimes horríveis – realmente horríveis, a julgar pelo que vi em Coska –, ao passo que a Otan não pretendia (pelo menos assim devemos esperar) matar civis. Mas se a guerra não era indispensável, então os mortos de responsabilidade da Otan pesam muito. E os jornalistas que trabalharam na Iugoslávia, longe de serem instrumento de uma “máquina de mentir”, forneceram um doloroso porém necessário relato do sofrimento que nós – nós: a Otan, nossa civilização ocidental – infligimos aos sérvios.
O último ataque contra os jornalistas que não se curvam veio de alguns repórteres. No Irish Times, uma colega freelance me acusou de criar uma “paridade entre as vítimas” – expressão pueril, mas perigosa – por ter previsto, no início de junho, com razão, que “o Kosovo havia sofrido uma ‘limpeza étnica’ pelos sérvios. E em alguns dias – duas semanas no máximo – os sérvios, por sua vez, sofreriam ‘limpeza étnica’ pelos aliados albaneses da Otan”. Não apenas a citação foi retirada de seu contexto, mas, acima de tudo, meu verdadeiro pecado foi que eu tinha razão.
Após as operações militares, a maior parte da população sérvia do Kosovo fugiu da região, assim como quase metade dos ciganos. Os civis sérvios que vi amontoados em seus carros, ou apertados, em lágrimas, nas carroças de suas fazendas eram tão inocentes quanto os albaneses caçados de sua terra natal dois meses antes. Mas o simples fato de esses novos refugiados serem sérvios bastava para esquecermos sua condição de vítima. Isso me fez pensar nos alemães dos Sudetos e dos territórios orientais da Alemanha logo após a Segunda Guerra Mundial. Na época, não nos importamos com eles. “Eles têm o que merecem”, pensávamos. Em 1999, nós nos permitimos “bestializar” todo um povo, os sérvios, em razão dos crimes cometidos por seu governo e seus detestáveis paramilitares.
E por que nos comportamos dessa maneira? Em seu famoso romance Scoop, o escritor britânico Evelyn Waugh faz uma magnífica paródia dos correspondentes estrangeiros, que todo jornalista deveria ler: “No que diz respeito à política, diz lorde Copper, do Daily Beast [“A Besta Diária”], o que a opinião pública britânica quer, no começo, no fim e em qualquer momento, são novidades. Lembre-se de que os patriotas têm razão e vão vencer. Mas eles têm de vencer rapidamente. Os britânicos não se interessam por guerras que se arrastam e sem resultados. Algumas vitórias estarrecedoras, alguns grandes atos de coragem pessoal por parte dos patriotas e uma entrada pitoresca na capital. Essa é a política do Beast em matéria de guerra”.
As tropas britânicas entraram em Pristina no dia 12 de junho de 1999. Scoop foi escrito em 1938.