A queda do fascismo e seu “eterno retorno” na Europa
Mesmo após oitenta e um anos da queda do fascismo na Itália, políticos assumem uma tendência reacionária que constrói paralelismos com os atos de outrora
Os eventos de julho de 1943 foram o estopim da crise que permeou o grupo que encabeçava o governo fascista na Itália. O rei Vittorio Emanuele III vivia seu declínio diplomático e se abraçava na confiança cega por Benito Mussolini, a quem deu plenos poderes, em 1940, para entrar na guerra, acreditando que a vitória do Eixo sobre os Aliados seria questão de tempo.
As apostas erradas começariam já no mês de outubro daquele ano, quando houve o fracasso da ofensiva militar italiana contra a Grécia. A expulsão das tropas italianas pelo exército grego, preparado e organizado belicamente, chegou ao norte da Albânia, e, em abril de 1941, tiveram de ser socorridas pelo exército nazista.
As seguidas vitórias britânicas em Taranto e na Líbia, em janeiro de 1941, e a tomada da Etiópia, que vivia sob domínio italiano, escancaram a vulnerabilidade e fraqueza dos italianos, que numa atitude irresponsável se uniram em junho do mesmo ano ao exército nazista na invasão da URSS, que resultou numa das maiores derrotas da Segunda Guerra.
Preocupado com o futuro da monarquia e de sua linhagem, o rei se viu persuadido a retirar seu apoio, gerando confusão e desapoio por parte da opinião pública, que não era apoiadora da guerra, mas inimiga da inação de Vittorio diante dos fatos. Mussolini, entretanto, era tomado por rompantes impulsivos que só viam no poder bélico a salvação da Itália e a sua permanência no poder. Já em seu último discurso como primeiro-ministro, Mussolini apresentava confusão e incoerência, pois o próprio discurso apresentava erros de vocabulário e incongruências que não eram comuns, afirmando que os Aliados ocupariam apenas a costa italiana,
A ganância e ambição do líder fascista seriam seus motivos de queda, visto que a entrada da Itália no Eixo como uma forte potência, coligado a Adolf Hitler, culminou numa derrocada crise política, social e econômica interna. Em 10 de julho daquele ano, os Aliados chegaram à Sicília, tomaram-na sem possibilidade de defesa, mostrando a vulnerabilidade do exército fascista e a confusão que já se apoderava dos seus líderes. Os seguidos fiascos resultaram em críticas ferrenhas por parte da população e pela corte política. A situação de miséria assolava a Itália; muitas famílias perdiam seus entes nos campos de batalha e pela guerra; a incapacidade do Duce era exposta a cada ofensiva mal-sucedida
Aproveitando o ensejo, Vittorio Emanuele III e o Grande Conselho Fascista retiram seu apoio e transferiram ao cargo de chefe do governo o Marechal Pietro Badoglio. No dia 24 de julho de 1943, às 17h, os membros do Grande Conselho reuniram-se no Palazzo Venezia. Por mais que Mussolini tentasse convencer o conselho através do levantamento de suas atribuições e contribuições, e tentasse abarcar os indecisos através do dilema entre “paz e guerra”, não houve saída: depois de intermináveis horas de reunião, liderado por Dino Grandi, o Grande Conselho votou e removeu Mussolini da chefia do governo, sob apoio formal do rei, que o prendeu no dia seguinte.
A partir desse fato, o declínio do fascismo italiano era certo e concreto, seus antigos adeptos e apoiadores foram se calando gradativamente, e a força que sustentava toda a simbologia construída pela ideologia ruiu. Mesmo assim, em novembro daquele ano, após seu resgate patrocinado pelas forças alemãs e fuga, Benito Mussolini se pronunciou conclamando a população italiana a se rebelar contra o rei e apoiar o novo governo instaurado por ele, ao norte da península, a “República de Salò”.
Essa foi a última tentativa de um já saturado Mussolini em dar um golpe e alimentar seus devaneios de controle, apoiado por Hitler – que visava manter o domínio no norte da Itália. A nova fase do fascismo pós Mussolini foi marcada por instaurar um governo fantoche sob a batuta de um louco, que não tinha poderes legais ou apoio da população, mas acreditava piamente na sua fantasia megalomaníaca. O resultado disso foi que o golpe não se concretizou e o fim do líder fascista foi tão deplorável quanto seus ideais.
O fascismo contemporâneo
Observamos que os estados animosos de um permanente retorno do fascismo tomam conta dos ambientes políticos em todo o mundo. Mesmo após oitenta e um anos da queda do fascismo na Itália – que não quer dizer que sua ideologia e seus adeptos tiveram fim – políticos, inclusive no território italiano, assumem uma tendência reacionária que constrói paralelismos com os atos de outrora. Diante dos fatos, nos perguntamos: podemos veementemente apontar semelhanças entre aquele e o nosso período? Para responder tal pergunta, lembremos das atuais figuras políticas do cenário europeu que reforçam nossa hipótese inicial: um “eterno retorno” do fascismo.
- Marine Le Pen pode encabeçar com louvor a fila de políticos com ideais extremistas e posturas ultrarradicais. Filha de Jean–Marie Le Pen, político declaradamente anti–imigratório e antissemita, defende uma “desislamização” da França, e já propôs a criação de campos permanentes para imigrantes ilegais enquanto estiverem no processo de extradição. Sua justificativa se embasa num discurso de “invasão muçulmana” na França, que se desenvolve numa ameaça à cultura francesa e a civilização do país. Para além, sua defesa em reinstaurar a pena de morte no país corrobora com a narrativa de não haver políticas de punição justa para infratores, que em seu discurso são favorecidos com leis muito brandas e permissivas. Os imigrantes e seus descendentes, mesmo sendo eles nascidos na França, são vistos com desdém e marginalidade. Ao defender somente para os franceses o acesso aos serviços de Estado, segundo o professor de Relações Internacionais Alberto Maringoni da UFABC, Marine repete componentes raciais que foram características do “período de ouro” do fascismo.
- Maximilian Krah faz a personalidade preferida das últimas tendências jovens no que diz respeito à política. Popular no TikTok, encabeça discursos motivando autenticidade, virilidade, força e confiança. Constantemente prega um fortalecimento e centralidade do Estado em contraposição às influências externas do Parlamento Europeu. Numa de suas mais polêmicas declarações públicas, afirmou que dentro da SS nem todos eram criminosos, ou seja, numa das forças paramilitares nazistas responsáveis pelo Holocausto nem todos tinham a intenção de matar ou cometer atrocidades. Reduzir o nefasto crime humanitário do holocausto em meros fatos isolados provocados por alguns poucos motivou o próprio partido a proibir suas aparições públicas na campanha ao Parlamento Europeu. Com os outros aliados da UE, o clima não é dos melhores, inclusive com Marie Le Pen, devido aos seus escândalos envolvendo acusações de espionagem contra a China e recebimento de fundos suspeitos da Rússia.
- Giorgia Meloni, sem dúvida, é uma das figuras de mais destaque entre os polêmicos líderes europeus que flertam com os ideais fascistas. A primeira–ministra italiana é constantemente rotulada como fascista, desde a sua vinculação política, o partido Fratelli d’Italia, que possui suas raízes políticas no Movimento Sociale Italiano, surgido do que restou do fascismo de Mussolini. O símbolo do partido remete a um fogo que arde em chamas do túmulo de Mussolini. Num livro de 2021, intitulado I Am Giorgia, a política frisa que não é propriamente fascista, mas se identifica como sendo herdeira do movimento e de Mussolini, assumindo o lema controverso e batido “Deus, Pátria e Família”, além da atuação ferrenha contra os direitos humanos e os movimentos LGBT. O medo do rótulo de fascista até intimida, mas não há em sua postura vergonha em assumir sua admiração pelo totalitarismo do governo fascista de Mussolini e sua atuação.
- Viktor Orban, o húngaro que é contra a “mistura da população” e o incentivo da migração, frisa que “o povo da Hungria não é e nem quer se tornar mestiço”. O lema “Deus, Pátria e Família” é continuamente lembrado, como um mantra que reforça o estado hipnótico da parcela da população adepta. Sua agenda inclui o alinhamento dos interesses com a burguesia, a perseguição aos imigrantes e às mulheres, além do racismo presente em suas falas. Importante lembrar que a Hungria viveu sob uma ditadura fascista entre 1920 até 1944, sob liderança de Miklós Horthy. A ala reacionária apoiadora de Orban remonta a essa época como sendo de “prosperidade e bonança”, tanto na parte econômica quanto no desenvolvimento humano. Para completar, a disseminação de notícias e declarações falsas tempera o ideário extremista de direita na Hungria, encontrando nas raízes fascistas seu espelho e foco.
O fascismo se reinventa conforme as demandas dos novos tempos. O sentimento de derrota, de desilusão, de repulsa às velhas classes dirigentes, adicionado ao sentimento antipolítico cria um terreno fértil análogo ao do início do século passado. Isso culmina num desprezo pelas instituições democráticas, que podem ser traduzidas nas ações de violência desmedida.
A crise econômica solapa a burguesia local e a população mais carente, que virão presas fáceis de políticos extremistas, que criam atalhos retóricos para convencer do pior. Quem não concorda e se manifesta contra os ideais autoritários é atacado, ameaçado, perseguido e insultado pelos extremistas. A “arena” da guerra na atualidade são as redes sociais, muito utilizadas como ferramentas de disseminação de ódio e como construtoras de narrativas.
Curiosamente o pesadelo que acreditávamos ter sido apagado da nossa realidade assumiu outra forma, aderiu novos trajetos e manipulou novos terrenos. Na Europa, a preocupação com os novos blocos da extrema–direita na UE e nas chefias de governo gera um clima instável e incômodo, envolto no medo de “eterno retorno” do totalitarismo fascista. O que se pode fazer na contenção desse avanço?
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF).