A quem serve o Banco Central Europeu
Alheio a deliberações democráticas, o Banco Central Europeu precisa encarnar o objetivo da estabilidade monetária, a qual conduziu a zona do Euro para a beira do abismo. Entretanto, a crise reforçou o poder do BCE a ponto de, às vezes, a sorte dos assalariados do Velho Continente parecer ser jogada em FrankfurtFrançois Ruffin|Antoine Dumini
(Jean-Claude Trichet ai deixar o encontro de líderes da zona do euro em Bruxelas)
No primeiro andar do Banco Central Europeu (BCE), em Frankfurt, Jean-Claude Trichet entoa – em inglês – seu bordão sobre as “reformas estruturais”. Ele o recita de cor há oito anos, quando de sua primeira intervenção como presidente do BCE diante da mídia. Argumenta em favor de “reformas estruturais no mercado de trabalho”. Seu predecessor, Wim Duisenberg, recitava esse salmo todos os meses, desde o lançamento do euro.
Mas nesta quinta-feira, 8 de setembro de 2011, ele foi mais preciso: “Devemos ir em direção à eliminação das cláusulas de indexação automática dos salários e reforçar a política dos acordos de empresa por empresa, de maneira que os salários e as condições de trabalho possam se adaptar às necessidades específicas das empresas. Essas medidas devem ser acompanhadas de reformas estruturais, incluindo a liberalização de profissões fechadas e, quando for apropriado, a privatização de serviços hoje fornecidos pelo setor público, de maneira a facilitar os ganhos de produtividade e sustentar a competitividade”.
O deputado do Partido Verde, Pascal Canfin, presente no auditório, comenta: “É a repetição de um mesmo discurso, do mesmo jargão, desconectado da realidade”. O vice-presidente da comissão especial sobre a crise financeira, econômica e social no Parlamento de Estrasburgo prossegue: “Trata-se de uma agenda totalmente ideológica, que não tem nenhuma relação com as causas da crise. Eu não vejo em que sentido flexibilizar o mercado de trabalho, sucatear os serviços públicos, ou incentivar os acordos ao nível da empresa sobre o direito do trabalho respondem à desregulamentação financeira. Os dirigentes do BCE desenvolvem o programa do FMI com seus planos de ajuste estrutural, que amplamente fracassaram. Mas pouco importa, eles recomeçam”.
Janela de oportunidade
Acontece que o BCE dispõe agora de meios de transformar suas ideias em realidade. Seus experts – ao lado dos outros missionários da bem-amada “troika”, os do FMI e os da Comissão Europeia – impõem-se como governos paralelos em Atenas, Dublin e Lisboa. Eles colocam os ministérios sob sua tutela, anunciam seus “quinze mandamentos”: ampliar o desemprego técnico, reduzir as aposentadorias rurais, diminuir as despesas públicas etc.
Segundo o jornal francês Le Figaro, “o BCE colocou de facto a Itália sob sua tutela, enquanto o ex-comissário europeu Mario Monti denunciava a intervenção de um poder estrangeiro”.1 Aqui não se trata mais de “conselhos”, como pretendem fazer crer os dirigentes do BCE, verdadeiros profissionais do eufemismo. Pode-se falar de “ordens” ou de “exigências”. Essas são exatamente as condições.
O jornal destaca que “o BCE pede para que se tornem mais flexíveis os trâmites de demissão de funcionários”, mas também “que privilegie os acordos ao nível das empresas em relação às convenções salariais ao nível setorial negociadas em escala nacional”, que “privatize as empresas municipais (transportes públicos, estradas e eletricidade)”. Recomenda ainda “proceder por decreto, de aplicação imediata, e não por projeto de lei, pois o Parlamento sempre toma muito tempo para aprovar”.
“Até agora, o BCE não tinha nenhum poder para influenciar verdadeiramente”, analisa Clément Fontan, pesquisador em ciência política. “No geral, o banco falava, os dirigentes políticos o escutavam sem muita atenção, dizendo: ‘Bom, é normal, é o BCE, eles são conservadores, nós os escutamos, lhe fazemos um agrado’.”
Chega a crise: os países da zona do euro são atacados pelos mercados financeiros. No começo, o BCE se recusa a ajudá-los, imobilizado sobre seu dogma de independência e não intervenção. Diante da pressão dos governos e dos bancos, em meio ao pânico geral dos mercados, ele cede finalmente. O banco se viu, então, constrangido a comprar títulos do Tesouro dos Estados em dificuldades. Mas ele impõe que os países afetados serão obrigados a aplicar as “reformas estruturais” que sempre defendeu. “Estamos em uma situação tipo Argentina-FMI no fim dos anos 1990, em que o credor exerce uma forte pressão sobre o tomador de empréstimo para estar seguro de que ele ponha em prática as reformas consideradas ‘boas e necessárias’. No final, a crise foi uma janela de oportunidade para o BCE”, conclui Fontan.
A “cidade dos bancos”, também apelidada de “Bankfurt”, é onde o BCE está instalado, não por acaso. É aqui, atrás desta mesa redonda, nesta sala do 36º andar, que os dezessete governos dos bancos centrais nacionais – francês, alemão, eslovaco etc. − reuniram-se nesta manhã e decidiram “manter as taxas inalteradas”.
Em um debate, Trichet defende que os acordos com trabalhadores de empresa por empresa, a privatização dos serviços públicos e a flexibilização salarial são simplesmente os meios que seus colegas e mesmo ele acreditam ser importantes para crescer mais rapidamente na Europa e criar mais empregos.
Mas, respondem-lhe, isso parece com os planos de ajuste estrutural do FMI nos anos 1980: liberalização, desregulamentação… Esse programa não funcionou na América Latina nem na África, por que daria certo hoje na Grécia, na Espanha e na França?
Trichet refuta. Os programas do FMI teriam, ao contrário, dado certo. “Quais são os países que destacadamente resistiram à crise? São os emergentes, são os da América Latina, que, graças a suas reformas estruturais, encontraram-se em uma situação de resistência muito mais forte. Nós observamos um incrível comportamento da África. Existem reformas que permitem às forças produtivas se libertar.” Mesmo o economista Milton Friedman, antes de sua morte, não ousava manter uma atitude tão arrogante.
Mas por que, pergunta-se ainda a Trichet, o senhor não exige uma elevação dos impostos sobre as empresas – que estava em 50% nos anos 1980, hoje é de 33,3%, mas na verdade é de 7% para as empresas do CAC 40?
“É preciso sempre ver o interesse superior”, responde ele um pouco entediado com nossa sinceridade. “A justiça social é essencial, mas não é taxando as empresas mais do que em outros países, mais do que em países emergentes, que vamos ter empregos na França”. E ele não tem culpa se – por feliz acaso – o “interesse superior” coincide com os das classes superiores…
Também é por simples bom senso que ele perdeu a paciência na emissora Europa 1, em 20 de fevereiro passado: “Aumentar os salários na Europa seria a última besteira a fazer”. É seu sentido de justiça social que o leva a defender o aumento da idade para a aposentadoria na França, na Irlanda, em Portugal etc. − enquanto ele acredita “não ser desejável” uma taxa sobre as transações financeiras.
Mas tais comparações são de “caráter inteiramente político”, reclama Trichet. E nosso dirigente protesta: “Não sou político”. Ele reivindica um “apolitização” do BCE, instituição colocada a serviço dos “dezessete governos, de 332 milhões de cidadãos, de todos os matizes”. Além disso, ele insiste, “não desejo que me questionem sobre assuntos políticos”.
“Não temos escolha”
Até o protesto internacional contra o poder das finanças, em 15 de outubro passado, que viu o grupo Ocupar Frankfurt mobilizar vários milhares de manifestantes em frente da Eurotower, raros foram os cortejos a desfilar pelas janelas da Kaiserstrasse, n° 29. Como expressou o sociólogo Frédéric Lebaron, “o BCE construiu sua invisibilidade. Ele se colocou em uma posição de expertise, acima dos partidos e dos Estados”.2 Seu distanciamento geográfico e a complexidade aparente dos assuntos de que ele trata o encobrem dos cidadãos.
É assim: as orientações monetárias – um euro forte, a luta contra a inflação – não são mais parte da política. Eis porque ele entrega suas decisões orçamentárias, fiscais, sociais e monetárias nas mãos de técnicos, em Frankfurt especialmente, que efetuam essas escolhas nos assegurando justamente de que “não temos escolha”.
Trichet deve, no entanto, enfrentar uma “oposição”. Esta não vem dos trabalhadores − é interna às finanças. Reunidos em torno dele, os jornalistas econômicos não importunam com a taxa de desemprego em Portugal, os remédios contra o diabetes que não serão reembolsados na Grécia, as aposentadorias que diminuem na Irlanda etc. Não, a questão que irrita o presidente é feita pelo enviado do jornal econômico alemão Börsen Zeitung, em 8 de setembro: ao comprar as dívidas dos Estados em dificuldade, o BCE não troca seu statusde “âncora de estabilidade” pelo de bad bank?
No dia seguinte a essa reunião, onde se decidiu a compra de títulos do Tesouro dos países mais frágeis da zona do euro, o alemão Jürgen Stark, economista-chefe do BCE e porta-voz dos ortodoxos, anunciava sua demissão da diretoria. Da mesma forma, em fevereiro passado, Axel Weber declarou que havia saído de seu cargo de presidente do Bundesbank (Banco Central alemão) e, portanto, de seu assento no conselho de presidentes de bancos centrais do BCE, por manifestar seu desacordo com a estratégia – julgada como laxista – da instituição de Frankfurt. Ele recusava igualmente suceder Trichet, cujo mandato chega ao fim em 31 de outubro. Por mais cômico que isso possa parecer, ele criticou o chefe do BCE por sua falta… de ortodoxia!
No primeiro andar da Eurotower fica a sala dos mercados. Nada de prestigioso, um andar banal com uma centena de computadores. Atrás dos teclados, homens de terno e mulheres de tailleur. Um televisor em que desfilam os preços das ações da Bolsa. É aqui que são “organizadas as concessões de crédito aos bancos comerciais”, explica Paul Mercier, conselheiro principal de operações de mercado. É aqui – de forma clara – que se emite moeda na Europa. “Todas as terças, realizamos uma nova concessão de crédito. O board[conselho de presidentes de bancos centrais] decide quanto se vai colocar no mercado.” (ver mais no boxe)
“Nas circunstâncias atuais, decidimos permitir que os próprios bancos determinem quanto querem emprestar. São medidas um pouco especiais que tivemos de tomar por causa da crise financeira.”
“Nesse momento”, acrescenta Ivan Fréchard, “é muito simples: fornecemos toda a liquidez que os bancos nos pedem. É a política do full allotment”, que poderia traduzir-se como “até se encher”. Se para os Estados os empréstimos são feitos sob condições mais duras, no que concerne aos bancos, por outro lado, o crédito flui à vontade.
Trichet e seu sucessor, Mario Draghi, não endereçaram nenhuma carta aos chefes da Société Générale, do HSBC, do BNP-Paribas exigindo, já que o BCE sai correndo em seu socorro, que seus estabelecimentos se retirem dos paraísos fiscais, parem de especular sobre as dívidas soberanas, financiem a economia real. Nenhum “homem de preto” do BCE baixou na sede do Crédit Agricole ou do Commerzbank para destrinchar suas contas com o mesmo ardor com que foram ao Ministério da Saúde, em Atenas.
Liquidez, mas com o cano furado
O deputado Pascal Canfin resume: “Para salvar o sistema, o BCE abriu a torneira da liquidez. Mas o problema é que o cano é furado: o dinheiro que flui por aqui não vai para a economia real. Porque entre os dois, há os bancos comerciais, que preferem ainda hoje a especulação ao investimento. O papel do BCE é fazer que a água flua na boa direção – e há dois anos ele não tomou qualquer providência para tal”.
O BCE tomou partido, segundo o deputado Miguel Portas (da Esquerda Unida Europeia). “Foi imposto um plano de resgate em Portugal, mas dos 78 bilhões de euros emprestados pelo BCE, 54 bilhões foram entregues diretamente aos credores, em uma clara prioridade dada aos bancos que detêm dívidas soberanas. E, para financiar essa operação, cortam-se os salários, as aposentadorias, aumentam-se em 17%, 18%, 19% as contas de água, gás, eletricidade. A TVA (taxa por valor agregado) atinge 23%. E tudo isso enquanto o grande capital está totalmente preservado – em nome da necessidade de atrair os investidores.”
O Banco Central Europeu, para fazer valer sua “independência”, lembra sem parar o artigo 107 do Tratado de Maastricht: “Nem o BCE, nem um banco central nacional, nem um membro qualquer de seus órgãos de decisão podem solicitar ou aceitar instruções de instituições ou órgãos comunitários, de governos, de Estados-membro ou de qualquer outro organismo”. Uma independência total, portanto, em relação ao poder político.
O novo presidente do BCE, Draghi, não deveria se assustar com o poder financeiro que tinha Trichet: ele, como vice-presidente do escritório europeu do Goldman Sachs, era encarregado principalmente de dívidas soberanas no momento em que o banco de investimentos maquiava as contas da Grécia. Otmar Issing, economista-chefe do BCE entre 1998 e 2006 e pai espiritual do euro, havia percorrido o caminho inverso, tornando-se conselheiro internacional do Goldman Sachs. Já Weber, ex-presidente do Bundesbank e representante da Alemanha no conselho de presidentes de bancos centrais do BCE, também fez sua escolha. Em vez de voltar à universidade, ele aceitou a vice-presidência do banco suíço UBS – suspeito de favorecer evasões tributárias no valor de 1,7 bilhão de euros e outras stock-options.
Nenhum desses dirigentes, por outro lado, decidiu até agora se juntar a um sindicato francês, alemão ou italiano. A “independência” do BCE ainda está salva.
François Ruffin e Antoine Dumini são jornalistas.