A racionalidade de Pyongyang
As ameaças e o embargo norte-americanos respondem às provocações e aos testes militares norte-coreanos. Depois de ter enviado um porta-aviões ao Mar do Japão, Trump exige um comprometimento mais firme da China. Mesmo que Pequim endureça as sanções contra Pyongyang, é pouco provável que os líderes coreanos renunciem ao programa nuclear, que se tornou seu seguro de vida
A retomada da tensão na Península Coreana, que se seguiu ao desfile militar espetacular organizado por Pyongyang e ao envio de uma frota ao largo de sua costa por Washington, não foi em si uma novidade. O que na realidade se revela novo é que a demonstração de força era um blefe: o porta-aviões e sua escolta se encaminhavam para o Oceano Índico… As diatribes e ameaças de Donald Trump e Kim Jong-un fizeram crescer ainda mais a febre e os riscos de uma escalada na região. A manobra grosseira de Trump revelou principalmente, como se fosse necessário, que o novo presidente ignora a complexidade do caso norte-coreano e até mesmo os fatos mais elementares da história da península, que, segundo ele, “outrora foi uma parte da China”.1 Isso nunca aconteceu.
De fato, a Coreia constitui um foco de tensão permanente desde a suspensão da guerra entre o Norte e o Sul (1950-1953) com um armistício que nunca foi seguido de um tratado de paz. Além disso, as ameaças de intervenção militar norte-americana não datam de hoje: elas foram brandidas em 1994 por ocasião da primeira crise nuclear, quando a República Popular Democrática da Coreia confirmou que havia produzido plutônio. O confronto foi evitado por pouco pela visita-surpresa do ex-presidente norte-americano Jimmy Carter a Pyongyang.
A impaciência de Trump em romper com a “estratégia da paciência” (um imobilismo diplomático com sanções) da administração Obama, que em nada deteve a progressão norte-coreana em matéria nuclear e balística, pode fazê-lo cometer erros de julgamento. A ameaça ou o recurso à força não serão suficientes para resolver sozinhos o problema. Desde sua fundação, em 1948, a Coreia do Norte ergue a cabeça diante das grandes potências: não somente dos Estados Unidos, mas também de seus mentores de outrora, a China e a União Soviética. Hoje, ela demonstra a mesma feroz independência ao desafiar Washington e Pequim.
A oportunidade perdida de 1994
Para além da personalização da crise, reduzida a uma “queda de braço” entre dois líderes impulsivos, a fase atual de tensão revela o impasse a que conduziram mais de 25 anos de uma política – a dos Estados Unidos e de seus aliados – que, centrada na não proliferação, ignorou quais motivações levariam os líderes norte-coreanos a desenvolver armas nucleares.
Prevendo que só poderiam contar com suas próprias forças, eles colocaram em prática, no fim dos anos 1980, com a ajuda dos soviéticos, um programa nuclear civil que depois orientaram, clandestinamente, para uso militar. O colapso da URSS e a evolução da China, que resultaram em vulnerabilidade crescente para o país, apenas os incentivaram a prosseguir em seu programa, com a cooperação sobretudo do Paquistão. Os ataques norte-americanos no Iraque, Afeganistão e ultimamente na Síria fortaleceram uma convicção deles: apenas a posse de armas nucleares poderia evitar tal sorte.
Talvez tivesse sido possível, nos anos 1990, conseguir que a Coreia do Norte renunciasse a suas ambições nucleares em troca de garantias de segurança e de ajuda econômica. Esse era o objetivo do acordo de 1994, que previa um congelamento de seu programa de produção de plutônio em troca da normalização de suas relações com os Estados Unidos, da eliminação das sanções e do fornecimento de duas centrais de água leve, comportando menos riscos de contaminação. Os norte-americanos nunca respeitaram seus compromissos. Rapidamente, os coreanos também deixaram de respeitar. Eles procuraram se dotar de equipamentos para o enriquecimento do urânio, ao mesmo tempo que mantinham paralelamente a interrupção do programa de produção de plutônio sob a vigilância da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). Até que George W. Bush, em 2002, declarou nulo o acordo de 1994 sob o pretexto de que o programa de enriquecimento de urânio teria entrado numa fase operacional, o que não era o caso. Assim, essa segunda crise nuclear norte-coreana teve por origem uma mentira de Estado para ir para o confronto na esperança de derrubar o regime. Essa estratégia teve efeito contrário àquele buscado: libertada do acordo de 1994, e apesar das sanções internacionais, Pyongyang procedeu a seu primeiro teste atômico em 2006.
Hoje, a situação é diferente. A posse de uma força de dissuasão se tornou um elemento constitutivo do país, inscrito em sua lei fundamental. E, ainda que permaneçam incertezas sobre sua capacidade de miniaturizar ogivas nucleares e sobre seus progressos em matéria de balística, a nuclearização da Coreia do Norte é uma realidade. Em outubro de 2016, o ex-diretor de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, James Clappe, não escondeu que fazer Pyongyang desistir de sua força de dissuasão era “provavelmente uma causa perdida” (Agence France-Presse, 26 out. 2016).
A política norte-americana tem uma única obsessão, a não proliferação, e acalenta a ideia de que o regime deve entrar em colapso. Ainda que desmentido pelos fatos há vinte anos, esse pensamento retrógrado está na origem de uma estratégia de curto prazo que oscila entre o diálogo e o confronto, enquanto a de Pyongyang se inscreve numa perspectiva de longo prazo.
A Coreia do Norte realizou cinco testes nucleares e um sexto parece provável. Desde a segunda crise desencadeada por Bush, os programas nucleares e balísticos norte-coreanos não são mais – se é que alguma vez foram – uma moeda de troca numa negociação: eles são parte de uma necessidade estratégica. Renunciar a seu armamento seria um suicídio para o regime: não somente ele não poderia mais justificar o sofrimento imposto à população para privilegiar a defesa do país em detrimento do bem-estar, mas acima de tudo se tornaria vulnerável a um ataque externo, como o Iraque.
Partindo de uma constatação do fracasso da política conduzida pelos Estados Unidos e da necessidade do regime coreano de manter uma força de dissuasão, qual é a posição nessa crise dos protagonistas regionais, as duas Coreias e a China?
Qualificado exaustivamente de irracional e imprevisível, o regime de Pyongyang segue uma linha política da qual não se desvia. Ele pretende ser reconhecido como uma potência independente, com armas nucleares; obter garantias de segurança; normalizar suas relações com Washington, pavimentando assim o caminho para um reconhecimento internacional; buscar a recuperação econômica iniciada por reformas realizadas ao longo dos dez últimos anos e em especial desde a chegada ao poder de Kim Jong-un.2 Estas permitiram o surgimento de uma economia híbrida que mistura planejamento e iniciativa privada. Testemunha disso é a fulgurante transformação de Pyongyang, eriçada de arranha-céus, cheia de novas avenidas e dotada de shoppings centers, restaurantes e parques de diversão. Uma melhora menos espetacular, mas igualmente perceptível no interior, ainda que persista a escassez.
Essa recuperação econômica é essencial à estabilidade do regime. Kim Jong-un eliminou brutalmente qualquer oposição interna eventual e tem o país nas mãos. As tensões e a adversidade o ajudam: animada por um patriotismo visceral, próprio dos coreanos em geral, mas levado ao extremo no Norte, a população é mantida em uma mentalidade de cerco permanente. As ameaças de bombardeios preventivos só fazem avivar sua sensação de insegurança.
Outra constante da política norte-coreana: a afirmação da independência nacional, que significa uma rejeição da secular relação de dependência da península em relação à China. É fácil – e não completamente errado – jogar sobre Pequim, como faz Washington, a responsabilidade pelo fracasso da política de sanções que atingem a Coreia do Norte. A China aprova algumas no Conselho de Segurança, mas as aplica com moderação.
No entanto, se as relações se situavam outrora no registro das “relações entre países irmãos”, elas nunca foram de uma cordialidade a toda prova. A geração dos companheiros de armas da guerrilha contra o ocupante japonês depois da Guerra da Coreia (1950-1953) desapareceu – mesmo na época, velhos rancores pairavam sobre a amizade proclamada. Hoje, as relações são baseadas nos interesses de ambas as partes. A normalização entre Pequim e Seul desde 1992 mostrou isso, para grande desgosto de Pyongyang.
Além disso, a China tem prioridades na Coreia do Norte diferentes das dos Estados Unidos, algo de que Pyongyang tira partido: os líderes chineses não são favoráveis a uma Coreia nuclear, porém querem ainda menos estrangular o regime e desestabilizá-lo. Seu colapso implicaria vários riscos: uma guerra civil à sua porta, um afluxo de refugiados que poderia desestabilizar a região fronteiriça de Yanbian, onde vive uma importante minoria de origem coreana, e acima de tudo uma eventual reunificação sob a égide da Coreia do Sul – o que significaria a presença em sua fronteira de um aliado dos Estados Unidos, ou até mesmo das próprias forças norte-americanas. Em 1950, a China perdeu 1 milhão de homens para repelir as forças aliadas (norte-americanas) que chegaram às margens do Rio Yalu (Amnok, em coreano). É improvável que hoje ela aceite mais facilmente essa situação.
Interesses chineses no conflito
Pequim certamente nada tem a ganhar com uma desestabilização da região, e o presidente chinês, Xi Jinping, se mostra mais firme em relação a Pyongyang. A China suspendeu no início de abril as importações de carvão (ainda que as trocas comerciais de outros produtos tenham aumentado). Vozes se fazem ouvir no meio intelectual chinês para criticar qualquer moderação em relação a Pyongyang. É o caso do historiador da Guerra da Coreia Shen Zhihua, da Universidade de Xangai, que, em uma conferência em março, em Dalian, declarou que a Coreia do Norte era agora um “fator de desestabilização na fronteira da China”, colocando em perigo “os interesses nacionais fundamentais” desta. Uma opinião de peso, que mostra também que a questão coreana figura entre os raros temas de debate permitidos pelo poder. Mas essas críticas têm um impacto sobre a liderança do partido e a hierarquia militar? Ao reforço (moderado) das sanções chinesas, Pyongyang respondeu com uma saraivada de ataques verbais de uma virulência desconhecida desde a Revolução Cultural, por novos disparos de mísseis e pela recusa em receber os emissários de Pequim. Bravata?
Por enquanto, a política chinesa permanece inalterada: os Estados Unidos e a Coreia do Norte devem negociar. Washington quer dobrar Pyongyang com o uso da força; Pequim quer fazê-lo evoluir economicamente integrando o país no desenvolvimento regional e assim reduzir gradualmente o risco de desestabilização que ele representa. Isso significa não fazer da questão nuclear uma prioridade e tratá-la no âmbito de uma negociação global, enquanto os Estados Unidos exigem como condição prévia a qualquer negociação que a Coreia do Norte renuncie a suas armas nucleares.
A essas incógnitas se junta outra: a posição da Coreia do Sul após a eleição presidencial de 9 de maio. A linha dura adotada pela presidente destituída, Park Geun-hye, não será a do candidato de oposição mais bem colocado, Moon Jae-in, defensor de uma retomada do diálogo com Pyongyang e de uma renegociação do acordo para a introdução do míssil norte-americano (Thaad) na Coreia do Sul, o que irrita extremamente Pequim. Até a eleição, o vácuo político à frente do Estado priva Seul de qualquer iniciativa. Depois, os Estados Unidos correm o risco de ficar no contrapé de seu aliado coreano. Além disso, as falsas informações do envio de uma frota aeronaval norte-americana na costa da península têm irritado a opinião pública do Sul.
Qualquer política que vise acalmar as tensões pressupõe levar em conta três parâmetros: os líderes norte-coreanos não são irracionais, mas determinados a assumir riscos; o regime não está em via de entrar em colapso; ele não vai desistir de suas armas nucleares. Outro elemento que Washington deve ter em mente: qualquer ataque à Coreia do Norte seria seguido de uma réplica de Pyongyang. Ora, Seul se encontra a 50 quilômetros das baterias norte-coreanas, e as bases militares norte-americanas estão ao alcance de seus mísseis. A margem de manobra se mostra pequena e os riscos são grandes.
*Philippe Pons é jornalista e autor de Corée du Nord. Un État-guérrila en mutation [Coreia do Norte. Um Estado-guerrilha em mutação], Gallimard, Paris, 2016.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}