A resiliência bolsonarista e uma nova disputa pelo povo
Se a sociedade brasileira não é composta de mais de 50 milhões de fascistas, o que explica a adesão em massa ao bolsonarismo?
Passados alguns dias do primeiro turno, o choque inicial com a votação surpreendente de Jair Bolsonaro e de seus aliados que concorriam a governos estaduais e aos congressos deu lugar à apreensão, ao medo e à ansiedade diante da possibilidade que antes parecia irreal de reeleição. Mas outro sentimento contribui para o clima de consternação que tem marcado o desenrolar lento e insuportável dos dias que nos separam de 30 de outubro: a incompreensão acerca das dezenas de milhões de votos dados à expressão tosca e violenta que a extrema-direita assumiu no Brasil. Mas se, afinal, a sociedade brasileira não é composta de mais de 50 milhões de fascistas, o que explica a adesão em massa ao bolsonarismo?
Em um cenário polarizado, em que a especulada terceira via nunca decolou e as opções reais se reduziram a Lula e Bolsonaro, não é difícil entender a escolha racional de parcelas importantes das classes dominantes. De grandes produtores agrícolas que não querem seus ganhos constrangidos por qualquer regulação ambiental a patrões que temem mais direitos trabalhistas ou tributos sobre seus lucros, o voto em Bolsonaro é um voto de classe.
Diante de avanços culturais que desestabilizam hierarquias tradicionais, por outro lado, o voto em Bolsonaro é também um voto que busca preservar relações de poder apoiadas em diferenças de gênero, raça e orientação sexual, entre outras.
Até aí, a distribuição das opções eleitorais dessa eleição não varia muito em relação a uma história recente em que a disputa política brasileira foi organizada a partir de uma clivagem que sempre teve o PT em um dos campos do conflito. Bolsonaro – ou o bolsonarismo – seria apenas a nova roupagem do campo conservador. Seus votos de hoje são os votos do PSDB de ontem.
Essa leitura, embora não absurda do ponto de vista estatístico, encontra dois problemas principais. O primeiro, e mais óbvio, é que o bolsonarismo não é o PSDB, apesar de todos os esforços de normalização do projeto antidemocrático a que parte das elites se prestam. O segundo, e mais intrigante, é explicar o apoio expressivo de Bolsonaro entre os setores médios e populares. Embora perca de Lula entre os mais pobres, o apoio de parte deles ao atual presidente não é desprezível. E isso apesar de um governo trágico e de uma agenda econômica claramente antipopular. Como?
Várias explicações possíveis se sobrepõem. Dos efeitos do controle da máquina pública, turbinada pelo orçamento secreto, à relação construída com importantes lideranças e denominações evangélicas, passando pelo uso competente, mesmo que desonesto, das redes sociais. Mas há uma hipótese que tem escapado ao debate e que parece importante para entender o bolsonarismo, um fenômeno político que não teria a relevância que tem se não fosse também popular e se movimentasse também de baixo para cima. Uma hipótese que diz respeito à sua relação com a política – ou com a visão que se tem dela em meio à crise da democracia liberal.
Com a disseminada descrença na política como um instrumento de organização e transformação da realidade, pouca expectativa é depositada em projetos, lideranças e partidos políticos. O sistema parece corrompido no seu topo, com atores movidos por interesses pessoais tomando decisões em detrimento dos de baixo.
Mas também na sua base, com relações mediadas por ganhos paroquiais e escusos. A política, na periferia de grandes cidades e nos rincões do país, é comumente confundida com mais um meio de obtenção de pequenas vantagens materiais. A disputa de programas e projetos passa ao largo de ganhos imediatos, como da pessoa que ganha um trocado para colocar um adesivo de um candidato no seu carro.
Lula, querendo ou não, já foi assimilado a esse sistema. Embora sabidamente controversas, a operação Lava Jato e a sua prisão são símbolos máximos disso. Já Bolsonaro, parlamentar com diversos mandatos e presidente há quatro anos, não foi. Sua postura irreverente, para não dizer irresponsável, serve para isso.
A gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro é exemplar do que ele é e projeta ser. O esperado para qualquer estadista seria unir o país em torno do combate à doença. O que ele fez foi se render ao fatalismo de que não havia nada a ser feito, de que milhares de pessoas morreriam independentemente das ações do governo. Para quem já enfrenta as contingências da vida no cotidiano, é como se não fizesse muita diferença.
As ações de Bolsonaro diante da Covid-19 – ou a falta delas – não são centrais no debate eleitoral. Assim como a economia não parece receber a atenção devida. Claro que questões como diminuição da renda, aumento da inflação e precarização do trabalho preocupam. O esforço em baixar o preço dos combustíveis e a flexibilização da Constituição que permitiu ao presidente expandir o Auxílio Brasil são reflexos disso.
Mas diferentemente do que somos levados a imaginar, ou desejar intuitivamente, a degradação das condições de vida não promove mecanicamente vontade de mudança. O ímpeto de transformação emancipatória não se alimenta do agravamento da pobreza e das desigualdades. Pelo contrário, quanto maior a ameaça e a insegurança, maior a angústia de preservar o pouco que resta. Seja em termos materiais, o que inibe movimentos bruscos, seja em termos simbólicos.
Daí o lugar central, ao longo de toda a campanha, mas especialmente na reta final do segundo turno, ocupado por valores conservadores e pela instituição familiar. Bolsonaro não promete entregar um governo melhor, mas sim preservar a família e as devidas posições sociais de cada um em uma sociedade em crise.
O bolsonarismo é forte e resiliente porque responde à fragmentação do tecido social que leva a uma relação atomizada com a política. Ele permite a imposição de grupos e, mais que isso, de indivíduos sobre outros. Do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro, do rico sobre o pobre, do evangélico sobre o umbandista. De setores aflitos com a possibilidade de perder privilégios para aqueles que historicamente estiveram abaixo deles na escala social.
Em meio a uma profunda ausência de referências e instituições comuns, ele construiu, em torno da afirmação das desigualdades e da radicalidade contra uma ordem desacreditada, uma identidade que acaba por ser coletiva, embora segmentada. Essa identidade tem espírito negativo, pois se apoia na oposição ao PT e no ressentimento com os progressos material e simbólico que seus governos representaram. Mas é também afirmativa de um projeto, por mais regressivo que ele seja.
Não deveria chamar a atenção, portanto, o fato de o bolsonarismo ser hoje o mais organizado e mobilizado dos campos políticos no Brasil. Poderíamos olhar para os índices de engajamento nas redes, de disposição em ir votar e de fazer campanha voluntariamente. Mas basta olhar para as janelas dos prédios e para os carros que ostentam, mesmo em redutos progressistas, bandeiras do Brasil de todos os tamanhos. Se não fosse Lula o adversário, teríamos alguma chance?

Daqui em diante
O principal recado que as urnas nos deram em 2 de outubro foi a consolidação do bolsonarismo, da extrema-direita, do populismo reacionário ou seja lá como o quisermos chamar, como uma força protagonista da cena política nacional.
A direita liberal, quase em extinção, virou coadjuvante e outro tipo de polarização se estabelece, mas com outro eixo gravitacional. Até pouco tempo atrás, era a partir do campo liderado pelo PT que a disputa política se organizava. De agora em diante, temos motivos para acreditar que o bolsonarismo dirige um polo inconteste. Do outro lado, a força da memória lulista entre o eleitorado mais pobre dá fôlego à esquerda, mas ela parece mais dependente de alianças e articulações para ganhar e governar.
A imagem que se desenha é diferente daquela que se vê no centro do capitalismo. Nos Estados Unidos e em grande parte da Europa, o conflito político tem se organizado a partir da contenda entre a extrema-direita e um tipo de centro liberal, que abarca forças de centro-esquerda. O lastro eleitoral da oposição democrática à direita populista nesses casos é essencialmente urbano e composto por setores de renda média e alta.
Aqui, a esquerda é sustentada por um apoio eminentemente popular, amparada pela memória de bem-estar e por uma identidade vinculada aos compromissos com os de baixo. Uma vantagem, mas que também é um desafio. Afinal, o eventual e esperado governo Lula terá de fazer valer esses compromissos, apesar das pressões contrárias.
De um lado, haverá uma direita populista organizada e mobilizada em torno de uma identidade política apoiada no conflito e na ação. De outro, supostos aliados que desde já tencionam o debate e a conformação do governo para restringir o escopo e a intensidade das mudanças em sentido redistributivo.
Como se não bastasse, a margem de manobra para uma gestão sustentada na conciliação é muito menor do que foi na primeira experiência lulista. Com crises econômicas em vista, dificilmente será possível agradar todas as forças que têm subido nos palanques. Dois riscos se impõem e não devem escapar aos olhares progressistas.
O primeiro deles é de o bolsonarismo se tornar ainda mais popular do que já é. Com a falência evidente da ideologia neoliberal, ele já abandonou parte das concessões que fez a ela. De um lado, ainda insiste em menor proteção trabalhista e ambiental para assegurar o apoio de uma elite que abandonou qualquer aposta no consenso e apelou abertamente para a coerção da força de trabalho. De outro, ignorou o teto de gastos e ampliou a distribuição de benefícios aos mais pobres.
O segundo diz respeito à forma de ação política e ao discurso que a esquerda adotará no próximo período. Ao falar reiteradamente do domingo com churrasco e cerveja, Lula se conecta diretamente com o desejo e a expectativa mais urgente do eleitorado de “melhorar de vida”. A principal contradição do lulismo, no entanto, que garantiu o seu sucesso mas permitiu a sua derrota, foi justamente a concessão resignada que fez a uma sociedade atomizada e sem espaço para grandes projetos e identidades políticas.
A força do bolsonarismo deriva exatamente da natureza coletiva, embora regressiva, de sua identidade e de seu projeto. Se a esquerda recorrer mais uma vez a saídas individuais e desprovidas de conflito e adversário, corre o risco de ficar algum tempo a reboque daquilo que a eleição, independentemente de seu resultado, será incapaz de derrotar.
Philippe Scerb é mestre pela Sciences Po Paris e doutor em Ciência Política pela USP.