A reta final da Constituinte chilena
A proposta de nova Constituição é entregue ao presidente Gabriel Boric: agora resta saber se ela passará pelo crivo popular
Após doze meses de intenso debate, chegou ao fim o trabalho da Convenção Constitucional no Chile. No dia 4 de julho, os parlamentares entregam ao presidente Gabriel Boric a nova Constituição que elaboraram para substituir a Carta Magna de 1980, estabelecida durante a ditadura militar comandada por Augusto Pinochet. Composto por 387 artigos, divididos em 11 capítulos, o novo texto constitucional procura promover a reforma do Estado chileno e a ampliação da democracia vigente no país.
Contudo, a entrega da nova Constituição ao presidente após ela ter sido ratificada por mais de dois terços dos parlamentares não assegura a sua efetivação. Diferente do que ocorre na maioria dos países, o texto formulado na Convenção Constitucional ainda precisa ser aprovado pelos cidadãos chilenos, em um referendo que será realizado em4 de setembro. Outra novidade é que desta vez o voto será obrigatório. São esperados cerca de 15 milhões de eleitores, ou seja, quase 7 milhões a mais do que os 8,3 milhões presentes na última eleição presidencial.
De acordo com as pesquisas de intenção de voto recém-divulgadas, o resultado ainda é imprevisível e a disputa entre a aprovação e o rechaço promete ser tão acirrada quanto aquela que resultou na vitória de Gabriel Boric. Apesar de 78% dos eleitores terem se manifestado a favor da elaboração de uma nova Constituição no plebiscito realizado em outubro de 2020, indicando insatisfação com a Carta em vigência e uma predisposição à mudança, somente 33% dos chilenos em condições de votar já se manifestaram a favor da aprovação. Outros 51% afirmaram que irão rechaçar a proposta, enquanto 16% ainda dizem estar indecisos.
Nesse cenário marcado pela indefinição, a disputa entre as diferentes forças políticas chilenas retorna ao âmbito da sociedade civil, onde todo o processo de transformação começou. Antes mesmo do término dos trabalhos da Convenção Constitucional, os setores conservadores e progressistas iniciaram uma batalha de narrativas que promete intensificar-se até o dia do referendo. Olhares atentos mundo afora acompanham os desdobramentos finais desse conflito, uma vez que muitas das questões políticas mais sensíveis da contemporaneidade, que não são exclusivas do Chile, estão no centro do debate.

A ampliação da democracia chilena
Em um momento que diversos países enfrentam a corrosão de seus regimes democráticos, os chilenos têm a possibilidade de dar um passo decisivo rumo ao estabelecimento de uma democracia com maior participação popular. Essa era uma das principais reivindicações presentes nos últimos eventos de revolta popular e voltou a ter sua importância destacada por Elisa Loncón, liderança Mapuche, quando ela assumiu a presidência da Convenção Constitucional: “Temos que ampliar a democracia, temos que ampliar a participação, temos que convocar até o último canto do Chile para ser parte deste processo”. O resultado desse compromisso assumido por ela e inúmeros outros parlamentares está agora consolidado em diferentes artigos da Constituição que passará pelo crivo popular.
No lugar da atual democracia representativa, o texto formulado na Convenção Constitucional determina o estabelecimento de uma democracia direta, participativa, comunitária e representativa (artigo 151), enfatizando a necessidade de inclusão dos setores historicamente excluídos da cena política (art. 153). É definida como função do Estado a criação de mecanismos de democracia direta que assegurem a participação e deliberação cidadã em assuntos políticos de maior relevância (art. 153). Além dos dispositivos participativos mais comuns, como a possibilidade de formular projetos de leis (art. 157) ou revogar leis já em vigência (art. 158) a partir de iniciativas oriundas da sociedade civil, a nova Carta designa o comprometimento do Estado com a criação de ferramentas digitais que “deverão facilitar a atuação do povo na vida política” (art. 152). Outra iniciativa importante é a criação das “Juntas Vecinales” (art. 209), órgãos representativos dos cidadãos cujo objetivo é efetivar a participação popular na gestão e desenvolvimento das comunidades das quais fazem parte. A importância atribuída à atuação política dos cidadãos chilenos é tamanha que, caso a Constituição seja aprovada, eventuais alterações dos artigos referentes a assuntos da estrutura política e aos direitos fundamentais (capítulo 2) não serão promovidas pelo Poder Legislativo, mas por referendos (art. 383).
Os artigos que promovem a descentralização política do Estado chileno também contribuem para potencializar o desenvolvimento da atividade política no âmbito da sociedade civil. Com o intuito de promover uma distribuição territorial do poder, o Senado Federal foi extinto e em seu lugar foi criada a Câmara das Regiões (art. 253). Trata-se de um órgão deliberativo, paritário e plurinacional atrelado ao Poder Legislativo, que versará sobre questões específicas de cada região, sem poder se sobrepor aos assuntos exclusivos do Congresso de Deputadas e Deputados. Desse modo, as diferentes regiões do país, comunas e territórios dos povos originários passarão a ter autonomia para deliberar sobre suas questões políticas, administrativas e econômicas, desde que não desrespeitem a Constituição ou atentem contra o caráter indivisível do Estado chileno (art. 187).
Até mesmo o aumento das atribuições do Poder Legislativo em detrimento do Poder Executivo pode ser visto como elemento de fortalecimento da democracia, haja vista que a multiplicidade e heterogeneidade de atores que compõe o parlamento contribuem para uma representação mais fidedigna das correntes do pensamento político da sociedade chilena. Caso a Constituição seja aprovada, as deputadas e os deputados possuirão inúmeros instrumentos de controle da atividade da presidenta ou do presidente em exercício (art. 252). Em contrapartida, o Poder Executivo segue responsável pelo controle das Forças Armadas (art. 297), que, por sua vez, não podem exercer qualquer espécie de atividade política (art. 298). Também passa a valer a possibilidade de reeleição ao cargo presidencial a partir de 2026 (art. 283).
É fundamental destacar, tal qual está expresso na Constituição que irá a referendo, que a ampliação da democracia também está atrelada ao combate à desigualdade social. Partindo desse entendimento, é atribuída ao Estado a responsabilidade de promover a justiça social e garantir uma série de direitos sociais, a fim de efetivar a igualdade necessária à existência do regime democrático. Procurando atender antigas reivindicações dos chilenos, o texto constitucional define como direitos que devem ser garantidos pelo Estado o acesso universal à saúde (art. 44) e ao ensino em todos os seus níveis (arts. 35/36), destacando que o compromisso deve ser com a qualidade e não com o lucro. Iniciativas de combate à miséria e promoção de uma vida digna também foram estabelecidas nos campos da moradia (art. 51), alimentação (art. 54) e seguridade social (art. 45). Efetiva-se, assim, a promessa de transformação do Estado subsidiário em um Estado social e democrático de direitos (art. 1).
Procurando expandir a compreensão de direitos fundamentais, a nova Constituição estabelece alguns direitos raramente assegurados no formato de lei nos países democráticos. O reconhecimento da existência de uma crise climática e ambiental de nível global levou à criação dos direitos da natureza (art. 103), com o intuito de garantir a todos os cidadãos o acesso a um meio ambiente sadio e equilibrado. Consequentemente, em diversas passagens do texto constitucional é enfatizado que o desenvolvimento econômico deve se dar de forma harmônica com a natureza (art. 184). A água, que atualmente é um recurso privatizado, passa a ser definida como um direito e não uma mercadoria (art. 140). A contemplação dos direitos da natureza também reflete na regulamentação da mineração (art. 145), uma das principais atividades econômicas do Chile. A Carta formulada na Convenção Constitucional regulamenta ainda os direitos dos animais (art. 130), garantindo a eles o direito a uma vida livre de maus tratos, além de responsabilizar o Estado pela proteção e restauração da biodiversidade e do habitat das espécies nativas silvestres (art. 131).
A erradicação da desigualdade social visando o desenvolvimento do regime democrático em sua plenitude também passa pelo combate ao machismo e ao racismo, outro desafio encarado em muitos países.
Durante os trabalhos constituintes prevaleceu o entendimento de que o combate a essas estruturas de dominação e privilégio é indispensável para que cidadãos e cidadãs passem a exercer integralmente seus direitos políticos. Em vista disso, a maioria dos membros da Convenção Constitucional defendeu o estabelecimento de uma democracia paritária no Chile. Caso a nova Constituição entre em vigor, o Estado deverá se empenhar na erradicação da violência de gênero e efetivar a paridade de gênero nos principais órgãos do governo e empresas estatais (art. 6). Chama atenção, o fato de a paridade também ser atribuída aos cargos de direção das Forças Armadas e da Polícia chilena (arts. 296/298). Para promover o combate ao racismo, o Chile passará a ser considerado um Estado plurinacional e intercultural (art. 1), garantindo a autonomia política e a preservação da cultura dos povos originários (art. 5). Medidas concretas também precisarão ser tomadas para promover a “recuperação, revitalização e fortalecimento do patrimônio cultural indígena” (art. 101).
Os trechos da Constituição que irá a referendo destacados neste texto evidenciam que o Chile está na vanguarda da reformulação das atribuições do Estado e da ampliação da democracia. As alternativas políticas formuladas na Convenção Constitucional para solucionar algumas das questões mais polêmicas da contemporaneidade assumem a condição de referência para a esquerda latino-americana, embora parte significativa delas ainda não esteja presente no debate que envolve a eleição presidencial brasileira deste ano.
Uma transformação de “baixo para cima”
O fato de a Constituição que irá a referendo determinar o compromisso do Estado com a ampliação da democracia, responsabilizando-o pela redução da desigualdade social e pela criação de mecanismos de democracia direta destinados a intensificar o envolvimento popular com as questões políticas não é obra do acaso.
A iniciativa de elaboração do novo texto constitucional chileno não seguiu o caminho que costuma ser visto em outras partes do mundo. Ela faz parte de um processo que partiu de baixo para cima, isto é, que foi pautado pela atividade política de diferentes movimentos sociais, nas ruas e no cotidiano das comunidades, em vez de ser conduzido por agentes políticos que já se encontravam na administração do Estado. Entre eles, destacam-se o movimento ambientalista, estudantil, feminista, bem como os representantes dos povos originários, o que explica a formulação de inúmeros artigos que contemplam suas respectivas demandas.
Essa classificação do processo também se justifica quando se considera que a iniciativa de estabelecer uma nova Constituição foi resultado da série de revoltas populares que vem ocorrendo no Chile desde 2006, chegando ao seu ápice no “Estadillo Social” de 2019. Além disso, a maioria significativa dos deputados constituintes possui vínculo com os movimentos sociais responsáveis pelas manifestações públicas dos últimos anos, e não com os partidos políticos chilenos. Não por coincidência, a chefia da Convenção Constitucional sempre esteve nas mãos de deputadas constituintes ligadas aos movimentos independentes.
A influência da sociedade civil sobre a elaboração da Constituição não se manifestou apenas na escolha dos parlamentares e no trabalho realizado por eles juntos a suas bases. Além de possibilitar aos cidadãos o envio de propostas de lei, a Convenção Constitucional se reuniu constantemente com alguns dos principais grupos políticos e de trabalhadores da sociedade chilena, como os mineiros, por exemplo, para ouvir suas demandas. A transparência da Constituinte e o empenho significativo na divulgação do seu trabalho também contribuíram para uma maior participação popular.
A disputa em torno do referendo
Ainda é incerto se o voto obrigatório mudará o comportamento dos chilenos que não costumam comparecer às urnas, sobretudo porque 44% dos eleitores declararam ter pouco ou nenhum interesse no trabalho da Convenção Constitucional. De qualquer forma, as diferentes forças políticas estão disputando o convencimento dos 16% que se manifestam indecisos, dando atenção especial aos 21% dos chilenos em condições de votar que afirmam ainda não ter se informado sobre o conteúdo da nova Constituição.
Os setores conservadores da sociedade chilena já estão atuando pelo rechaço da Constituição que irá a referendo. É o caso do grupo autodenominado “Amarillos”, dos partidos que estão à direita no espectro político, como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI), e de setores da grande mídia. De acordo com eles, a Convenção Constitucional foi dominada por parlamentares radicais que não representavam os diversos matizes ideológicos existentes no país. Desenvolvendo esse raciocínio, concluem que os deputados constituintes fracassaram em sua missão, uma vez que elaboraram uma Carta incapaz de unir o povo chileno. Os setores conservadores também estão se valendo da disseminação de fake news para impedir a aprovação. No final de junho, José Kast, candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais, chegou a afirmar que o novo texto constitucional permitirá a realização de abortos até o nono mês de gestão.[1] Também estão circulando muitas notícias apontando a extinção do direito à propriedade[2] e alertando quanto à possibilidade de o Chile tornar-se um país comunista.
Alguns artigos ganham maior destaque na campanha das forças conservadoras pelo rechaço. Os seus representantes afirmam que a transformação do Chile em um Estado plurinacional e regional (art. 1) resultará na fragmentação territorial do país, apesar de o caráter indissociável ser ressaltado em diferentes artigos (arts. 3 e 187). De modo muito parecido como ocorre no Brasil em tempos de Bolsonaro, a autonomia e preservação dos territórios pertencentes aos povos originários são apontadas como entraves ao desenvolvimento econômico. Há também um incômodo latente com as limitações impostas à concentração de propriedades (art. 182), com a definição de que eventuais expropriações serão feitas a partir do preço justo (art. 78) em vez do preço de mercado e com o fato de alguns bens naturais serem definidos como impropriáveis (arts. 78 e 134). Esse movimento de conservação também está por trás das críticas direcionadas à extinção do Senado, às transformações do Sistema de Justiça (capítulo 9) e à ampliação do que se entende por família (art. 10).
A análise dos incômodos explicitados pelas forças conservadores evidencia que a ampliação da democracia é vista por eles como uma ameaça aos seus privilégios.
Considerando a possibilidade uma eventual derrota, as forças conservadoras já começaram a construir a narrativa de que uma aprovação apertada não atribuirá legitimidade à nova Constituição, desconsiderando, assim, que ela foi elaborada por parlamentares democraticamente eleitos e que todos os artigos foram sancionados pelo quórum mínimo de dois terços. Essa premissa nos leva a questionar quantas das atuais constituições vigentes nos países democráticos passariam pelo escrutínio popular, e ainda com ampla margem de aceitação, caso também fossem submetidas a um referendo. Os setores favoráveis à aprovação, por sua vez, afirmam que qualquer resultado é mais legítimo do que a atual Carta, lembrando que ela foi estabelecida durante a ditadura militar e aprovada em uma votação repleta de indícios de fraude.
Para garantir a aprovação, os movimentos sociais protagonistas da cena política chilena nos últimos anos precisarão, mais do que nunca, intensificar a atividade política e a capacidade de convencimento da sociedade. Os dados apresentados na última pesquisa de intenção de voto indicam que eles terão que promover um amplo movimento de convencimento, tal qual aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais, embora desta vez não seja possível adotar a estratégia de abrandamento do discurso utilizada por Gabriel Boric. O texto constitucional que vai a referendo já está pronto. Na tentativa de convencer os indecisos e de interromper o crescimento do rechaço, a campanha pela aprovação está investindo na divulgação dos direitos sociais incluídos no texto constitucional, bem como dos direitos trabalhistas, que passarão a garantir aos sindicatos a liberdade de atividade política e o direito à realização de greves (art. 47).
Apesar dos pequenos atritos que teve com a Convenção Constitucional, o presidente Gabriel Boric também está envolvido com a campanha a favor da aprovação. Ele já afirmou inúmeras vezes que o êxito dos projetos do seu governo depende da promulgação da nova Constituição. Considerando o alinhamento do seu projeto de governo com os artigos presentes no texto constitucional, é possível afirmar que a sua recém eleição à presidência indica uma predisposição da sociedade chilena a chancelar a mudança. Por outro lado, a queda dos índices de aprovação do seu governo esvazia o otimismo vinculado a essa interpretação.
Referendo será o último capítulo do processo?
A despeito do resultado do referendo, o processo de transformação política e social não se encerrará no dia 4 de setembro. É difícil acreditar que os chilenos se contentarão com a manutenção da Carta de 1980 caso vença o rechaço. Por outro lado, mesmo se for aprovada, a Constituição não garantirá por si só a refundação do Estado chileno, como ela própria promete. Apesar da existência de alguns artigos que determinam como serão feitas as principais mudanças, a Carta formulada pela Convenção Constitucional corre risco de se tornar letra morta caso a sociedade civil não siga pressionando o Estado para que ele efetive a transformação anunciada. Porém, essa pressão terá mais condições de ser bem-sucedida, haja vista as leis presentes no novo texto constitucional que ampliam os instrumentos de controle social do Estado chileno.
David Ribeiro é mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. É autor do livro “Da crise política ao golpe de Estado: conflitos entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo durante o governo João Goulart” e integrante do grupo de estudos Memória e Ditadura (USP).
[1] A palavra aborto não está presente em nenhum dos artigos da nova constituição. O artigo 61 indica que o Estado garantirá às mulheres o direito de decidir de forma livre sobre o seu próprio corpo, sexualidade e reprodução.
[2] O direito à propriedade é resguardado pelo artigo 78.