O Chile caminha para uma democracia maior e melhor

Novos Rumos no Chile

O Chile caminha para uma democracia maior e melhor

Chile | Chile
por Libio Pérez
15 de março de 2022
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Novo artigo do especial Novos Rumos do Chile, feito em parceria com a edição chilena do Le Monde Diplomatique traz o editorial de Libio Pérez, editor-geral da publicação.

O trabalho da Convenção Constitucional avança e a “folha em branco” já tem seus primeiros parágrafos. Em poucas semanas, os progressos foram substanciais e esboçaram um novo Chile descentralizado, que distribui poder às regiões, outorga autonomia aos territórios, reduz as desigualdades perante a justiça, reconhece a diversidade dos povos que habitam o país e tinge de feminismo a futura institucionalidade, enquanto vai deixando para trás as normas que consagravam os princípios nos quais, por décadas, se sustentou a Constituição autoritária, excludente e concentradora ainda em vigor.

Os prognósticos extremistas não se concretizaram. O Chile não faliu, os investidores não fugiram, o caos não se instalou e aquilo que está nascendo não se parece com o temido “comunismo castro-chavista” que os setores conservadores apregoavam.

Direitistas e “amarelos” se unem e exigem “não ser excluídos”, na própria Convenção – onde os votos que obtiveram não bastam para formar um terço de obstrução – e na mídia. Tecem novas alianças conservadoras, inoculam o medo e não vacilam em propalar mentiras, informação manipulada e iniciativas inexistentes, que nunca estiveram entre as ideias transformadoras.

Presidente Gabriel Boric em seu primeiro discurso ao povo do Chile (Crédito: Divulgação Presidência do Chile)

Ao contrário, na Convenção Constitucional – resultado da mobilização maciça e democrática de milhões de pessoas rebeladas contra os abusos e as desigualdades –, está emergindo um Chile que expande e aprofunda a democracia, incrementando sua qualidade e densidade. Agora já se entrevê uma democracia com maior participação de seus habitantes e territórios, com maior controle cidadão sobre as instituições, com melhores ferramentas para a luta contra a corrupção e o crime organizado (que legitimem as autoridades, gerem mais confiança, dissipem os temores, aperfeiçoem a qualidade de vida), e com maior justiça social. Esse é um processo constituinte que estará acompanhado, em sua fase final, por um governo transformador que, respeitando a autonomia do poder constituinte, garantirá o êxito de seus trabalhos. Logo virá o plebiscito, quando a vontade popular se fará explícita.

Mas há vozes na direita e em grupos de ex-membros da Concertación que já resmungam um “repúdio” prévio da nova Constituição, com desprezo pelo trabalho da Convenção Constitucional, com argumentos pueris e sem nem sequer terem ideia de como será o documento pronto. Assustados com um regime que não controlam, eles se acostumaram a viver em uma democracia de baixa intensidade e a ir atrás de votos de tempos em tempos para depois voltar as costas aos eleitores. Apegam-se à certeza antidemocrática da carta magna herdada dos anos 1980 e querem ficar com ela.

“Repúdio” significa defender a Constituição do general Pinochet e Jaime Guzmán enquanto não surge outro momento constituinte. O contraste notório: a “Comissão Ortúzar”, que lançou as bases da Constituição de Pinochet, era integrada por nove pessoas e o texto definitivo – escrito pelo Conselho de Estado e aprovado pela Junta Militar de quatro generais – foi submetido a um plebiscito fraudulento em 1980. O processo exigiu sete anos e vigorou por quarenta.

Radicalizar a democracia construída com moderação durante o período transicional é visto como uma ameaça pelos setores reacionários, daí a resistência que opõem. Se a antiga democracia representativa supunha a possibilidade de que as organizações sociais e trabalhistas dialogassem diretamente com as instituições do Estado, o modelo ditatorial interpôs o mercado como mediador entre as relações sociais. Arrancar o mercado dos lugares onde conquistou direitos parece uma heresia, quando na realidade significa apenas avançar e acompanhar a evolução democrática de boa parte do mundo.

Boric e sua equipe participam de cerimônia conduzida por povos originários (Crédito: Divulgação Presidência do Chile)

Juntar à democracia representativa a democracia participativa e deliberativa é um avanço civilizatório ao qual o Chile não pode se subtrair caso procure expandir, aprofundar e melhorar a qualidade da nova democracia que vem surgindo com a Convenção Constitucional, justamente a partir da democracia liberal.

O Chile vive um processo de construção democrática que deveria se orientar no sentido de edificar uma sociedade em que a proximidade seja uma política que impeça o isolamento social, que chegue ao núcleo familiar, aos locais de trabalho e estudo, à produção, às relações sociais, aos territórios dos povos autóctones, aos vínculos com a natureza, à vida não humana e às relações internacionais. Nisso consiste o que se chama democracia de alta densidade.

 

Libio Pérez, editor-geral da edição chilena de Le Monde Diplomatique

 

Tradução do espanhol por Frank de Oliveira

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