A reunificação das Coreias é possível?
Após 63 anos do fim da guerra que dividiu a Coreia, nenhum acordo de paz foi assinado para normalizar as relações entre os países. No Sul, políticos conservadores ruminam uma absorção do Norte segundo o modelo da reunificação alemã, operada pelo nocaute do regime comunista.
Monumento pela reunificação das Coreias em Pyongyang
Comoventes reencontros entre coreanos do Norte e do Sul na famosa estação do Monte Kumgang, na República Popular Democrática da Coreia (RPDC – Norte). Mistura de lágrimas e sorrisos: homens e mulheres, às vezes bastante idosos, puderam rever um irmão, uma irmã, a mãe, o pai, um filho ou uma filha pela primeira vez desde a cisão da península em 1954. Em virtude do acordo deste ano entre os dois governos, quatrocentos sul-coreanos, sorteados entre os 66.488 que fizeram a solicitação junto às autoridades de Seul, foram autorizados a cruzar a fronteira no dia 20 de outubro de 2015.1 Quando esses reencontros deixarão de ser um acontecimento para se integrar à vida cotidiana? Ninguém sabe.
No Norte, murais enormes saúdam a unificação e, no Sul, há até mesmo um ministério com esse nome. Ambos garantem estar buscando meios para operar a reunificação indispensável do “povo coreano”. Na prática, porém, a reaproximação não ocorre. Para a maior parte dos analistas, a culpa é dos dirigentes norte-coreanos e de suas ameaças espalhafatosas. Mas muitos observadores na Coreia do Sul se recusam a incriminar exclusivamente a Coreia do Norte. Ressaltam também a responsabilidade dos governos de Seul, sobretudo depois de 2008. Alguns chegam a apontar o dedo para os Estados Unidos.
Para entender os receios que agitam as duas Coreias, precisamos nos debruçar sobre uma história repleta de dramas. Em 1919, a península foi ocupada pelo Japão, que lhe impôs um regime de extrema crueldade. Livre dos japoneses, o território ficou entregue às “forças de paz”: no Norte, soviéticas, com Kim Il-sung controlando o país; e no Sul, norte-americanas, que instalaram um poder autoritário graças ao apoio dos militares que haviam colaborado com Tóquio. Explorando o despeito dos progressistas, o Norte invadiu o Sul e foi repelido pelo Exército norte-americano, que atuava por mandato do Conselho de Segurança da ONU, então boicotada pela União Soviética. Seguiu-se um dilúvio de fogo. O general Douglas MacArthur, que dirigia as operações, ameaçou várias vezes utilizar a bomba atômica.2 Somente a entrada na guerra das tropas chinesas impediu que a Coreia do Norte fosse varrida do mapa e que a China tivesse o Exército norte-americano postado em suas fronteiras.
Em 27 de julho de 1953, um armistício foi assinado em Panmunjeom, no 38º paralelo, a linha de demarcação anterior à ofensiva militar. Resumindo, uma guerra para nada. Ainda hoje, barracões azuis separados por blocos de concreto materializam a fronteira na “zona desmilitarizada”: de um lado, soldados norte-americanos e sul-coreanos; do outro, militares norte-coreanos.
Nem paz nem guerra
Contrariando as ideias preconcebidas, o ex-ministro sul-coreano da Unificação (2002-2004) Jeong Se-hyun, entrevistado em Seul algumas semanas antes da viagem das famílias ao outro lado da fronteira, lembrou: “Tempo houve em que o Sul é que temia uma reunificação sob a égide do Norte”. Este, apesar das devastações, ostentava um PIB duas vezes maior. Todavia, em meados dos anos 1960, o Sul decolou, enquanto o Norte regrediu. O medo mudou de lado, mas a desconfiança se instalou em ambos. Jeong, septuagenário que viu se alternarem períodos de abertura e fechamento, relata, com detalhes, a saga dos dois irmãos inimigos, na qual o mais inconstante não é o que geralmente acusamos: “A política do Sul para com a Coreia do Norte muda ao ritmo dos presidentes da República. Varia conforme seu sentimento anticomunista (ou não) e sua crença (ou não) na ruína iminente do Norte”.
A partir de 1972, uma primeira “declaração comum” anteviu a possibilidade da “reunificação”. Mas foi depois do fim da ditadura no Sul e sobretudo após a queda do Muro de Berlim que Seul mudou o tom. “O presidente Roh Tae-woo [1988-1993] percebeu que o mundo não era mais o mesmo. Embora militar, não parecia obcecado pelo anticomunismo e lançou as bases para um acordo com Pyongyang”, explica Jeong. Em 21 de setembro de 1991, as duas Coreias entraram oficialmente para a ONU. Três meses depois, assinaram um “Acordo para a reconciliação, a não agressão, o comércio e a cooperação” – uma lista de grandes princípios. Ainda não era a paz; mas já não era a guerra.
Segundo Jeong, os dirigentes norte-coreanos querem se aproveitar disso para normalizar suas relações com os Estados Unidos, já que a ajuda soviética desapareceu com a URSS. Em janeiro de 1992, diz ele, “Kim Il-sung enviou seu próprio secretário à sede da ONU, em Nova York, para um encontro a portas fechadas com um emissário norte-americano. Levava uma única mensagem: ‘Não exigiremos mais a retirada das tropas norte-americanas do Sul; em contrapartida, vocês se comprometerão a não questionar a existência de nosso país’. George Bush pai respondeu à oferta com o silêncio. Foi então que Kim Il-sung iniciou sua política nuclear, convencido de que Washington queria varrer a RPDC da face da terra”. Como todo sul-coreano, Jeong desaprova o recurso às armas nucleares, mas insiste na ordem das responsabilidades, contrariando a história oficial: Washington atira lenha na fogueira; Pyongyang reage.
Em Seul, o sucessor de Roh, Kim Yung-sam, está convencido de que o Norte comunista vai se afundar como a Alemanha Oriental. E faz de tudo para precipitar esse desfecho. Resultado: a RPDC enfrentou um período (1995-1998) de fome espantoso, cujas sequelas são sentidas ainda hoje. Contudo, a repressão e a reação nacionalista do povo não vão deixar que ela caia aos pedaços.
A lenda diz que o bloqueio foi rompido em 1998, quando Chung Ju-yung, fundador da Hyundai, um dos mais poderosos chaebols (grandes conglomerados familiares) sul-coreanos, atravessou a fronteira conduzindo um rebanho de mil vacas, símbolo da ajuda humanitária, antes de encontrar o presidente norte-coreano. O grande passo foi o encontro histórico entre Kim Jong-il (Norte) e Kim Dae-jung, em junho de 2000. Começou então uma década de diálogo e intercâmbio: abertura de um ponto turístico no Monte Kumgang (2003) e de uma zona industrial em Kaesong, no território norte-coreano, com empresas sul-coreanas (2004) etc.
Essa política enfrentou inúmeras tempestades alimentadas pelas ameaças nucleares de Pyongyang (três vezes desde 2006), pela intransigência norte-americana e pela ambiguidade chinesa. E foi completamente esquecida com a ascensão do presidente conservador da Coreia do Sul, Lee Myung-bak, que preferiu o confronto. Único vestígio dessa década promissora: o complexo de Kaesong.
Iremos, assim, negar toda esperança de paz ou de reunificação? Tão conservadora quanto Lee Myung-bak, a presidenta Park Geun-hye prometeu, ao assumir o poder em 2013, fazer uma “política de confiança” a meio caminho entre a política dos anos 2000 e o fechamento total de seu predecessor. Entretanto, se excetuarmos os encontros familiares de outubro de 2015, nada parece estar mudando. “Park pisa no freio e no acelerador ao mesmo tempo”, ironiza Jeong. “Isso faz bastante barulho, mas o carro não sai do lugar.”
Diretor do Centro de Estudos Norte-Coreanos no Instituto Sejong, em Seul, Paik Hak-soon não é menos agressivo com a presidenta, acusada de usar o conflito externo para desviar a atenção de questões internas. Infelizmente, concentrando-se nas taras do regime do Norte, a imprensa “ignora o que muda: a economia norte-coreana vai melhor, Kim Jong-un consolidou seu poder e aperfeiçoou as relações com o Japão, que suspendeu algumas sanções e com o qual iniciou negociações sobre o problema dos cidadãos japoneses sequestrados.3 Jong-un acertou as disputas com a Rússia sobre a questão da dívida4 [11 bilhões de euros, herança do período soviético, que Vladimir Putin abateu em 90%]. E Moscou reabriu em setembro de 2015 um trecho da via férrea que liga a cidade russa de Khassan à norte-coreana Rajin”.
Outro renomado especialista, Koh Yu-hwan, também considera a ocasião favorável. “Kim Jong-un tenta melhorar as relações com a Coreia do Sul e gostaria de aliviar as tensões com os Estados Unidos. Só se o diálogo não for adiante é que ele fará novas ameaças.” Esse diretor de outro grande centro de estudos norte-coreanos em Seul – a Universidade Dongguk – é um dos raros pesquisadores autorizados a cruzar a fronteira graças ao intercâmbio entre sua universidade (budista) e o templo restaurado do Monte Kumgang. Ele integra a comissão presidencial encarregada de preparar a unificação, posta sob a autoridade direta da presidenta Park, sem controle e bastante criticada pelos meios progressistas e pacifistas. É uma voz isolada pregando o diálogo em meio a um oceano de preconceitos.
O exemplo alemão
Para a maioria dos dirigentes sul-coreanos, o regime de Pyongyang fatalmente desmoronará. Em 25 de outubro de 2015, o jornal conservador Chosun Ilbo, o mais lido do país, fazia na primeira página uma pergunta puramente retórica: “Os dias do regime norte-coreano estão contados?”. O editorialista citava a “insatisfação crescente das elites”: oito figurões do regime pediram asilo ao Sul em 2013 e dezoito em 2014, para um total de refugiados em baixa (2,6 mil por ano de 2008 a 2012, 1.596 em 2014). À espera do grande acontecimento, os estudos comparativos com a Alemanha se multiplicam. E foi em Dresden, em 18 de março de 2014, que Park propôs uma “iniciativa para a reunificação pacífica da península”5 – sempre, é claro, com a ideia do triunfo de uma Coreia capitalista e democrática em toda a região.
A comparação com as duas Alemanhas dos anos 1970-1980, porém, não parece de modo algum adequada, em especial porque as duas Coreias se defrontaram militarmente no curso de uma guerra civil. Malgrado uma história e uma cultura comuns, ódios profundamente arraigados permanecem. Não bastasse isso, as divergências são bem mais fortes: se a economia alemã-ocidental era quatro vezes maior que a oriental, no caso das duas Coreias a relação é de 1 para 60. Não admira que a nova geração sul-coreana, já com dificuldade para encontrar espaço numa sociedade em crise, se mostre reservada perante a ideia de pagar para acolher um vizinho que ela só conhece por meio de caricaturas. Frequentemente, refugiados norte-coreanos são maltratados, submetidos a afazeres grosseiros e quase sempre discriminados.6
Ninguém pode garantir que o regime de Pyongyang perdurará; mas apostar em sua queda impede qualquer reflexão para evitar uma política de confronto. Ao contrário, “se partirmos do pressuposto de que a Coreia do Norte continuará a existir”, pondera Koh Yu-hwan, “então será necessário encontrar caminhos para o diálogo e a negociação. Todos têm interesse em que ela se integre ao capitalismo mundial”. Seguindo a maior parte dos especialistas consultados, Koh propõe uma política de passos curtos. Assim como Choi Jin-wook, presidente do mais que oficial Instituto para a Unificação Nacional da Coreia, em Seul: “Quando as relações entre dois países sofrem uma série de avanços e recuos, a confiança é abalada. Cumpre então progredir aos poucos”.
Em princípio, todo mundo está de acordo. Quanto aos atos… Park Sun-song, professor e pesquisador no Instituto de Estudos Norte-Coreanos da Universidade Dongguk, põe em questão a ordem das prioridades repisada pela presidenta Park: o abandono da arma nuclear por Pyongyang em troca de ajuda humanitária e negociações. “Sem dúvida, a desnuclearização continua um objetivo-chave; mas, levando-se em conta a quantidade de armas acumuladas na península, tratar essa questão sob seu aspecto puramente militar só pode ser encarado, por parte de Pyongyang, como pressão.”
Convém lembrar que, se a Coreia do Norte não é nenhum anjo da paz, a Coreia do Sul possui armas ultramodernas, com sistemas antimísseis norte-americanos, e que os Estados Unidos mantêm lá perto de 29 mil soldados. O problema nuclear, prossegue Park Sun-song, “é apenas um dos que precisam ser resolvidos. Incentivando o processo de paz e cooperação é que obteremos a desnuclearização, não o contrário. Isso envolve o Norte e o Sul, mas também o conjunto da Ásia” – e, obviamente, os Estados Unidos. “Hoje, como ontem”, explica o ex-ministro da Unificação Jeong, “os norte-americanos representam o maior obstáculo para uma normalização.”
Não apenas Washington recusa todo diálogo bilateral com Pyongyang como os exercícios militares conjuntos com o exército sul-coreano exacerbam os medos. Moon Chung-in não minimiza o “comportamento belicoso” de Pyongyang; mas, diz, “foi justamente a intensificação das ameaças norte-americanas que induziu as autoridades da Coreia do Norte a adotar semelhante postura”.
A reação da RPDC – ameaça nuclear, lançamento de mísseis – não lhe permitiu, contudo, obter a negociação que reclamava de Washington. Em outubro de 2015, a televisão estatal norte-coreana propôs, enfim, uma saída para a “escalada da tensão”: “Se os Estados Unidos derem corajosamente as costas à sua política atual (e negociarem um tratado de paz), ficaremos felizes em adotar uma atitude construtiva. Já enviamos uma mensagem por canais oficiais sugerindo conversações de paz e esperamos a resposta”.7 Sem dúvida, Pyongyang conta com negociações semelhantes às que se deram com o Irã. Mas, ressalvou Koh Yu-hwan em nosso encontro em Dongguk, “o Irã não tem a China em seus costados”. Ora, “os Estados Unidos estão também com Pequim em sua mira”.
Certamente, após o último teste nuclear, a China acabou por votar sanções contra a RPDC. Mas continua a fornecer-lhe ajuda em alimentos e petróleo – entre outras coisas –, a fim de evitar algum choque fatal. Todavia, o presidente Xi Jinping jamais se encontrou com seu jovem colega norte-coreano, ao passo que fez uma viagem oficial a Seul, e Park foi a Pequim para assistir ao desfile militar comemorativo do fim da guerra contra o Japão. Politicamente, é um gesto espetacular e uma reaproximação notável, já que são melindrosas as relações dos dois países com Tóquio. Economicamente, a China se tornou o primeiro parceiro da Coreia do Sul, que é seu terceiro fornecedor.
Em Seul, os amigos conservadores de Park não veem com bons olhos esse idílio, num momento em que as relações sino-americanas fraquejam. Lembram que, se a China é o primeiro parceiro comercial, quem lhes dá segurança são os Estados Unidos. “Há no céu da Ásia do Leste dois sóis levantes [a China e os Estados Unidos]”, observa um diplomata sul-coreano. “A Coreia do Sul terá de fazer uma escolha.”8 Por ora, a presidenta Park joga com os dois sóis, mas hesita em entabular e exigir negociações sérias com Pyongyang.
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 102 – janeiro de 2016}